TRF-5 - EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE XXXXX20204058100
PROCESSO Nº: XXXXX-03.2020.4.05.8100 - APELAÇÃO CRIMINAL APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ASSISTENTE: CONFEDERACAO ISRAELITA DO BRASIL ADVOGADO: Octavio Jose Aronis e outros APELADO: LUÍS OLÍMPIO FERRAZ MELO ADVOGADO: Luís Olímpio Ferraz Melo e outros RELATOR (A): Desembargador (a) Federal Rubens de Mendonça Canuto Neto - 4ª Turma JUIZ PROLATOR DA SENTENÇA (1º GRAU): Juiz (a) Federal Danilo Dias Vasconcelos De Almeida EMENTA: PENAL E PROCESSO PENAL. DENÚNCIA POR INJÚRIA RACIAL (ART. 20 , § 2º , DA LEI Nº 7.716 /89. RÉU ACUSADO DE PROFERIR DISCURSO ANTISSEMITA PERANTE REDE SOCIAL NA INTERNET. AUTORIA E MATERIALIDADE DA DENÚNCIA COMPROVADAS. DISCUSSÃO ACERCA DOS LIMITES DO USO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO. TEXTO DIVULGADO ABERTAMENTE ONDE O ACUSADO AFIRMA QUE NÃO TERIA EXISTIDO O HOLOCAUSTO ALÉM DE COLOCAR EM DÚVIDA SUA EXTENSÃO. REFERÊNCIAS TAMBÉM A UM POSSÍVEL PLANO DE VINGANÇA JUDEU CONTRA A HUMANIDADE, INCUSIVE POR MEIO DA DISSEMINAÇÃO DE DOENÇAS GLOBAIS COMO O VÍRUS DA H1NI (GRIPE SUÍNA) E DO CORONAVÍRUS. TEXTO QUE APESAR DE ÚNICO E CONCISO SE APRESENTA COM POTENCIAL SUFICIENTE PARA LESAR O BEM JURÍDICO PROTEGIDO NA NORMA PENAL DE RESGUARDO. AFIRMAÇÕES QUE SUPERAM A MERA ALEIVOSIA OU DESPAUTÉRIO PELO MODO COMO FORAM REDIGIDAS E DIVULGADAS. NEGACIONISMO DO HOLOCAUSTO QUE É CONSIDERADO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO PASSÍVEL DE CONFIGURAR CRIME DE INJÚRIA RACIAL ESPECIALMENTE QUANDO CAPAZ DE INDUZIR SENTIMENTO SOCIAL DE REPÚDIO A TODA UMA COLETIVIDADE. APELAÇÃO PROVIDA PARA CONDENAR O RÉU NOS TERMOS DA IMPUTAÇÃO CONTIDA NA DENÚNCIA. 1. Superadas à unanimidade dos julgadores, as preliminares arguidas pela acusação, realiza-se o exame de mérito do recurso. Não há dúvidas que a Suprema Corte brasileira alçou o direito de liberdade de expressão, do mesmo modo que outras tantas importantes Cortes ocidentais, a exemplo da Suprema Corte norte-americana e do Tribunal Federal Constitucional alemão, a um nível de proteção ímpar na Ordem Jurídica nacional. Nesse sentido, a ementa do julgado enuncia que: "A liberdade é constitucionalmente garantida, não se podendo anular por outra norma constitucional (inc. IV do art. 60), menos ainda por norma de hierarquia inferior (lei civil), ainda que sob o argumento de se estar a resguardar e proteger outro direito constitucionalmente assegurado." ( ADI 4815 , Relator (a): Min. CÁRMEN LÚCIA , Tribunal Pleno, julgado em 10/06/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-018 DIVULG XXXXX-01-2016 PUBLIC XXXXX-02-2016). 2. Diferentemente da democracia ateniense, a liberdade de expressão no contexto contemporâneo não existe para o benefício da pólis, ou enriquecimento de virtudes morais. Ela se consagra, hoje, como faculdade ou atributo da pessoa. Constitui-se como direito público subjetivo de resistência, direcionado justamente contra o Estado, como disse o Tribunal Constitucional Alemão no caso Lüth (BVerfGE 7, 198 - Lüth), o que, por isso mesmo, veda qualquer forma de censura prévia. Assim, a veiculação de expressões depreciativas, malgrado seu conteúdo acerbo é, em princípio, intangível. Reprimi-las, apenas pelo fato de terem sido proferidas, apenas por sinalizarem opróbio ou protesto, ainda que bastante incisivas, seria inconstitucional dada a estreita motivação ideológica ou sentimental do ato, devendo-se, além disso, atentar-se para o fato de que uma rigidez acentuada nesse controle inibiria o cidadão de exercitar esse direito fundamental. 3. Muito pelo contrário: a liberdade de pensamento e expressão não é garantida apenas quando se a utiliza para boas práticas. Se algum valor há nela, como dito, é justamente quando se revela incômodo, inconveniente, desconcertante mesmo, se disso não resulta ofensa específica à dignidade de alguém, principalmente quando o alguém é o próprio Estado, ou um grupo seleto de pessoas. Há de se ter, principalmente em tais casos, redobradas cautelas ao prospectar seus eventuais limites, pois é particularmente aí que a liberdade costuma ofender (Clarice Lispector). Essas ofensas, contudo, não atingem nem a honra, nem a dignidade ou exporiam pessoa ou coletividade a qualquer vexame; são mais, isso sim, tão-somente fruto de uma conveniência momentânea contra quem faz uso de seu lugar de fala. 4. Nada obstante tudo isso, é também sabido que o direito de liberdade de expressão pode ser desvirtuado. A fórmula acompanha o constitucionalismo desde seus albores com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789: se usada com excessos, franqueia-se as sanções