PROCESSO Nº: XXXXX-68.2017.4.05.8300 - APELAÇÃO CRIMINAL APELANTE: JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ e outro ADVOGADO: José Carlos Medeiros Junior e outro APELADO: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL RELATOR (A): Desembargador (a) Federal Fernando Braga Damasceno - 3ª Turma EMENTA: PENAL E PROCESSUAL PENAL. INSERÇÃO DE DADOS FALSOS EM SISTEMA DE INFORMAÇÕES DO INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL. PRELIMINAR DE INÉPCIA DA INICIAL ACUSATÓRIA QUE SE CONFUNDE COM O PRÓPRIO MÉRITO DA QUESTÃO. INOCORRÊNCIA DE PRESCRIÇÃO. AUSÊNCIA DE MATERIALIDADE DELITIVA. PROVIMENTO. 1. Trata-se de apelações interpostas de forma autônoma por FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA e JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ em face da sentença proferida pelo magistrado da 13ª Vara Federal de Pernambuco, que condenou o primeiro réu à pena de 4 anos de reclusão, e o segundo à de 5 anos de reclusão, pela prática do delito tipificado no artigo 313-A do Código Penal (inserção de dados falsos em sistema de informações) em face do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). 2. Mais precisamente, o juízo a quo reputou comprovado o fato de JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ , na qualidade de servidor público da Autarquia Previdenciária, juntamente com FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA , terem inserido informações inverídicas no sistema informático do INSS para concessão indevida de benefício previdenciário a ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE , que formulou o requerimento administrativo em 02/12/2011 na agência de Limoeiro/PE (NB XXXXX-2). 3. É contra tal sentença que FLÁVIO ANDRÉ PEREIRA LIMA se insurge, pugnando pela sua absolvição em razão de não haver provas de que ele cometeu o delito. Subsidiariamente, requer que, na hipótese de ser mantida a condenação, seja a pena reformada e fixada no mínimo legal, além da redução da sanção pecuniária imposta. Por fim, pede pela concessão do benefício da justiça gratuita. 4. JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ , por sua vez, requer preliminarmente o reconhecimento da inépcia da denúncia criminal, pois "não foram observados os preceitos autorizadores para o seguimento do feito". Também invoca a prescrição retroativa para reconhecimento da extinção da pretensão punitiva estatal. Quanto ao mérito propriamente dito, pugna pela sua absolvição em razão de não haver provas de que o concedeu benefício previdenciário irregulares, muito menos que alterou quaisquer dados para inclusão no sistema do INSS ou que tenha agido com dolo para tanto. Subsidiariamente, reivindica a reforma da pena a ele imposta 5. Inicialmente, no que se refere à prefacial de inépcia da peça acusatória, tem-se que esta, da forma como articulada - valoração de prova -, diz respeito ao próprio mérito da pretensão recursal - devendo, portanto, ser enfrentada nesse ponto. 6. Já no que se refere à alegação de prescrição retroativa, esta também não merece prosperar, uma vez que a sentença, proferida em 06/06/2018, condenou os apelantes às respectivas penas de 4 e 5 anos reclusão, de modo que, desde o recebimento da denúncia, ocorrido em 18 de maio de 2017, não houve transcurso de lapso temporal hábil a consumar o fenômeno prescricional. 7. Quanto à questão de mérito propriamente dita, é de se pontuar que os elementos de prova que levaram o juízo a quo a proferir a decisão, além do quanto produzido na audiência instrutória, foram o Relatório de Informação da Previdência Social, os documentos de fls. 09/35 do IPL e as cópias dos processos concessórios nº 147.737.101-7 e nº 54.466.487-8 - processos anteriores em que ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE formulou pedido de concessão de verba previdenciária, mas que foram negados. 8. No caso, o Relatório de Informação nº 014/REAPE-PE/APEGR/SE/MPS simplesmente aponta que há "fortes indícios de irregularidade" na concessão do benefício NB XXXXX-2 a ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE , porque esta teve, anteriormente, negado os pedidos para concessão dos benefícios NB XXXXX-7 e NB XXXXX-8, além de esta ter contraído empréstimo de R$ 5.638,25 logo após a concessão da mais recente verba previdenciária - empréstimo com o BMB contraído em 06/02/2012. 