RECURSO INOMINADO. DIREITO DO CONSUMIDOR. VENDA DE APARELHO CELULAR SEM O CARREGADOR. SUBTRAÇÃO INDEVIDA DE ITEM ESSENCIAL E IMPRESCINDÍVEL PARA A UTILIZAÇÃO DO APARELHO. VENDA CASADA POR DISSIMULAÇÃO. AUSÊNCIA DE PROVA DE EXCLUDENTE DA RESPONSABILIDADE OBJETIVA. FALHA NO FORNECIMENTO DO PRODUTO. OBRIGAÇÃO DE FORNECER O CARREGADOR. POSSIBILIDADE. DANO MORAL CONFIGURADO. RECURSO PROVIDO. SENTENÇA REFORMADA. SEM CUSTAS E HONORÁRIOS. - Trata-se de recurso inominado interposto contra r. sentença que julgou improcedente o pleito de indenização moral em decorrência do fornecimento de celular sem o carregador, em alegada venda casada - Sem preliminares, passo ao exame do mérito - Deflui dos autos que a recorrida adotou como política empresarial o não-fornecimento de carregadores quando da compra do aparelho celular, tendo seus consumidores de comprar separadamente um carregador para que possam utilizar normalmente seu telefone móvel - A recorrida informa, em seus meios oficiais de comunicação, que deixou de fornecer carregadores em conjunto com o celular por questões ambientais, porém continua a vender o referido carregador em separado para quem quiser adquiri-lo pagando o preço ofertado - Em sendo a relação de consumo, cumpria à recorrida comprovar fato impeditivo, extintivo ou modificativo do direito contra si aduzido, por força do art. 14 , § 3º do CDC , o que, a toda evidência dos autos, não ocorreu - O que se verifica nos autos é que a contestação se consubstancia em singelo arrazoado jurídico sem, contudo, qualquer lastro probatório das teses defensivas ali veiculadas, limitando-se a recorrida a afirmar a regularidade da conduta adotada - O art. 93 do Código Civil dispõe que as pertenças são bens que, não constituindo partes integrantes, se destinam, de modo duradouro, ao uso, ao serviço ou ao aformoseamento de outro - No dizer de Maria Helena Diniz, as partes integrantes "são acessórios que, unidos ao principal, formam com ele um todo, sendo desprovidas de existência material própria, embora mantenham sua identidade" - Isto é, as partes integrantes são bens acessórios, necessariamente unidos ao principal, formando um todo independente, na medida em que, embora conserve sua identidade, fica desprovido de funcionalidade ou finalidade quando não ligados ao bem principal e vice-versa - Desse modo, conclui-se que o adaptador de carregamento de energia do aparelho telefônico celular é parte integrante deste, na medida em que ambos só exercem fielmente a sua finalidade quando estão atrelados um ao outro - Na prática, não há possibilidade de funcionalidade do aparelho telefônico quando este não for devidamente carregado junto ao adaptador, nem mesmo atendimento de finalidade do adaptador quando estiver desapartado do aparelho telefônico - Afigura-se evidente, portanto, que o carregador constitui parte integrante do aparelho telefônico, na medida em que garante sua funcionalidade e o atingimento de sua finalidade, não se constatando coerência lógica em sua venda separada, máxime quando considerado que os celulares vendidos pela recorrente possuem portas de entradas únicas no mercado, em geral incompatíveis com aquelas utilizadas pelos demais fabricantes - Nesse contexto, a supressão do fornecimento de um acessório essencial ao funcionamento do produto não vem acompanhada de uma contrapartida, qual seja, da facilitação ao adquirente do aparelho de uma opção de carregamento sem a necessidade de aquisição do acessório fornecido exclusivamente pela Recorrida, que, ademais, instrui seus consumidores a utilizar apenas os acessórios oficiais comercializados em seus canais de venda, a fim de que não comprometam a vida útil da bateria do aparelho - Ademais, a recorrida também não demonstra que, com a evidente diminuição no custo final do produto, reduziu o valor para o consumidor, no que tange ao montante correspondente à aquisição do