próprias dos atos ilícitos tanto na esfera civil como penal. Com efeito, o consagrado texto francês usa palavras tão próximas ao português que dispensa tradução: "La libre communication des pensées et des opinions est un des droits les plus précieux de l'Homme: tout Citoyen peut donc parler, écrire, imprimer librement, sauf à répondre de l'abus de cette liberté, dans les cas déterminés par la Loi." 5. O caso Ellwanger, por muitos conhecido, foi uma dessas situações. Na ocasião, o Supremo consignou que a liberdade de expressão não é realmente um direito absoluto, não sendo contrária ao texto constitucional a sanção de condutas atentatórias a determinados bens ou interesses jurídicos. O cenário fático era de um autor e editor de livros que publicava livros de caráter antissemita, propondo abertamente um revisionismo histórico tendente a negar o holocausto judeu sob o jugo nazista. Ellwanger fora condenado pelo crime do art. 20 da Lei n. 7.716 /1989, com a redação dada pela Lei n. 8.081 /90 (racismo). A augusta Corte consignou que a edição ou a publicação de fatos não verdadeiros - vale dizer, fatos que negavam o Holocausto - não estariam protegidos, pois poderiam incitar atos ou manifestações que atualmente são denominadas de ódio. (STF. HC 82424 , Relator (a) p/ Acórdão: Min. MAURÍCIO CORRÊA , Tribunal Pleno, julgado em 17/09/2003, DJ XXXXX-03-2004 PP-00017). 6. Ainda assim há de se ter cautela. Se se for um pouco para um lado, estar-se-á condenando as pessoas a simplesmente acatar uma versão da História "goela abaixo"; por outro, seu uso pode importar, sim, em ódio racial, o que equivaleria, como dito pela Suprema Corte, "à incitação ao discrímen". Note-se que, mais recentemente, a Suprema Corte reafirmou a ratio do caso Ellwanger no julgamento da ADO XXXXX/DF (Ministro Celso de Mello ), onde se reconheceu a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, como fato típico nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716 /89. Na ocasião, a augusta Corte também confrontou a questão criminal decorrente do discurso de ódio a uma determinada classe de pessoas e o direito de liberdade de religião, em conformidade com o trecho da ementa da mencionada Ação Direta abaixo transcrito: 7. "- A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero." 8. Desse modo, o que se deve ter em conta para a tipificação do crime de injúria racial, conforme o art. 20 , § 2º , da Lei nº 7.716 /89, no qual restou denunciado, é a efetiva potencialidade de suas palavras (ou texto divulgado perante rede social na internet) para deflagrar efetivamente a ofensa aos bens protegidos na mencionada norma de resguardo, a saber "a discriminação ou o preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional." Isso considerado, os fatos dos autos são, basicamente os seguintes: " Luís Olímpio Ferraz Melo é responsável por publicar na página da rede social Facebook denominada"Sempre Freud", em postagem datada de 14 de março de 2020, texto de notório cunho racista e incentivador ao discrímen do povo judeu, fundado em ideias que buscam resgatar uma concepção preconceituosa de raça infausta ao imputar responsabilidade sobre fatos históricos dolorosos à humanidade." 9. A grande questão aqui é saber se o denunciado agiu apenas ventilando ideias que, apesar de sabidamente inconsequentes, ainda assim continuariam sendo forma de manifestação da liberdade de pensamento, ainda que importassem algum grau de negacionismo, ou, passando desses estritos limites, representou efetivamente pronunciamento vedado porque capaz de agredir uma coletividade inteira e, além disso, infundir um discurso segregacionista num contexto sensível onde já existe, como se sabe, uma latente segmentação, a qual, por isso mesmo, não pode ser alimentada ainda que por palavras aparentemente inocentes. No caso, as palavras postadas em grande plataforma de comunicação na rede mundial de computadores são muito nítidas no sentido de que a ideia era mesmo agredir, menosprezar, disseminar a imemorial desconfiança da cultura ocidental para com os judeus. Não se trata de mera aleivosia ou despautério, veja-se: 10. "A época em que os judeus foram mais perseguidos foi durante a 'Peste Negra', na Idade Média, pois em três anos a população europeia reduziu-se à metade infectada pela Peste Negra, porém nenhum judeu morreu nesse período, o que levantou as suspeitas de que os judeus estariam por trás dessa hecatombe programada. Os judeus estão se vingando da civilização por terem sido escravos no Egito por 430 anos (Êxodo 12:40), daí terem escravizado a civilização usando o falacioso Holocausto para se vitimizar propagando que seis milhões de judeus teriam sido assassinados na Segunda Guerra, mas que não há uma só prova, pelo contrário, pois até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso. Até o presente momento não há registro de nenhum dos quinze milhões de judeus infectados pelo coronavírus em Israel ou outra plaga, portanto, deve-se ficar de olho nesse fato histórico incontroverso. A 'gripe suína' (H1N1) restou provada de que foi programada e beneficiou o grupo judaico Rockefeller, controlador do laboratório Roche que apresentou o inútil Tamiflu como prevenção da gripe suína e faturou bilhões de dólares nessa falsa pandemia. Só Jesus Cristo nessa causa." 