9. A propósito, é importante ressaltar que o último benefício obtido por ELZA, o NB XXXXX-2, não teve o processo concessório localizado na agência do INSS, o que já revela a impossibilidade de se analisar quais documentos foram apresentados nessa oportunidade, e se estes são autênticos ou não. Também deve-se frisar que, até o final da investigação promovida pela Polícia Federal, o benefício em tela não havia sido cancelado na via administrativa - até porque só pairavam "indícios de irregularidade" na sua concessão. 10. É dizer, o Relatório de Informação nº 014/REAPE-PE/APEGR/SE/MPS tal não evidencia prática ilícita dos envolvidos na presente demanda, mas apenas e tão somente "fortes indícios de irregularidade" na concessão da verba previdenciária do último requerimento, pois os dois primeiros pedidos formulados na via administrativa foram negados. 11. Quanto às fls. 09/35 do IPL, também utilizados pelo magistrado de primeiro grau para formação do juízo de responsabilidade criminal dos réus, é de se destacar que tal documentação se refere à primeira página de Procuração Pública outorgada por ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE ao réu FLÁVIO ANDRÉ PEREIRA LIMA , para que este a representasse perante o INSS; detalhamento de crédito e documentos pessoais da referida beneficiária - como RG e CPF -; cópia do CNIS; folha de espelho dos benefícios requeridos na via administrativa; cópia de movimentação processual e ementa de processo em que ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE moveu contra o INSS para a concessão de uma das verbas previdenciárias anteriormente negadas. 12. Tais dados não apontam para que FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA ou JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ tenham atuado em conjunto para inserção de dados falsos no sistema do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL para concessão supostamente ilícita de aposentadoria a ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE . A propósito, não é de se estranhar que tais documentos tenham sido apreendidos em poder do réu FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA , pois este, além de se apresentar como "consultor previdenciário", informou que trabalhou em escritórios de advocacia realizando atividades administrativas que envolviam análise de documentos dos clientes para atuação perante o INSS. 13. Por sua vez, no tocante as cópias dos processos concessórios nº 147.737.101-7 e nº 54.466.487-8, também invocadas pelo magistrado como elementos que formaram sua convicção, é de se destacar que, em relação ao primeiro, ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE , para embasar seu pedido, apresentou documentos como certidão de casamento; carteira de trabalho; registro no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Bom Jardim; comprovantes de recolhimento do ITR da fazenda onde ela supostamente trabalhou, etc. - sendo que tais documentos foram averiguados por ELISÂNGELA DE MOURA , servidora do INSS, que atestou que as cópias "conferem com o original". Já em relação ao processo concessório do NB XXXXX-8, ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE formulou novo pedido apresentando novos documentos que também foram analisados por outra servidora do INSS - no caso, VILMA CAVALCANTI DA SILVA . 14. Em ambos os casos, os pedidos foram indeferidos com base em ausência de provas mais robustas que comprovassem a atividade rural da requerente, além de incongruências identificadas pelos servidores - como, no caso, o endereço informado por ELZA ser distinto daquele que consta no cadastro do INSS, além de haver recolhimento de contribuição na qualidade de trabalhadora urbana. 15. É de se ver, portanto, que a prova documental acima citada não comprova que os réus tenham inserido dados falsos no sistema do INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL para concessão de benefício NB XXXXX-2 a ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE . Em verdade, são apenas documentos que foram utilizados pela requerente para fundamentar os pedidos nos processos concessórios do NB XXXXX-7 e NB XXXXX-8, dos quais FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA e JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ sequer participaram. 