É por essa razão – ausência de conflito imediato com o texto da Constituição – que a jurisprudência desta Corte vem enfatizando que “ A boa ou má interpretação de norma infraconstitucional não enseja o recurso extraordinário, sob color de ofensa ao princípio da legalidade ( CF , art. 5º, II)” ( RTJ 144/962 , Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei ):
“ A alegação de ofensa ao princípio da legalidade , inscrito no art. 5º, II, da Constituição da República, não autoriza , só por si, o acesso à via recursal extraordinária, pelo fato de tal alegação tornar indispensável , para efeito de sua constatação, o exame prévio do ordenamento positivo de caráter infraconstitucional , dando ensejo, em tal situação, à possibilidade de reconhecimento de hipótese de mera transgressão indireta ao texto da Carta Política. Precedentes .”
( RTJ 189/336-337 , Rel. Min. CELSO DE MELLO)
“ E é pacífica a jurisprudência do S.T.F., no sentido de não admitir , em R.E., alegação de ofensa indireta à Constituição Federal, por má interpretação de normas infraconstitucionais, como as trabalhistas e processuais (…).”
( AI 153.310-AgR/RS , Rel. Min. SYDNEY SANCHES – grifei )
Não foi por outro motivo que o eminente Ministro MOREIRA ALVES, Relator, ao apreciar o tema pertinente ao postulado da legalidade, em conexão com o emprego do recurso extraordinário, assim se pronunciou :
“ A alegação de ofensa ao artigo 5º , II , da Constituição, por implicar o exame prévio da legislação infraconstitucional , é alegação de infringência indireta ou reflexa à Carta Magna, não dando margem , assim, ao cabimento do recurso extraordinário.”
( AI 339.607/MG , Rel. Min. MOREIRA ALVES – grifei )
Acentue-se , por oportuno, que essa orientação acha-se presentemente sumulada por esta Corte, como resulta claro da Súmula 636 do Supremo Tribunal Federal, cuja formulação possui o seguinte conteúdo:
“ Não cabe recurso extraordinário por contrariedade ao princípio constitucional da legalidade , quando a sua verificação pressuponha rever a interpretação dada a normas infraconstitucionais pela decisão recorrida.” ( grifei )
Desse modo , considerados os aspectos que venho de referir, o fato é que a postulação recursal, no ponto, encontra obstáculo de ordem técnica na jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal, consoante resulta claro de decisão que, emanada desta Corte, reflete , com absoluta fidelidade, o entendimento jurisprudencial prevalecente no âmbito do Tribunal:
“ Inviável o processamento do extraordinário para debater matéria infraconstitucional, sob o argumento de violação ao disposto nos artigos 5º , II, XXXV , XXXVI, LIV e LV , e 93 , IX , da Constituição .
Agravo regimental improvido .”
( AI 437.201-AgR/SP , Rel. Min. ELLEN GRACIE – grifei )
Cabe salientar , ainda, no tocante à alegada violação aos arts. 20, I, e 26, IV, da Constituição, que a suposta ofensa ao texto constitucional, caso existente , tal como precedentemente acentuado nesta decisão, também apresentar-se-ia por via reflexa, eis que a sua constatação reclamaria – para que se configurasse – a formulação de juízo prévio de legalidade fundado na vulneração e infringência de dispositivos de ordem meramente legal. Não se tratando de conflito direto e frontal com o texto da Constituição, como exigido pela jurisprudência da Corte ( RTJ 120/912 , Rel. Min. SYDNEY SANCHES – RTJ 132/455 , Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), torna-se inviável o trânsito do recurso extraordinário.
O acórdão impugnado em sede recursal extraordinária, ao decidir a controvérsia jurídica objeto deste processo, dirimiu a questão com fundamento em legislação infraconstitucional, circunstância essa que obsta o próprio conhecimento do apelo extremo.
A mera análise do acórdão recorrido torna evidente que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao proferir a decisão questionada, apoiou suas conclusões em dispositivos de ordem estritamente infraconstitucional (fls. 975/1.003, evento 44), como se vê da densa e brilhante fundamentação da lavra do eminente Ministro HERMAN BENJAMIN, que reproduzo “in extenso”:
“Urgia sanar a situação fundiária brasileira, criando-se regras claras para a aquisição do domínio, que distinguissem as terras públicas (devolutas) das particulares, coibissem os latifúndios improdutivos e, especialmente, fomentassem uma racional ocupação do País.
Foi com esses objetivos que surgiu a Lei das Terras ( Lei 601/1850 ), vigente até os dias atuais , com força de lei federal .
Chamo a atenção para a necessidade de entendermos essas razões que levaram o legislador a publicar a novel normatização das terras, a fim de bem interpretarmos os seus dispositivos (interpretação histórica e teleológica), em especial sua definição de terras devolutas (art. 3º).
O fim imediato da Lei 601/1850 era sanar a situação dos domínios particulares . O mediato, e mais importante, era proporcionar meios fáticos e jurídicos para a efetiva colonização do Brasil. A definição das terras devolutas não foi, de modo algum, o cerne da Lei, embora essa definição venha ecoando até os dias atuais.
