DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. INTERPOSIÇÃO CONCOMITANTE. DEFESA E MINISTÉRIO PÚBLICO. PLEITO DEFENSIVO DE ABSOLVIÇÃO DOS APELANTES. ALEGAÇÃO DE INSUFICIÊNCIA DE PROVA. NEGATIVA DE AUTORIA. DECLARAÇÃO DO CORRÉU NÃO RECORRENTE PELA NÃO PARTICIPAÇÃO DE UM DOS RECORRENTES. RECONHECIMENTO NA FASE POLICIAL. INOBSERVÂNCIA DA RITUALÍSTICA DO ART. 226 DO CPP . PROVA INVÁLIDA. EMPRÉSTIMO DE VEÍCULO. DÚVIDA SOBRE CIÊNCIA DO PROPRIETÁRIO ACERCA DA FINALIDADE DO EMPRÉSTIMO. PLEITO MINISTERIAL PELA CONDENAÇÃO PELO CRIME DE ASSOCIAÇÃO CRIMINOSA. IMPOSSIBILIDADE. NÃO PRODUÇÃO DE PROVA DEMONSTRATIVA DA ESTABILIDADE E PERMANÊNCIA. RECURSOS CONHECIDOS. PLEITO MINISTERIAL IMPROVIDO. PLEITO DEFENSIVO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. 1. Versa o presente caderno processual sobre recursos de apelação interpostos pelo Ministério Público do Estado do Ceará e pela defesa dos réus Jefferson dos Santos Tomaz e Leonardo dos Santos Brito, contrapondo-se à sentença prolatada pelo Juízo da 13ª Vara Criminal da Comarca de Fortaleza/CE, que julgou parcialmente procedente a pretensão acusatória formulada na denúncia, condenando os acusados pela prática de roubo majorado. 2. A materialidade delitiva do crime de roubo se encontra consubstanciada no Auto de Apreensão e Apresentação acostado à pág. 30, no depoimento inquisitorial das vítimas, pelos testemunhos prestados em juízo e pela confissão realizada por um dos corréus. Sobre a autoria delitiva, a defesa dos recorrentes alega que não há nos autos elementos suficientemente concretos para permitir que seja proferida, em desfavor destes, uma sentença condenatória, pelo que solicita, com espeque no art. 386 , incs. V e VII do CPP , a absolvição de ambos. 3. No cotejo da prova oral colacionada, sobretudo dos interrogatórios dos réus que enveredam pela negativa de autoria e os depoimentos das testemunhas, depreende-se que a narrativa de inocência pelo recorrente Jefferson dos Santos Tomaz, encontra guarida especialmente na versão do corréu Anderson Pinheiro Rocha, vulgo "Cabeça". Vê-se, no deslindar da prova até aqui colacionada, que citado réu negou sua participação no crime, informando que durante o acontecer criminal estaria numa padaria, e que haveria, inclusive, filmagem do estabelecimento comprovando sua versão. 4. É bem verdade que não foi anexado nos autos a mídia contendo a gravação digital que comprovasse que Jefferson efetivamente estivesse na padaria quando da prática do crime, tampouco a defesa arrolou Kelly como testemunha, para confirmar que ele estaria naquele local para se encontrar com ela, e não para interagir com o corréu Anderson, v. "Cabeça", que lá havia chegado. Não obstante a isso, a narrativa ora exposta, que não se mune de efetivas provas que possam corroborar o que foi dito, é, de outro lado, confortada por acontecimentos alheios à versão apresentada pelo incriminado Jefferson, a saber: a) o acusado Anderson, v. "Cabeção", que é réu confesso, foi muito enfático em afirmar, por diversas vezes, que Jefferson não participou de nenhuma forma da ação criminosa; que Jefferson foi preso tão só por estar "no lugar errado e na hora errada", isto é, por ter sido encontrado, por um infortúnio do tempo, ao lado de Anderson, v. "Cabeção", naquela lagoa, e naquele dia; b) o suposto papel atribuído pela investigação criminal a Jefferson, seria o de piloto da motocicleta utilizada para a consecução do crime. Anderson v. "Cabeção" informa, porém, que este piloto seria um sujeito denominado Igor, e não Jefferson; c) é fato inconteste, por informação trazida tanto pelos acusados, como pelas vítimas, que o dito piloto da motocicleta utilizava um capacete, o que prejudicaria o eventual reconhecimento realizado a posteriori; d) reconhecimento pessoal realizado pelas vítimas, que afirmaram ser Jefferson o piloto da moto, justificaram-se na similitude do porte físico e dos olhos deste, com o do piloto. 