RECURSO ORDINÁRIO DO SINDICATO DAS EMPRESAS DE SEGURANÇA E VIGILÂNCIA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL - SINDESP. AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULAS DE CONVENÇÃO COLETIVA DE TRABALHO PROPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO. PROCESSO SOB A ÉGIDE DA LEI 13.467 /2017 . 1. BASE DE CÁLCULO PARA AFERIÇÃO DA COTA DE APRENDIZES E DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA A SEREM CONTRATADOS. EXCLUSÃO DE DETERMINADAS FUNÇÕES PARA CÁLCULO DOS PERCENTUAIS PREVISTOS NOS ARTS. 429 DA CLT E 93 DA LEI 8.213 /91. IMPOSSIBILIDADE. INTERESSES DIFUSOS SOBRE OS QUAIS OS SINDICATOS DA CATEGORIA PROFISSIONAL E ECONÔMICA NÃO TÊM LEGITIMIDADE PARA TRANSACIONAR. Discute-se nos autos a validade de normas coletivas autônomas que flexibilizaram regras legais pertinentes ao sistema de cotas na contratação de empregados aprendizes (art. 429 da CLT ) e de pessoas com deficiência ou beneficiárias de licença previdenciária em processo de reabilitação (art. 93 , caput , da Lei nº 8.213 /91), excluindo determinadas funções da base de cálculo legal, a fim de reduzir o número total de beneficiários. Independentemente do conteúdo das cláusulas, certo é que os Sindicatos não têm legitimidade para produzirem normas que reduzam direitos e garantias asseguradas a comunidades de pessoas humanas que não se encontram inseridas no âmbito de suas respectivas representações. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que são inválidas cláusulas que extrapolem o âmbito do interesse coletivo das suas respectivas bases, especialmente se tais normas se contrapõem a proteções especiais e enfáticas conferidas pela Constituição e pela legislação federal imperativa a certos grupos de pessoas. Nesse sentido, são eivadas de nulidade as cláusulas que modificam as regras legais atinentes aos sistemas de cotas, pois estas traduzem uma proteção estatal aos direitos difusos de pessoas não necessariamente associadas às relações bilaterais de trabalho (no caso, jovens aprendizes e pessoas com deficiência). Faltando legitimação às entidades sindicais para normatizarem interesses e direitos externos às suas categorias, configura-se a nulidade da norma celebrada. Julgados desta Corte. Mantém-se, portanto, a declaração de nulidade da cláusula. Recurso ordinário desprovido, no tema. 2. CLÁUSULA 69ª - INTERVALO PARA REPOUSO E ALIMENTAÇÃO. O princípio da criatividade jurídica da negociação coletiva traduz a noção de que os processos negociais coletivos e seus instrumentos têm real poder de criar norma jurídica (com qualidades, prerrogativas e efeitos próprios a estas), em harmonia com a normatividade heterônoma estatal . Tal poder excepcional conferido pela ordem jurídica aos sujeitos coletivos trabalhistas (art. 7º, XXVI, da CF) desponta, certamente, como a mais notável característica do Direito Coletivo do Trabalho - circunstância que, além de tudo, influencia a estruturação mais democrática e inclusiva do conjunto da sociedade, tal como objetivado pela Constituição (art. 1º, II e III, 3º, I e IV, da CF). Não obstante a Constituição da Republica confira à negociação coletiva amplos poderes, não se trata jamais de um superpoder da sociedade civil, apto a desconsiderar, objetivamente, os princípios humanísticos e sociais da própria Constituição Federal, ou de, inusitadamente, rebaixar ou negligenciar o patamar de direitos individuais e sociais fundamentais dos direitos trabalhistas que sejam imperativamente fixados pela ordem jurídica do País. Desse modo, embora extensas as perspectivas de validade e eficácia jurídicas das normas autônomas coletivas em face das normas heterônomas imperativas, tais possiblidades não são plenas e irrefreáveis. Há limites objetivos à criatividade jurídica na negociação coletiva trabalhista. Neste ponto, desponta como instrumento imprescindível para avaliação das possibilidades e limites jurídicos da negociação coletiva o princípio da adequação setorial negociada, por meio do qual as normas autônomas juscoletivas, construídas para incidirem sobre certa comunidade econômico-profissional, não podem prevalecer se concretizada mediante ato estrito de renúncia (e não transação), bem como se concernentes a direitos revestidos de indisponibilidade absoluta (e não indisponibilidade relativa), imantadas por uma tutela de interesse público, por constituírem um patamar civilizatório mínimo que a sociedade democrática não concebe ver reduzido em qualquer segmento econômico-profissional, sob pena de se afrontarem a própria dignidade da pessoa humana e a valorização mínima deferível ao trabalho (arts. 1º, III, e 170, caput , CF/88). No caso brasileiro, esse patamar civilizatório mínimo está dado, essencialmente, por três grupos convergentes de normas trabalhistas heterônomas: as normas constitucionais em geral (respeitadas, é claro, as ressalvas parciais expressamente feitas pela própria Constituição: art. 7º, VI, XIII e XIV, por exemplo); as normas de tratados e convenções internacionais vigorantes no plano interno brasileiro (referidas pelo art. 5º, § 2º, CF/88, já expressando um patamar civilizatório no próprio mundo ocidental em que se integra o Brasil); as normas legais infraconstitucionais que asseguram patamares de cidadania ao indivíduo que labora (preceitos relativos à saúde e segurança no trabalho, normas concernentes a bases salariais mínimas, normas de identificação profissional, dispositivos antidiscriminatórios, etc .). Registre-se que, embora a Lei n. 13.467 /2017 tenha alargado o elenco de parcelas de indisponibilidade apenas relativa - inclusive, em muitos casos, em arrepio e desprezo ao estuário normativo da Constituição de 1988 (vide o amplo rol de temas constantes no art. 611-A da CLT )-, ela não buscou eliminar a fundamental distinção entre direitos de indisponibilidade absoluta e direitos de indisponibilidade relativa. Tanto é assim que o art. 611-B, em seus incisos I a XXX, projeta o princípio da adequação setorial negociada, ao estabelecer limites jurídicos objetivos à criatividade jurídica da negociação coletiva trabalhista, proibindo a supressão ou a redução dos direitos trabalhistas de indisponibilidade absoluta ali elencados. Em verdade, a doutrina e a jurisprudência deverão cotejar os objetivos precarizadores dos novos preceitos, onde couber, com o conjunto dos princípios e regras do próprio Direito do Trabalho, a par do conjunto dos princípios e regras da Constituição da Republica, no sentido de ajustar, pelo processo interpretativo e /ou pelo processo hierárquico, a natureza e o sentido do diploma legal novo à matriz civilizatória da Constituição de 1988, além do conjunto geral do Direito do Trabalho. A propósito, o Supremo Tribunal Federal , ao julgar o ARE 1.121.633 /GO - leading case do Tema 1.046 de Repercussão Geral cujo título é "Validade de norma coletiva de trabalho que limita ou restringe direito trabalhista não assegurado constitucionalmente" -, em decisão plenária concluída no dia 14/6/2022, fixou tese jurídica que reitera a compreensão de que existem limites objetivos à negociação coletiva, delineados a partir da aplicação dos critérios informados pelo princípio da adequação setorial negociada e pela percepção de que determinados direitos são revestidos de indisponibilidade absoluta. Eis a tese: "S ão constitucionais os acordos e as convenções coletivos que, ao considerarem a adequação setorial negociada, pactuam limitações ou afastamentos de direitos trabalhistas, independentemente da explicitação especificada de vantagens compensatórias, desde que respeitados os direitos absolutamente indisponíveis". Cumpre salientar que, passadas mais de três décadas de experiência jurídica e cultural intensa desde o advento da Constituição (de 1988 a 2023), a jurisprudência trabalhista já tem, contemporaneamente, aferido de modo bastante objetivo e transparente a adequação setorial negociada. Nessa linha, de maneira geral, tem considerado que, estando a parcela assegurada por regra estatal imperativa, ela prevalece soberanamente, sem possibilidade jurídica de supressão ou restrição pela negociação coletiva trabalhista, salvo se a própria regra heterônoma estatal abrir espaço à interveniência da regra coletiva negociada. No caso concreto , a controvérsia gira em torno da validade de norma coletiva que admite a possibilidade de supressão ou redução do intervalo de repouso e refeição. Para avaliar a questão, deve se atentar, primeiramente, para que os intervalos intrajornadas visam, fundamentalmente, a recuperar as energias do empregado, no contexto da concentração temporal de trabalho que caracteriza a jornada cumprida a cada dia pelo obreiro. Seus objetivos, portanto, concentram-se essencialmente em torno de considerações de saúde e segurança do trabalho, como instrumento relevante de preservação da higidez física e mental do trabalhador ao longo da prestação diária de serviços . Não há como afastar, pois, a conclusão de que tais intervalos materializam a preocupação da Constituição da Republica com a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII) . Isso significa que as normas jurídicas concernentes a intervalos intrajornadas também têm caráter de normas de saúde pública, não