O Império precisava dispor de meios legais para retomar os imóveis improdutivos e entregá-los a quem se dispusesse a ocupá-los e cultivá-los efetivamente, viabilizando o nascente projeto de imigração fomentada pelo tesouro nacional. É a lição de Paulo Garcia e Messias Junqueira:
Entretanto , que fêz a lei 601 ? Simplesmente isto : reconheceu ao concessionário de sesmarias o direito de revalidar sua concessão , embora não tivesse dado cumprimento às condições legais para a concessão , embora não a tivesse , sequer , medido ( art. 4º ). ( Paulo Garcia , ‘ Ob . cit .’, p. 26 )
A finalidade da elaboração da lei 601 foi obter terras em que se fizesse a colonização por pessoas livres , de vez que , a esse tempo já havia cessado o tráfico legal de escravos (...)’ ( Messias Junqueira , ‘ Ob . cit .’, p. 78 ).
Feitas essas observações , transcrevo o conhecido art. 3º da Lei 601/1850 , cuja definição do que sejam terras devolutas vige até os dias atuais :
Art. 3º São terras devolutas:
§ 1º As que não se acharem applicadas a algum uso público nacional, provincial, ou municipal.
§ 2º As que não se acharem no dominio particular por qualquer titulo legitimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em commisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura.
§ 3º As que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apezar de incursas em commisso, forem revalidadas por esta Lei.
§ 4º As que não se acharem occupadas por posses, que, apezar de não se fundarem em titulo legal, forem legitimadas por esta Lei.
As negativas dos parágrafos indicam claramente : a definição de terras devolutas é dada por exclusão .
O § 1º exclui do conceito de terras devolutas aquelas destinadas a um uso específico pelo poder público .
Os §§ 2º , 3º e 4º excluem aquelas sob legítimo domínio particular .
É essa , singelamente , a definição : terras devolutas são aquelas ( a ) públicas e ( b ) não destinadas a um uso público específico .
Mas por que , então , a lei desceu a detalhes na definição de terras devolutas?
A resposta é simples : o art. 3º tem como objetivo não apenas definir as terras devolutas por exclusão , mas também fixar as regras para saneamento dos títulos de sesmarias e validação de posses qualificadas . A Lei 601/1850 detalhou , nos §§ 2º a 4º , as situações em que se considerariam legítimas as propriedades privadas e , portanto , excluídas do conceito de terras devolutas .
O § 2º alerta que as terras dadas em sesmarias e caídas em comisso eram de domínio do Império , ressalvando , logo a seguir , no § 3º , a possibilidade de revalidação , desde que cumpridos os requisitos da Lei ( basicamente , efetiva ocupação , moradia e cultura ). O dispositivo somente pode ser entendido em conjunto com o art. 4º : ‘ Serão revalidadas as sesmarias , ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial , que se acharem cultivadas , ou com princípios de cultura , e morada habitual do respectivo sesmeiro ou concessionario , ou do quem os represente , embora não tenha sido cumprida qualquer das outras condições , com que foram concedidas ’.
O § 4º trata de uma segunda medida de saneamento da situação fundiária : validação de posses , desde que efetivamente haja ocupação , moradia e cultivo , dentre outros requisitos da Lei . Mais uma vez , seu entendimento depende da leitura do art. 5º da Lei 601/1850 : ‘ Serão legitimadas as posses mansas e pacíficas , adquiridas por occupação primaria , ou havidas do primeiro occupante , que se acharem cultivadas , ou com princípio de cultura , e morada habitual do respectivo posseiro , ou de quem o represente , guardadas as regras seguintes : (...)’.
Os §§ 2º, 3º e 4º, portanto, mais do que servir à definição de terras devolutas, tratam da revalidação dos títulos a que se referiu Paulo Garcia e que acima transcrevi.
Conforme o estudioso do assunto, a Lei 601/1850 ‘reconheceu ao concessionário de sesmarias o direito de revalidar sua concessão, embora não tivesse dado cumprimento às condições legais para a concessão, embora não a tivesse, sequer, medido’.
Definidas as terras devolutas no art. 3º e fixadas as regras gerais para a regularização fundiária, pelo mesmo dispositivo, destaco que o restante da Lei trata, prioritariamente, da alienação dessas terras devolutas por meio de hasta pública, ou por outro meio, e sua efetiva ocupação por colonos.
Relembro que uma função primordial da Lei 601/1850 , como salienta Messias Junqueira, é dar os meios jurídicos para o poder público ‘obter terras em que se fizesse a colonização por pessoas livres’.
Os artigos 12 a 16 da Lei 601/1850 tratam exatamente da alienação das terras devolutas. O art. 17 prevê a naturalização dos colonos estrangeiros que se fixarem nas terras e, concluindo o projeto de efetiva ocupação, os artigos 18 e 20 autorizam o governo a promover, às custas do Tesouro Nacional, a vinda desses trabalhadores ao País, dando início ao período da frutífera imigração que todos nós conhecemos.
Foi por isso, repito, que o art. 3º desceu a minúcias, ao definir as terras não-particulares e, a partir daí, as terras devolutas.
Essa informação é essencial para, mais adiante, analisarmos o entendimento do TRF no caso presente (a Corte de origem, adianto, interpretou o § 2º excluindo do conceito de terras devolutas as sesmarias confiscadas pela Coroa, com a expulsão dos jesuítas, no século XVIII).
Por ora , fixo a definição de terras devolutas por exclusão : são