carregador em separado, não se tratando de uma opção dada ao consumidor em adquirir ou não o item - Por esta razão, resta absolutamente questionável se a intenção da recorrida é preservar o meio ambiente ou reduzir seus custos e, assim, aumentar sua margem de lucro - Desse modo, tem-se que a recorrida força, indiretamente, que seus consumidores adquiram também os carregadores vendidos por ela separadamente, em atitude francamente abusiva, que visa apenas a obtenção de lucros ainda maiores, já que sequer abateu os valores referentes ao carregador do preço final do aparelho celular, tratando-se de prática evidentemente abusiva, nos termos do art. 39 , incisos I e V do CDC - Assim, não restam dúvidas que se trata de uma venda casada por dissimulação, em que o fornecedor, por meio de um subterfúgio contratual ou tecnológico, condiciona a aquisição de um produto ou serviço a aquisição de outro, prejudicando a liberdade do consumidor, quando o propósito do consumidor é, unicamente, o de obter o produto ou serviço principal - Esta é a hipótese dos autos, eis que o consumidor, impossibilitado de carregar de maneira usual o seu aparelho celular, isto é, na tomada, se vê obrigado a, além de adquirir o produto, também desembolsar mais valores relativamente ao carregador, aumentando os lucros da requerida em franco prejuízo ao equilíbrio econômico, sobretudo para o consumidor - Nesse sentido os arestos: - JUIZADO ESPECIAL CÍVEL. RECURSO INOMINADO. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER COM TUTELA DE URGÊNCIA CUMULADA COM INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. RELAÇÃO DE CONSUMO. COMPRA DE APARELHO CELULAR. PRODUTO VENDIDO SEM ADAPTADOR DE ENERGIA E FONES DE OUVIDO. VENDA CASADA. ADAPTADOR COMO PARTE INTEGRANTE DO APARELHO TELEFÔNICO. CONDUTA ABUSIVA. FONE DE OUVIDO QUE NÃO SE CONFIGURA COMO ACESSÓRIO INDISPENSÁVEL. DANO MORAL QUE CARECE DE COMPROVAÇÃO. ÔNUS DA PROVA. ARTIGO 373 , I , DO CPC . AUSÊNCIA DE ELEMENTO ADICIONAL E DE COMPROVAÇÃO DE EFETIVO PREJUÍZO. MERO ABORRECIMENTO. (TJ-GO RI XXXXX20218090007 ). - CONSUMIDOR. VENDA DE APARELHO CELULAR NÃO ACOMPANHADO DO CARREGADOR E FONE DE OUVIDO. ALEGAÇÃO DE VENDA CASADA. FALTA DE COERÊNCIA LÓGICA NA VENDA SEPARADA DO ADAPTADOR DE ENERGIA, QUE SE CONSTITUI EM ITEM ESSENCIAL E IMPRESCINDÍVEL PARA O FUNCIONAMENTO DO APARELHO. CONDUTA ABUSIVA E LESIVA AO CONSUMIDOR. FONE DE OUVIDO QUE NÃO SE CONFIGURA COMO ACESSÓRIO INDISPENSÁVEL AO FUNCIONAMENTO DO APARELHO. DETERMINAÇÃO DE ENTREGA DO CARREGADOR DO APARELHO. DANOS MORAIS NÃO CONFIGURADOS. SENTENÇA PARCIALMENTE REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PARCIALMENTE PROVIDO. ( RI XXXXX20218050113 . TJ-BA) - Em arremate, importa transcrever, a título de ilustração, síntese de Decisão proferida a respeito do Tema em processo administrativo junto à SENACON (Ministério da Justiça e Segurança Pública/MJSP), em 06/09/2022, amplamente noticiada na Imprensa Nacional, que embora não ostente a qualidade de paradigma judicial, insere em seu bojo robusta fundamentação fática e jurídica: "Foi determinada a suspensão, em todo o território nacional, da venda dos telefones celulares iPhone desacompanhados dos carregadores de bateria. O Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) também aplicou multa à fabricante Apple Computer Brasil no valor de R$ 12.275.500, e determinou a cassação do registro na Anatel dos smartphones da marca a partir do modelo iPhone12. A decisão foi publicada no Diário Oficial da União desta terça-feira (6), em processo aberto pela Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), em dezembro do ano passado". - ..................................................................................... E segue: "Venda casada - Para a Senacon, ao deixar de vender os celulares sem carregador,"que é imprescindível funcionamento normal do telefone", a empresa pratica venda