11 Inexiste a referência a qualquer pronunciamento acadêmico, científico, decorrente de pesquisa histórica, como, inclusive, foi mencionado pela defesa de Siegfried Ellwanger no mencionado leading case. Aqui, a postagem foi clara e rasa em sua única intenção: colocar uma vez mais sob suspeitas o povo judeu como um todo na condição de disseminadores de pragas, pestes e crises mundiais, sejam de ordem sanitária como econômica, para obter alguma forma de lucro. Mais interessante ainda, quando confrontado em audiência, em várias ocasiões em que procurou se esquivar das perguntas sobre os possíveis efeitos deletérios de sua postagem, o réu, perguntado diretamente sobre se ele via realmente uma vingança do povo judeu mercê de sua perseguição na Europa, respondeu que era um ponto de vista seu, inclusive se vangloriando de que teria dado direito de resposta aos interessados para provar o contrário. (Depoimento 1h38'00"em diante da gravação da audiência). 12. Na verdade, o apelado, realmente, não refuta em momento algum as suas palavras, antes as defende, ainda que sob o manto da humildade de que se for provado o contrário ele passaria a rever suas próprias concepções, mas que a História é formada por várias versões sobre os fatos ocorridos e que ele teria direito de fazer veicular as suas. O apelado faz do direito de liberdade de pensamento seu álibi, contudo, insiste-se, suas palavras não expressam sequer um posicionamento meramente revisionista, senão que a afirmação, sem maiores mascaramentos, de palavras beligerantes a toda uma coletividade. Por fim, não se diga nem que tais palavras não possuíam potencial lesivo e nem que o apelado procurou apenas negar a quantidade de pessoas exterminadas no holocausto. A veiculação de postagens por redes sociais existentes na internet é perceptivelmente mais gravosa que a edição pontual de livros, como ocorreu no caso Ellwanger, tanto que especialmente qualificada pelo § 2º da Lei nº 7.716 /89. 13. Até as testemunhas de defesa deram conta de como as postagens do apelado são amplamente vistas e replicadas, tendo grande inserção social. Por outro lado, o apelado se apresenta como estudioso qualificado (psicanalista e advogado), de modo que o que escreve não é tomado por quem o lê como algo jocoso ou mera ironia, mas algo sério a ser considerado. Do mesmo modo, a postagem não se limita a negar o número de pessoas mortas no Holocausto. A afirmação foi:" pois até intelectuais judeus negam esse evento fantasioso ". E o evento era:" o falacioso Holocausto ". Ainda que o fosse, sinceramente daria no mesmo negar o extermínio como um todo ou a quantidade de vítimas. De todo modo, a partir do caso Ellwanger, tomou-se por base a dicção do Código Penal alemão que considera crime seja a manifestação de apreço, que negue ou pelo menos que atenue os efeitos dos atos praticados durante o regime nacional-socialista (§ 130, 3), ou ainda viole a dignidade de suas vítimas aprovando, glorificando, ou justificando o regime nacional-socialista (§ 130, 4). 14. Por tudo isso, presentes a autoria, a materialidade, bem como os indicativos necessários de vontade livre e consciente para o cometimento do crime que é imputado ao apelado, deve a denúncia ser julgada procedente para condenar o réu nas tenazes do art. 20 , §, 2º , da Lei nº 7.716 /89 (forma qualificada), fixando-se a dosimetria em sua forma mínima, no que se refere a pena privativa de liberdade, ante a ausência de qualquer condição judicial para além da própria tipificação existente, bem como por inexistir outras agravantes, atenuantes, majorantes ou minorantes. Também face ao quantum fixado, a natureza da infração e a inexistência de qualquer elemento pessoal do réu que o impeça, fica a pena restritiva de liberdade substituída em duas restritivas de direito a cargo do juiz da execução penal. Quanto à pena de multa, ela fica fixada no importe de dez dias-multa, no valor, cada dia-multa, de um salário mínimo ao momento do cometimento da infração. 15. Apelação (do Ministério Público Federal) provida BC