16. Na audiência instrutória, FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA declarou que prestava serviços ao advogado CAMILO RICARDO MELO DA SILVA na época em que ELZA foi até o escritório deste causídico. Informou que cobraram dela o valor de R$ 5.000,00 para representá-la perante o INSS, analisar a documentação que ela tinha em mãos e assim tentar nova concessão de benefício previdenciário. Aduziu que não produziu quaisquer documentos, tendo ELZA sido orientada a buscar documentos contemporâneos para formular novo requerimento junto à Autarquia, pois os que ela havia juntado nos outros eram antigos. Esclareceu que foi ELZA a responsável pela busca dos novos documentos. 17. A própria ELZA, também em seu interrogatório judicial, muito embora tenha dito que não foi atrás de novos documentos, confirmou que entregou os que já tinha a FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA e que, depois de ter obtido sua aposentadoria, pagou a FLÁVIO e a CAMILO a quantia de R$ 5.000,00 reais pelos serviços prestados. 18. As declarações de FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA foram reputadas como "contraditórias, inverossímeis, incongruentes e despidas de credibilidade" pelo magistrado de primeiro grau porque, segundo ele: "[...] o próprio réu sinalou para o fato de a ré ser pessoa humilde, de pouca instrução (até porque, segundo ele, ELZA havia laborado na roça a vida inteira), evento que não se coaduna com a alegação de que a ré, sozinha, havia providenciado todos os documentos que acostou na derradeira vez. Em suma, a contradição torna evidente que o réu faltou com a verdade, tendo, isto sim, ele próprio providenciado a documentação e, em conluio com JOSÉ , inserido os dados falsos no sistema informatizado que culminou com a concessão. Tanto é que o réu afirmou ter cobrado R$ 5.000,00 para prestar os" serviços "à ré, quantia bastante elevada para sua tese". 19. Ocorre que o fato de ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE ser humilde e de pouca instrução não a torna, necessariamente, uma pessoa desprovida de inteligência, não sendo possível concluir que esta é incapaz de obter documentos que atestem sua atividade rural. Do mesmo modo, é inidônea a fundamentação de que o fato de os serviços cobrados pelo réu terem sido caros já evidenciam a prática do crime em tela. 20. A propósito, malgrado tenha o juízo dito que restou comprovado que FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA "produziu documentos" e em conluio com JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ inseriu dados falsos no sistema do INSS, é de se lembrar que o processo concessório do NB XXXXX-2 sequer foi encontrado pela entidade administrativa, não sendo possível analisar que documentos são esses ou quais são as falsas informações. Outrossim, referido benefício, até a conclusão da fase investigativa, sequer havia sido cancelado. 21. Registre-se, por fim, que nenhum dos réus acima ouvidos em juízo apontaram para qualquer participação de JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ na busca da concessão da aposentadoria. 22. ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE disse que pagou a quantia de R$ 5.000,00 apenas a FLÁVIO e CAMILO , que não se lembra de quem a atendeu no INSS e, quando perguntada se reconhecia o senhor que se encontrava na audiência (JOSÉ, no caso), esta disse que não o conhecia. Por sua vez, FLÁVIO ANDRE PEREIRA LIMA afirmou que não entrou em contato com JOSÉ para atender ELZA quando esta foi requerer a verba previdenciária na agência do INSS, tendo o atendimento ocorrido em razão do sorteio feito pelo próprio sistema da Autarquia Previdenciária. 23. Quanto a JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ , seu depoimento revelou que este, no máximo, agiu com negligência ao analisar o pedido de ELZA , pois ele afirmou que não tinha as ferramentas necessárias para averiguar as informações lançadas nos requerimentos administrativos e que "nunca foi atrás de procurar ter", além de ter que "cumprir tudo rápido" para bater sua meta de atendimentos. 24. Ocorre que, além de o crime previsto no artigo 313-A do Código Penal não admitir a figura culposa, sequer é possível afirmar com o grau de certeza necessário para embasar um decreto condenatório que o réu de fato praticou o ilícito, pois, como dito exaustivamente acima, o processo de concessão do NB XXXXX-2 não foi encontrado, sendo inviável sequer analisar se de fato houve negligência na análise dos documentos apresentados por ELZA e tampouco se estes eram, de fato, falsos. 