casada por"dissimulação", já que, de forma indireta, obriga o consumidor a adquirir um segundo produto, o carregador, sem o qual o aparelho principal não funciona. Venda de produto incompleto ou despido de funcionalidade essencial - Conforme a decisão, a venda do produto sem carregador é suficiente para que ele seja considerado"impróprio ou inadequado ao consumo a que se destina ou que lhe diminua o valor", de acordo com o Código de Defesa do Consumidor . Assim, a Senacon destaca que, se a utilidade de um bem depende de outro que não é fornecido pelo fabricante, essa prática é ilegal. Recusa da venda de produto completo mediante discriminação contra o consumidor - Ainda, segundo a Senacon, o fator de discriminação adotado pela empresa é, basicamente, a renda do consumidor, que permite a fidelização e a constante substituição pelo mesmo usuário dos aparelhos, no intervalo de poucos meses ou anos. O órgão afirma que, para a empresa, fornecer carregadores de bateria é dispensável, com a justificativa de que a fatia de público eleita por ela, ainda que pequena, não precisa daquele equipamento, pois pode utilizar o carregador de um modelo antigo que já tenha comprado anteriormente. Também, a Senacon crê que não se justifica o argumento de que o preço do produto, por si só, é excludente, pois, especialmente no Brasil, em que crediários e parcelamentos são formas comuns de realização de contratos de compra e venda, a renda mensal do consumidor nem sempre corresponde aos bens que adquire. Transferência de responsabilidades a terceiros - Por fim, a Senacon afirma que a prática adotada pela Apple gera dois tipos de transferência de responsabilidade: transferência da responsabilidade de fornecimento do carregador e transferência da responsabilidade ao Estado brasileiro e sua política cambial já que, mesmo que os aparelhos venham sem o dispositivos para carga, os preços deles não diminuíram por conta disso. Sendo assim, entende-se que o preço é determinado principalmente por estratégia comercial em vez de terem correspondência com os custos de produção"- Os danos morais estão configurados e decorrem não apenas do engodo praticado pela empresa recorrida, mas também pelo intenso sentimento de impotência, frustração e ludibrio experimentados pela parte recorrente, o que sem dúvida resultou na quebra de sua tranquilidade e paz interior, visto ter se tornado refém do arbítrio da Apple, que por puro abuso de direito se nega a fornecer carregadores a seus consumidores, forçando-os a despender ainda mais dinheiro para que possam contar com a segurança de ter o aparelho sempre disponível quando dele necessitarem - A conduta insidiosa da Recorrida torna-se mais prejudicial se ponderado que a recorrente se utiliza do aparelho para laborar e comunicar-se com familiares e amigos, sendo de utilização essencial no dia a dia de qualquer pessoa no mundo hodierno, em que praticamente todos os aspectos da vida passaram por digitalização e dependem, sobretudo, de informação - Com efeito, arbitro a reparação, na espécie, em R$ 5.000,00 (cinco mil reais) a fim de que sirva de reconforto à vítima do ilícito, bem como de medida punitivo-pedagógica suficiente a prevenir que a recorrida reitere as práticas abusivas aqui combatidas - Ante o exposto, voto no sentido de conhecer e dar provimento ao recurso interposto, reformando a r. sentença para JULGAR PROCEDENTE a demanda e condenar a recorrida ao pagamento de indenização moral no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), com juros e correção monetária a contar do arbitramento (Súmula 362 do STJ) e à obrigação de fornecer o carregador no prazo de 15 (quinze) dias, a contar do trânsito em julgado da presente demanda, sob pena de multa de R$ 300,00 (trezentos reais) por dia de descumprimento - Sem custas e honorários, dada a exegese a contrario sensu do art. 55 da Lei nº 9.099 /95 - É como voto.