podendo, em princípio, ser suplantadas pela ação privada dos indivíduos e grupos sociais. Tais normas são, de maneira geral, imperativas. Assim, embora exista um significativo espaço à criatividade autônoma coletiva privada, hábil a tecer regras específicas aplicáveis em contraponto ao quadro normativo heterônomo, há claros limites. Naturalmente que, se houver autorização legal para que a negociação coletiva altere o padrão de intervalos fixado pela própria lei, essa autorização há de ser avaliada e poderá prevalecer. É o que acaba de acontecer por meio da Lei n. 13.467 /2017 (vigente desde 11.11.2017), que permitiu à negociação coletiva trabalhista fixar "intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas" (novo art. 611-A , III, CLT ), devendo a situação concreta ser examinada pelo Poder Judiciário. A despeito disso, é inegável que, antes do expresso permissivo jurídico heterônomo a respeito da matéria, decorrente da Lei da Reforma Trabalhista , o direito a uma hora de intervalo para jornadas superiores a seis horas, consagrado no art. 71 , caput , da CLT , detinha ampla e efetiva proteção, e não poderia ser mitigado pela negociação coletiva, conforme pacífica jurisprudência desta Corte (Súmula 437, II, do TST). Aliás, a Suprema Corte, no julgamento do ARE 1.121.633 , asseverou a necessidade de se observar a jurisprudência consolidada do TST e do próprio STF no exame judicial dos limites da negociação coletiva e na definição dos direitos trabalhistas considerados indisponíveis, por pertencerem ao grupo de normas que estabelecem um patamar mínimo civilizatório dos trabalhadores. Nesse sentido, na "tabela que sintetiza os principais julgados do TST e do STF" , ilustrada pelo Ministro Gilmar Mendes em seu voto condutor, o STF cita expressamente e ratifica a jurisprudência pacífica desta Corte sobre a invalidade de cláusula de acordo ou convenção coletiva de trabalho contemplando a supressão ou redução do intervalo intrajornada, conforme a Súmula 437, II/TST. Nesse contexto, considerada a imperatividade da legislação trabalhista a respeito do intervalo intrajornada (art. 71 , caput , da CLT ), a jurisprudência consolidada desta Corte sobre a matéria (Súmula 437, II/TST), bem como o entendimento desta SDC sufragado, por maioria, nos autos do processo nº TST- ROT-XXXXX-80.2019.5.04.0000 , julgado em outubro de 2023, deve ser considerada inválida norma coletiva que flexibiliza direito individual e social revestido de indisponibilidade absoluta, intangível à negociação coletiva, qual seja: o direito constitucional à melhoria das condições de trabalho e à redução dos riscos inerentes ao labor, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, caput e inciso XXII, da CF), entre as quais se destaca a que regula o intervalo intrajornada . Recurso ordinário desprovido, no aspecto. 3. CLÁUSULA 85ª - COTA DE SOLIDARIEDADE SINDICAL. INSURGÊNCIA RECURSAL LIMITADA À ALEGAÇÃO DE PREJUDICIALIDADE DO PEDIDO. Em que pese já ter expirado a vigência do instrumento normativo autônomo, as normas neles contidas são passíveis de verificação e anulação se violarem a lei. Afinal, ao menos durante o período da vigência, as condições de trabalho estabelecidas na Convenção Coletiva integraram os contratos da categoria profissional. Não há, portanto, que se falar em pedido prejudicado em face do alegado cumprimento da obrigação, tampouco em perda do objeto, porquanto as condições fixadas no instrumento normativo, cujas normas foram impugnadas, geraram direitos e obrigações para as Partes envolvidas. Nessa linha, infere-se que é inquestionável a possibilidade de se impugnarem as normas constantes no instrumento normativo autônomo e, se for o caso, declará-las nulas, na hipótese de malferirem a legislação em vigor. Ademais, embora o Sindicato Patronal alegue que a obrigação foi cumprida, o fato é que o percentual e a periodicidade do desconto relativo à contribuição assistencial foram alterados pelo TRT. Desse modo, não compete ao Poder Judiciário, em sede de Dissídio Coletivo em que se fixam cláusulas normativas, analisar eventual cumprimento/descumprimento das normas estabelecidas nos diplomas coletivos. Recurso ordinário desprovido, no aspecto. 4. AÇÃO ANULATÓRIA DE CLÁUSULA DE CONVENÇÃO COLETIVA. IMPOSIÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER. A ação anulatória tem natureza constitutiva negativa e, portanto, em face do seu caráter, é incabível a imposição de obrigação de fazer ou de não fazer, a cominação de multa pelo descumprimento da determinação judicial e o provimento condenatório. Recurso ordinário provido no tópico.