5. De logo, portanto, percebe-se a fragilidade que permeia o reconhecimento pessoal realizado. Primeiro, a pessoa-referência, isto é, o criminoso, utilizava um capacete, sendo assim, os fatores de identificação que as vítimas carregavam consigo em relação ao sujeito, aptos a serem empregados no ato de reconhecimento, eram tão só o porte físico e os olhos. Acontece, que porte físico e olhos de uma pessoa, são aspectos fenotípicos muito precários a se ter como referência. Se o suspeito tinha o porte físico magro, altura mediana e olhos de determinada cor, quantas pessoas não têm essas mesmas características? Não se pode pôr em linha de igualdade o reconhecimento levado a efeito de tal forma, com aquele realizado por vítima que efetivamente viu o rosto do criminoso, guardando para si um amealhado de informações e características físicas, de forma a permitir, na sua esfera psíquica, a ocorrência de uma individualização acentuada do sujeito. Não há como se abstrair, também, da irregularidade operada no reconhecimento, que foi realizado em dissonância com a ritualística prevista no art. 226 do CPP . O citado ato se deu incidentalmente dentro do próprio termo de declarações das vítimas, e não há registro documental, por termo próprio, de que a autoridade policial tenha perfilado o suspeito Jefferson (ora apelante) juntamente com outras pessoas que tenham uma mínima semelhança com aquele, tampouco se verifica qualquer justificativa formal para tal lacuna, vulnerando, portanto, a legalidade da medida. Em vislumbre à cronologia dos fatos, tem-se que a autoridade dispôs de condições e mecanismos que lhe possibilitavam a realização do reconhecimento nos moldes do art. 226 do CPP , todavia, não o fez e não justificou por que não o fez, terminando por incorrer em lacuna impreenchível por outras provas. 6. O Superior Tribunal de Justiça, em recente decisão com a qual me filio, não admite condenação lastreada em reconhecimento não subordinado aos ditames do art. 226 do CPP . O posicionamento do STJ guarda perfeita pertinência com os estudos da psicologia moderna, que dizem, nas precisas palavras do ministro relator da decisão paradigma acima transcrita, que "são comuns as falhas e os equívocos que podem advir da memória humana e da capacidade de armazenamento de informações. Isso porque a memória pode, ao longo do tempo, se fragmentar e, por fim, se tornar inacessível para a reconstrução do fato. O valor probatório do reconhecimento, portanto, possui considerável grau de subjetivismo, a potencializar falhas e distorções do ato e, consequentemente, causar erros judiciários de efeitos deletérios e muitas vezes irreversíveis". (STJ, HABEAS CORPUS Nº 598.886 - SC (2020/XXXXX-3); Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz; Julg. 21/10/2020). 7. Importante relembrar, ainda, a questão das provas ilegítimas por derivação, que são aquelas provas que em si mesmas são lícitas, mas que foram captadas de forma ilegítima, por malferimento às regras processuais. É a conhecida teoria dos "frutos da árvore envenenada", segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos. Assim, se somente foi possível obter determinada prova (descoberta da identidade do réu Jefferson) mediante ofensa a direito processual, é inquestionável que a prova subsequente (mesmas vítimas que confirmam o reconhecimento em juízo) somente veio à tona em razão da ilicitude inicialmente praticada e, portanto, é igualmente inadmissível. Percebe-se, assim, que o centro gravitacional da prova está apenas nas declarações das vítimas, cujo início se perfez desastroso, sem a rubrica da legalidade processual, a partir de onde deriva a pretensa "descoberta" da identidade do autor do crime, até então não esclarecida. A condenação hostilizada pelo recorrente Jefferson dos Santos Tomaz, portanto, não reúne requisitos mínimos de validade, de modo que, outra solução não se apresenta, senão, a absolvição do apelante. 8. No tocante à prova acusatória que rodeia o recorrente Leonardo dos Santos Brito, percebe-se, de logo, sua extrema fragilidade. É que há, em desfavor dele, tão-somente a circunstância de ser ele o proprietário da motocicleta empregada no roubo e o relato judicial do corréu Anderson Pinheiro Rocha, v. "Cabeça", eivada de inconsistência e potencializada por possível revanchismo. A pretensa delação do corréu é dúbia, pois em um instante da narrativa, afirma que a moto utilizada no roubo seria de Leonardo, ora recorrente. 9. Entretanto, aduziu que a moto de propriedade de Leonardo, estava em posse de um outro sujeito, denominado Marleudo, e que ele [Marleudo] é quem teria autorizado a utilização da motocicleta no roubo, malgrado o veículo não fosse seu. Em certo trecho, inclusive, diz o corréu: "o Marleudo que autorizou e deu a moto, agora eu não sei se ele se comunicou com o dono da moto, que é o Leo", o que revela a ausência de certeza, acerca da efetiva participação, ou não, de Leonardo. 