25. Nada obstante, o juiz a quo entendeu que a declaração de JOSÉ , "além de despida de verossimilhança, não encontra respaldo nas outras provas dos autos, ao contrário", notadamente porque: "[...] caso o réu não tivesse mesmo condições de apurar com maior acuidade os dados de ELZA, deveria, no caso de dúvida, indeferir o benefício e não deferi-lo, como fez no caso. Tal evento só vem a demonstrar, isto sim, que agiu em conluio com FLÁVIO . Cumpre também rememorar que, conforme as declarações da primeira testemunha, o servidor" via "quando o pretenso beneficiário já havia requerido o mesmo benefício e este havia sido indeferido. Ora, fora justamente o caso da ré, mais um motivo para ter analisado os documentos com mais presteza e, em caso de dúvida, indeferir o pleito." 26. Tal trecho revela, mais uma vez, que o magistrado utilizou de valores e convicções particulares para adentrar em questão que não diz respeito ao presente caso: em como deve proceder um servidor cauteloso. Do mesmo modo, conforme dito acima, a negligência sequer pode ser apontada como elemento de configuração do crime, pois o delito em tela não admite a modalidade culposa. 27. Outrossim, o juiz partiu do pressuposto de que os documentos e informações inseridas no último pedido de concessão benefício são falsas, quando sequer é possível averiguar o material em questão. 28. Por fim, deve-se afastar o censurável posicionamento adotado na primeira instância de que " JOSÉ , como cuidou de destacar o próprio órgão ministerial, responde a diversas ações penais em virtude justamente de fatos análogos, o que só reforça sua participação reiterada e consciente". É flagrantemente inconstitucional o argumento utilizado pelo juiz, pois afronta os princípios da presunção de inocência e da pessoalidade das penas, uma vez que o fato de o agente responder a ações penais - nas quais, advirta-se, ainda não houve decisão condenatória com respectivo trânsito em julgado - não implica dizer que o caso ora em análise é também maculado de ilicitude - ou que, ao menos, houve participação dolosa do apelante. 29. Vale registrar que o fato aqui apurado se diferencia das demais ações penais referidas pelo magistrado e pelo Ministério Público no primeiro grau. Com efeito, naquelas demandas, foi feita a análise acerca da documentação supostamente falsa que os outros denunciados - isto, é outros requerentes de benefícios e outros "intermediários"/"consultores previdenciários" - utilizaram nos respectivos processos administrativos, enquanto que nesta ação em específico é impossível realizar tal verificação pela não localização do processo concessório, não sendo descartada a hipótese de ELZA MARIA DE SOUZA ANDRADE de fato ter apresentado, no último requerimento administrativo, documentação hábil a ensejar a concessão da verba previdenciária. 30. Outrossim, malgrado cause estranheza o processo concessório em questão não ter sido localizado - o que não ocorreu nos outros casos -, o Parquet não atribuiu tal fato aos denunciados, sendo que sequer há indícios de que estes tenham contribuído para o extravio da documentação em tela. 31. Ademais, ainda que em todas as outras ações penais mencionadas na sentença restasse comprovada a prática de ilícitos por parte de JOSÉ TRAVASSOS DE QUEIROZ , é de se registrar que o ordenamento jurídico brasileiro não adota o direito penal do autor, mas sim do fato, de modo que somente comprovada a prática do ilícito aqui denunciado é que o agente poderá ser punido. 32. E nesse ponto, a valoração da prova desponta de forma essencial para o processo penal, devendo ser analisado se esta sustenta a tese acusatória e se tem aptidão de afastar qualquer outra versão verossímil que favoreça à defesa - o que, no caso, não ocorreu, pois os elementos probatórios produzidos pela acusação não são robustos o suficiente para embasar o decreto condenatório, sendo inadmissível "presumir", como fez o juiz neste caso, que houve prática de crime pelos apelantes. 33. Ante o exposto, não havendo provas de que os recorrentes concorreram para a infração penal - além de pairar dúvidas de que esta sequer existe -, a reforma da sentença é medida que se impõe, no sentido de absolvê-los. 34. Apelações providas.