PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ATO ADMINISTRATIVO. EVENTO ?NA PRAIA?. AUTOS DE INFRAÇÃO MOTIVADOS POR POLUIÇÃO SONORA. COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO DO PODER PÚBLICO. RECURSO PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO. 1. Conforme manifestação do IBRAM ao ID XXXXX, p. 4, o auto de infração ambiental n. 08302/2019 foi anulado administrativamente, a pedido da própria autoridade autuante, por apresentar vícios insanáveis. Por conseguinte, não há interesse recursal quanto ao pedido de declaração de nulidade do reportado ato administrativo. Aliás, o julgamento que o considerou nulo ocorreu em 15/8/2019, antes da interposição do presente recurso. Recurso parcialmente conhecido. 2. O evento ?Na Praia? teve início em 2015, com atrações musicais/shows, além de música mecânica. Especificamente em relação à edição de 2019, a autorização está ao ID XXXXX, mediante pagamento de preço público, pressupondo-se, pois, o cumprimento das exigências legais para o funcionamento. Inexiste controvérsia de que o evento goza de todas as autorizações/permissões pela Administração Pública, bem como de que todas as atividades realizadas foram consentidas pelo Poder Público, inclusive com público diário superior a 7 (sete) mil pessoas. 3. Tendo em vista a realização de shows musicais em área aberta, o tratamento acústico é dificultado e, com a elevada quantidade de público, invariavelmente, haveria superação dos limites de ruídos nas cercanias do evento. Não obstante, a Administração Pública renovou anualmente as licenças. 4. Diante de tal quadro, evidencia-se que, ao autorizar o ?Na Praia? em local regular, construído para tal finalidade, público e aberto, com significativo número de participantes e shows musicais, é inarredável a conclusão de que o Poder Público aquiesceu com as condições inerentes a tal espécie de evento, de modo que as punições por poluição sonora, na forma como realizadas, representam comportamento contraditório da Administração Pública e violação à segurança jurídica no desdobramento da proteção de confiança. 5. O local em que autorizado o evento objeto da lide, a Concha Acústica, é próprio para shows, consoante informação da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Distrito Federal, ad litteris: ?Localizada às margens do Lago Paranoá, no Setor de Clubes Esportivos Norte (ao lado do Museu de Arte de Brasília - MAB), está a Concha Acústica do DF. Projetada por Oscar Niemeyer, foi inaugurada oficialmente em 1969 e doada pela Terracap à Fundação Cultural de Brasília, hoje Secretaria de Cultura, destinada a espetáculos ao ar livre. Foi o primeiro grande palco da cidade.? http://www.cultura.df.gov.br/concha-acustica/ 6. Acerca da cláusula geral da boa-fé que deve reger as relações jurídicas, destaca-se a aplicação do princípio da proibição do comportamento contraditório ao Poder Público. Nessa linha, a doutrina de Anderson Schreiber, Procurador do Estado do Rio de Janeiro, in verbis: ?Não obstante, mesmo aqueles que restringem a aplicabilidade da boa-fé objetiva às relações privadas, devem admitir a incidência do princípio de proibição do comportamento contraditório em relações de direito público, seja como expressão de institutos verdadeiramente publicísticos (como a moralidade administrativa e a igualdade dos administrados em face da Administração Pública) ou como resultado da direta aplicação do valor constitucional da solidariedade social. A Administração Pública, note-se, tem o dever de rever seus próprios atos quando eivados de ilegalidade, mas deve adotar todas as cautelas para evitar ou atenuar os danos que possam ser causados, por conta disso, àqueles que, de boa-fé, confiaram no sentido de seu comportamento inicial? (SCHREIBER, Anderson. A Proibição do Comportamento Contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 21). Sobre a proteção de confiança, a lembrança pertinente de Odete Medauar: ?Um dos desdobramentos do princípio da segurança jurídica encontra-se no princípio da proteção da confiança, também denominado princípio da confiança legítima. Consagrado no direito alemão e no holandês, por exemplo, vem-se consolidando na jurisprudência da Corte de Justiça da União Europeia. E vem recebendo atenção dos estudiosos. A proteção da confiança diz respeito à preservação de direitos e expectativas de particulares ante alterações inopinadas de normas e de orientações administrativas que, mesmo legais, são de tal modo abruptas ou radicais que suas consequências se revelam desastrosas; também se refere à realização de promessas ou compromissos aventados pela Administração, que geraram esperanças fundadas no seu cumprimento. Entre seus reflexos estão: preservação de direitos suscetíveis de se constituir, ante expectativas geradas por medidas da Administração ou informações erradas; proteção, aos particulares, contra mudanças abruptas de orientações da Administração; necessidade de regime de transição ante mudança de disciplina normativa? (MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 21ª ed. - Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 131) 7. É pertinente evocar parte das razões de decidir no agravo de instrumento n. XXXXX-69.2019.8.07.0000 , desta Relatoria, referente à ação civil pública n. XXXXX-92.2019.8.07.0018 , ad litteris: ?