10. Nos momentos finais do interrogatório, porém, Anderson v. "Cabeça" informa que no mesmo dia da ação criminosa, foi ao encontro de Leonardo, e lhe repassou sua quantia de participação, qual seja, cinquenta reais. Dessa versão ressai uma dúvida que permanece sem resposta: O sujeito chamado Marleudo, teria emprestado à efetivação do roubo, uma moto que não lhe pertencia, e o real proprietário [Leonardo] teria ficado a ver navios sem saber de nada, ou Leonardo, que supostamente recebera cinquenta reais, teria anuído com a "sublocação" do veículo, e, portanto, teria participação na empreitada delituosa? Ademais, não há como se afastar uma possível predisposição do acusado "Cabeça" para falsear a verdade, como ato de revanchismo contra Leonardo, ao atribuir a este sua ciência e sua adesão ao empreendimento criminoso, como forma de revidar a "delação" feita por Leonardo, ao afirmar aos policiais que ele ("Cabeça") foi quem pedira a moto emprestada, tendo inclusive indicado aos agentes da lei o endereço do citado acusado. Nada mais natural, portanto, que o delator tenha agido impulsionado por um sentimento de vingança, um contragolpe contra a delação do proprietário da moto, razão pela qual suas declarações, nesse particular, devem ser recebidas com extrema reserva. 11. Parece-me ser um clarividente caso de aplicação do princípio in dubio pro reo, máxima que preleciona que, na ocorrência de dúvida entre a versão acusatória e a defensiva, deve o julgador optar por esta última. Nesse sentido, tem-se que as vítimas sequer visualizaram o recorrente Leonardo na ação criminosa, porquanto ele teria contribuído apenas com o fornecimento da moto, e não estava no estabelecimento roubado; ele sequer estava na lagoa, localidade que supostamente os incriminados estariam associando-se com objetivos infracionais; há, em verdade, como dito, apenas o relato do corréu Anderson, que, todavia, não é contundente a demonstrar de modo cristalino a participação intencional de Leonardo, isto é, o dolo específico criminoso, quando da entrega da moto. 12. Por fim, o Ministério Público do Estado do Ceará, por sua vez, manejou recurso de apelação insurgindo-se parcialmente contra a sentença atacada, contrapondo-se ao decreto absolutório de todos os réus em relação ao delito de associação criminosa. 13. No caso em tablado, não há elementos concretos que demonstrem cabalmente a existência de um vínculo associativo dotado de estabilidade e durabilidade entre os corréus. Não há prova de que os réus promoviam reuniões periódicas, frequentemente, de modo duradouro. Inexistem elementos a demonstrar uma organização associativa, mínima que seja, com definição da tarefas, angariação de meios para a prática delitivas (armas, transportes), anotações sobre a divisão dos resultados financeiros advindos dos crimes cometidos. 14. Como bem se assenta na sentença vergastada: "para a caracterização de uma associação criminosa é necessário a existência de uma organização detalhadamente definida, com uma hierarquia entre seus membros e repartição prevista de funções entre cada um deles." (pág.370). Nada, absolutamente nada que venha a comprovar tais condutas, de modo que a suposta prova da associação não ultrapassa a "reunião" que parte do grupo fazia na lagoa, além de informações sobre a contumácia penal de parte dos acusados. 15. Afirmar que faz prova de associação criminosa uma reunião entre três ou mais pessoas, à margem de uma lagoa (local, aliás, propício para atividades recreativas), pelo único fato dessas pessoas serem apontadas como autoras de delitos, é aceitar que uma presunção se trasmude em verdade, prestigiando a responsabilidade objetiva em detrimento da responsabilidade subjetiva que deve imperar no processo penal. 16. Recursos conhecidos. Pleito ministerial improvido. Pleito defensivo provido. Sentença reformada. ACÓRDÃO Acordam os integrantes da Terceira Câmara Criminal deste Egrégio Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por uma de suas Turma, por unanimidade, em conhecer dos recursos e, no mérito, negar provimento ao pleito ministerial e dar provimento ao pleito da defesa, nos termos do voto desta relatora. Fortaleza, 24 de maio de 2022. Marlúcia de Araújo Bezerra Relatora