HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. RECONHECIMENTO DE PESSOA REALIZADO NA FASE DO INQUÉRITO POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 226 DO CPP . PROVA INVÁLIDA COMO FUNDAMENTO PARA A CONDENAÇÃO. ABSOLVIÇÃO QUE SE MOSTRA DEVIDA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A Sexta Turma desta Corte Superior de Justiça, por ocasião do julgamento do HC n. 598.886/SC (Rel. Ministro Rogerio Schietti), realizado em 27/10/2020, conferiu nova interpretação ao art. 226 do CPP , a fim de superar o entendimento, até então vigente, de que referido o artigo constituiria "mera recomendação" e, como tal, não ensejaria nulidade da prova eventual descumprimento dos requisitos formais ali previstos. 2. Em julgamento concluído no dia 23/2/2022, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal deu provimento ao RHC n. 206.846/SP (Rel. Ministro Gilmar Mendes, 2ª T., DJe 25/5/2022), para absolver um indivíduo preso em São Paulo depois de ser reconhecido por fotografia, tendo em vista a nulidade do reconhecimento fotográfico e a ausência de provas para a condenação. Reportando-se ao decidido no julgamento do referido HC n. 598.886/SC , no STJ, foram fixadas três teses:2.1) O reconhecimento de pessoas, presencial ou por fotografia, deve observar o procedimento previsto no art. 226 do Código de Processo Penal , cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se encontra na condição de suspeito da prática de um crime e para uma verificação dos fatos mais justa e precisa; 2.2) A inobservância do procedimento descrito na referida norma processual torna inválido o reconhecimento da pessoa suspeita, de modo que tal elemento não poderá fundamentar eventual condenação ou decretação de prisão cautelar, mesmo se refeito e confirmado o reconhecimento em Juízo. Se declarada a irregularidade do ato, eventual condenação já proferida poderá ser mantida, se fundamentada em provas independentes e não contaminadas; 2.3) A realização do ato de reconhecimento pessoal carece de justificação em elementos que indiquem, ainda que em juízo de verossimilhança, a autoria do fato investigado, de modo a se vedarem medidas investigativas genéricas e arbitrárias, que potencializam erros na verificação dos fatos. 3. Posteriormente, em sessão ocorrida no dia 15/3/2022, a Sexta Turma desta Corte, por ocasião do julgamento do HC n. 712.781/RJ (Rel. Ministro Rogerio Schietti), avançou em relação à compreensão anteriormente externada no HC n. 598.886/SC e decidiu, à unanimidade, que, mesmo se realizado em conformidade com o modelo legal (art. 226 do CPP ), o reconhecimento pessoal, embora seja válido, não possui força probante absoluta, de sorte que não pode induzir, por si só, à certeza da autoria delitiva, em razão de sua fragilidade epistêmica. 4. O exame da petição inicial e dos documentos que a instruem - especialmente a sentença condenatória e o acórdão impugnado -, além da análise do contexto fático já delineado nos autos pelas instâncias ordinárias, indicam, sem margem a dúvidas, que a condenação do paciente efetivamente se apoiou, tão somente, em reconhecimento realizado por uma das vítimas em total desconformidade com o procedimento previsto no art. 226 do CPP , sem que nenhuma outra prova (apreensão de bens em seu poder, confissão, relatos indiretos etc.) autorizasse, além de uma dúvida razoável, o juízo condenatório. 5. Na espécie, os policiais militares afirmaram que, após abordarem o paciente conduzindo uma motocicleta em via pública, antes de conduzi-lo ao Distrito Policial, levaram-no até o local em que estava o veículo roubado (Montana) de uma das vítimas (o assalto ocorreu em um restaurante), momento em que foi realizada uma espécie de reconhecimento pessoal prévio por uma das vítimas, que era o proprietário do carro subtraído. Essa vítima, por sua vez, em seu depoimento judicial, além de haver confirmado que o paciente estava sozinho no momento do reconhecimento formal na delegacia (procedimento chamado show-up), afirmou que os policiais, também na delegacia, antes mesmo da formalização do reconhecimento, mostraram uma fotografia do acusado no celular, de modo a não deixar dúvidas de que o ato não só deixou de observar o procedimento previsto no art. 226 do CPP , como também foi induzido. Ademais, quanto à expressiva quantia em dinheiro encontrada com o réu, a defesa demonstrou a sua origem lícita, conforme se depreende do comprovante bancário de saque e do recibo de depósito relativo ao pagamento que um cliente lhe fez na véspera do roubo do qual é acusado. 6. Irrelevante, ademais, que o ato de reconhecimento haja sido repetido em juízo. Isso porque não há dúvidas de que o reconhecimento inicial, que foi realizado em total desconformidade com o disposto no art. 226 do CPP , afeta todos os subsequentes, haja vista que o reconhecimento de pessoas é considerado como uma prova cognitivamente irrepetível. 