(...) Humberto Theodoro Junior, referenciando Canotilho, destaca que o princípio geral de segurança jurídica exige confiabilidade, clareza, razoabilidade e transparência. E repete que todos têm o direito de confiar que 'aos seus atos ou às decisões públicas concernentes a seus direitos, posições ou relações jurídicas fundadas sobre normas jurídicas válidas e em vigor, se vinculem os efeitos previstos e assinados por estas mesmas normas' (THEODORO JÚNIOR, Humberto. A onda reformista do direito positivo e suas implicações com o princípio da segurança jurídica. Revista de Processo, São Paulo, n.136, p. 32-57, jun. 2006). Dworkin, ao discorrer sobre coerência e integridade no direito, em determinado ponto, relacionado ao Juiz Hércules e à metáfora do romance em cadeia, afirma que os ideais de coerência e integridade vem exigir que 'os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo as mesmas normas' (DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. Revisão técnica de Gildo Sá Leitão Rios. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 291. Título original: Law?s Empire). O que releva notar, para esta reflexão, no específico aspecto, é que o exercício do poder, qualquer que seja a sua natureza, deve obediência a limites normativos e a princípios éticos. Mas, o exercício do poder deve, também, ter adequada correspondência com os anseios das pessoas sobre as quais ele é exercido. O descompasso, aqui, entre justas expectativas e a imposição decorrente de tal exercício, é causa de crise de legitimidade?. 8. Confira-se, por todos, a clara lição do Supremo Tribunal Federal sobre a vedação ao comportamento contraditório, inclusive nas relações jurídicas de direito público: ?(...) CLÁUSULA GERAL QUE CONSAGRA A PROIBIÇÃO DO COMPORTAMENTO CONTRADITÓRIO - INCIDÊNCIA DESSA CLÁUSULA (?NEMO POTEST VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM?) NAS RELAÇÕES JURÍDICAS, INCLUSIVE NAS DE DIREITO PÚBLICO QUE SE ESTABELECEM ENTRE OS ADMINISTRADOS E O PODER PÚBLICO - PRETENSÃO MANDAMENTAL QUE SE AJUSTA À DIRETRIZ JURISPRUDENCIAL FIRMADA PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (...)? (MS 31695 AgR, Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 03/02/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-067 DIVULG XXXXX-04-2015 PUBLIC XXXXX-04-2015). Na mesma linha, inúmeros precedentes do Superior Tribunal de Justiça. 9. Importante repetir, portanto, que o evento ocorreu em área recreativa e adequada à sua finalidade, e há prova nos autos atestando o empenho dos produtores em mitigar os ruídos sonoros em relação às adjacências, com instalação de barreiras acústicas. A título exemplificativo, sem adentrar no mérito da retidão da medida, a Prefeitura de Salvador/BA, editou a Lei n. 8.675/2014, aumentando, em algumas regiões da capital, o limite de decibéis durante o período carnavalesco, haja vista a preocupação em não punir os produtores/artistas da festa popular (Carnaval) legalmente autorizada, a fim de evitar comportamento contraditório ou malferir a proteção da confiança. 10. Ressalte-se que, em curto período, cerca trinta dias, foram impostos quatro autos de infração ao Evento, o primeiro, lavrado em 18/7/2019, aplicou penalidade de advertência e multa de R$10.000,00 (dez mil reais), o segundo, lavrado em 9/7/2019, impôs multa de R$20.000,00 (vinte mil reais), o terceiro, lavrado em 25/7/2019, impingiu multa de R$307.305,32 (trezentos e sete mil trezentos e cinco reais e trinta e dois centavos) e o quarto, lavrado em 6/8/2019, infligiu multa de R$396.070,00 (trezentos e noventa e seis mil reais), mais a penalidade de ?interdição parcial das emissões sonoras mecânicas e/ou ao vivo?. Significa dizer, no período de aproximadamente duas semanas, entre o segundo auto de infração e o terceiro, a multa teve um incremento da ordem de 1.500% (mil e quinhentos por cento), e sem amparo normativo. Posteriormente, em menos de duas semanas, outra multa de elevado valor (R$396.070,00 - trezentos e noventa e seis mil reais). Somando-se, as multas alcançam o exorbitante montante de R$733.375,32 (setecentos e trinta e três mil trezentos e setenta e cinco reais e trinta e dois centavos), em evento devidamente licenciado pelo Poder Público, incorrendo-se, mais uma vez, em comportamento contraditório. 11. Para além, a Lei Distrital n. 4.092/2008, que dispõe sobre o controle da poluição sonora e os limites máximos de intensidade da emissão de sons e ruídos resultantes de atividades urbanas e rurais no Distrito Federal, estipula