7. Não se trata de insinuar que a vítima mentiu ao dizer que reconheceu o acusado. Chama-se a atenção, nesse ponto, para o fundamental conceito de ?erros honestos?, trazido pela psicologia do testemunho. Para este ramo da ciência, o oposto da ideia de ?mentira? não é a ?verdade?, mas sim a ?sinceridade?. Quando se coloca em dúvida a confiabilidade do reconhecimento feito pela vítima, mesmo nas hipóteses em que ela diga ter ?certeza absoluta? do que afirma, não se está a questionar a idoneidade moral daquela pessoa ou a imputar-lhe má-fé, vale dizer, não se insinua que ela esteja mentindo para incriminar um inocente. O que se pondera apenas é que, não obstante subjetivamente sincera, a afirmação da vítima pode eventualmente não corresponder à realidade, porque decorrente de um ?erro honesto?, causado pelo fenômeno das falsas memórias. 8. Adotada, assim, a premissa de que a busca da verdade, no processo penal, se sujeita a balizas epistemológicas e também éticas, que assegurem um mínimo de idoneidade às provas e não exponham pessoas em geral ao risco de virem a ser injustamente presas e condenadas, é de se refutar que essa prova tão importante seja produzida de forma totalmente viciada. Se outros fins, que não a simples apuração da verdade, são também importantes na atividade investigatória e persecutória do Estado, algum sacrifício epistêmico pode ocorrer, especialmente quando o processo penal busca, também, a proteção a direitos fundamentais e o desestímulo a práticas autoritárias. 9. Impõe compreender, por sua vez, que a atuação dos agentes públicos responsáveis pela preservação da ordem e pela apuração de crimes deve dar-se em respeito às instituições, às leis e aos direitos fundamentais. Ou seja, quando se fala de segurança pública, esta não se pode limitar à luta contra a criminalidade; deve incluir também a criação de um ambiente propício e adequado para a convivência pacífica das pessoas e de respeito institucional a quem se vê na situação de acusado e, antes disso, de suspeito. 10. Sob tal perspectiva, devem as agências estatais de investigação e persecução penal envidar esforços para rever hábitos e acomodações funcionais, de sorte a ?utilizar instrumentos para maximizar as probabilidades de acerto na decisão probatória, em particular aqueles que visam a promover a formação de um conjunto probatório o mais rico possível, quantitativa e qualitativamente? (Ferrer-Beltrán). 11. Convém, ainda, lembrar que as prescrições legais relativas às provas cumprem não apenas uma função epistêmica, i. e., de conferir fiabilidade e segurança ao conteúdo da prova produzida, mas também uma função de controle do exercício do poder dos órgãos encarregados de obter a prova para uso em processo criminal, vis-à-vis os direitos inerentes à condição de suspeito, investigado ou acusado. Nesse sentido, é sempre oportuna a lição de Perfécto Ibañez, que divisa, na exigência de cumprimento das prescrições legais relativas à prova, uma função implícita, a saber, a de induzir os agentes estatais à observância dessas normas, o que se perfaz com a declaração de nulidade dos atos praticados de forma ilegal. 12. O zelo com que se houver a autoridade policial ao conduzir as investigações determinará não apenas a validade da prova obtida, mas a própria legitimidade da atuação policial e sua conformidade ao modelo legal e constitucional. Sem embargo, conquanto as instituições policiais figurem no centro das críticas, não são as únicas a merecê-las. É preciso que todos os integrantes do sistema de justiça criminal se apropriem de técnicas pautadas nos avanços científicos para interromper e reverter essa preocupante realidade quanto ao reconhecimento pessoal de suspeitos. Práticas como a evidenciada no processo objeto deste writ só se perpetuam porque eventualmente encontram respaldo e chancela tanto do Ministério Público - a quem, como fiscal do direito (custos iuris), compromissado com a verdade e com a objetividade de atuação, cabe velar pela higidez e pela fidelidade da investigação dos fatos sob apuração, ao propósito de evitar acusações infundadas - quanto do próprio Poder Judiciário, ao validar e acatar medidas ilegais perpetradas pelas agências de segurança pública. 13. Uma vez que o reconhecimento do paciente é absolutamente nulo, porque realizado em total desconformidade com o disposto no art. 226 do CPP , deve ser proclamada a sua absolvição, ante a inexistência, como se deflui da sentença condenatória e do acórdão impugnado, de qualquer outra prova independente e idônea a formar o convencimento judicial sobre a autoria dos crimes de roubo que lhe foram imputados. 14. Ordem concedida, para absolver o paciente em relação à prática dos delitos de roubo (em concurso formal) objetos do Processo n. XXXXX-50.2015.8.26.0569 , da Vara Única da Comarca de Cabreúva - SP, ratificada a liminar anteriormente deferida, para determinar a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver ou necessitar ser preso.