EMENTA PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. IMPUTAÇÃO INICIAL PELOS CRIMES DE RECEPTAÇÃO, DE FALSA IDENTIDADE E DE DESOBEDIÊNCIA EM CONCURSO MATERIAL (ARTS. 180, CAPUT, 307 E 329 (SIC), N/F 69, TODOS DO CÓDIGO PENAL). PARCIAL PROCEDÊNCIA. CONDENAÇÃO PELO CRIME DE RECEPTAÇÃO. ABSOLVIÇÃO DOS CRIMES DE FALSA IDENTIDADE E DESOBEDIÊNCIA. RECURSO DEFENSIVO. PRELIMINARES DE NULIDADE PROCESSUAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO QUE RECEBEU A DENÚNCIA. PRESCINDIBILIDADE. DECISÃO DE NATUREZA INTERLOCUTÓRIA. REJEIÇÃO. NULIDADE DA PROVA DOCUMENTAL E DA SENTENÇA. MAGISTRADO QUE, DE OFÍCIO, CONVERTEU O JULGAMENTO EM DILIGÊNCIA VISANDO AO ESCLARECIMENTO DE FATO RELEVANTE PARA A JUSTA APLICAÇÃO DA LEI PENAL. CONFIRMAÇÃO DE INDÍCIOS. ATIVIDADE PROBATÓRIA SUPLETIVA DO JUIZ. PRINCÍPIO DA VERDADE REAL. EXPRESSA AUTORIZAÇÃO LEGAL. INÉPCIA DA DENÚNCIA. IMPUTAÇÃO DE CONDUTA NÃO PREVISTA NOS VERBOS NUCLEARES DO TIPO PENAL. IMPROPRIEDADE TÉCNICA. TEORIA DA TIPICIDADE. CRIME DE RECEPTAÇÃO. CONDUTA DE VIAJAR EM VEÍCULO. INEXISTÊNCIA DO VERBO NO TIPO. NECESSIDADE DE CORRELAÇÃO ENTRE A DENÚNCIA E A SENTENÇA. ATIPICIDADE DA CONDUTA IMPUTADA. ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. PROVIMENTO DO APELO. 1. A questão da nulidade do processo em razão da ausência de fundamentação da decisão que recebeu a denúncia deve ser afastada de plano. 2. De fato, a Constituição Federal em seu artigo 93 , inciso IX , determina que todas as decisões judiciais sejam fundamentadas, sob pena de nulidade. 3. Contudo, conforme entendimento sedimentado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, a decisão de recebimento da denúncia prescinde de fundamentação substancial, eis que, a despeito de tratar-se de decisão interlocutória, tal provimento não se equipara a ato de caráter decisório. Precedentes dos Tribunais Superiores. 4. Ressalte-se, no ponto, que o Diploma Processual Penal não rechaça sequer a possibilidade do recebimento tácito da denúncia. 5. A atividade probatória supletiva do magistrado, fundada no princípio da verdade real, está expressamente autorizada pela norma prevista no art. 156 , inciso II do Código de Processo Penal e tem como finalidade a satisfação do seu convencimento, dirimindo dúvidas sobre pontos relevantes apurados durante a instrução criminal, ainda que a parte interessada não tenha indicado ou produzido a prova por omissão, negligência ou estratégia. 6. Na presente hipótese, a determinação da diligência referente à prova da materialidade do delito tinha como único objetivo a confirmação de indício da materialidade delitiva já existente nos autos, não havendo que se cogitar de nova produção de prova ou de violação do sistema acusatório. Doutrina. 7. No tocante ao delito de receptação, esta Relatoria entende que a denúncia é inepta, vez que imputa ao denunciado a conduta de viajar em veículo que sabia ser produto de roubo, verbis: ¿livre e conscientemente, em proveito próprio ou alheio, viajava no veículo VW Gol placas MRD-1951, que constou como veículo com registro de roubo (...)¿. 8. No que concerne ao caso concreto, o aludido tipo penal tem como núcleo os verbos adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, sendo certo que a conduta de viajar não está prevista na norma penal ora imputada ao recorrente. 9. O magistrado sentenciante laborou em equívoco ao afirmar que a conduta imputada na denúncia se adapta perfeitamente ao tipo penal em comento. 10. Isso porque, ainda que se admitisse que o réu possuísse plena ciência da origem criminosa do veículo em que viajava juntamente com o condutor, identificado apenas como ¿Gordinho¿, e com as testemunhas Vilda e Karina, não é esta a conduta reprovada pela norma penal. 11. O tipo penal, como a própria denominação está a induzir, é o modelo, o padrão de conduta que o Estado, por meio de seu único instrumento, a lei, visa a impedir que seja praticado, ou determina que seja levado a efeito por todos nós. O tipo, portanto, é a descrição precisa do comportamento humano, ou da pessoa jurídica, feita pela lei penal. 12. Na definição de Zaffaroni, "o tipo penal é um instrumento legal, logicamente necessário e de natureza predominantemente descritiva, que tem por função a individualização de condutas humanas penalmente relevantes". 13. Como é cediço de todos os operadores do direito penal, a tipicidade formal é a perfeita adequação entre o fato natural e o modelo abstrato descrito na lei. A título de elucidação, é possível comparar a figura da tipicidade àqueles brinquedos educativos infantis, em que a criança deve encaixar a figura no correspondente espaço existente no tabuleiro. Quando a figura se adapta ao respectivo local no tabuleiro, caracterizada está a tipicidade formal. 14. Em sua obra ¿Correlação entre Acusação e Sentença¿ (São Paulo: IBCCRIM. 2001. p. 51-72), Benedito Pozzer apresenta a definição de acusação e elenca a existência de três elementos que a compõem, quais sejam, o fato de relevância penal, a indicação de autoria e a responsabilização penal. Sustenta que o fato penalmente relevante é o acontecimento humano descrito, modelado abstratamente, em tipo penal, ou seja, hipótese de conduta com prévia reprovação legal, decorrente do princípio da legalidade. Destarte, a acusação deverá imputar ao acusado fato de relevância jurídico-penal, ou seja, que encontre exata conformação com um tipo previsto abstratamente no ordenamento jurídico, tendo em conta a prevalência da regra primeira nullum crimen, nulla poena sine praevia lege. 15. Dessa forma, o acolhimento da pretensão acusatória, nos termos em que foi posto na sentença, constitui grave violação ao princípio da legalidade. 16. Note-se que a deficiência técnica contida na denúncia não passou despercebida pela combativa defesa técnica que, em suas alegações finais, requereu o reconhecimento da atipicidade da conduta imputada, o que não foi categoricamente enfrentado pelo douto magistrado a quo. 17. Ressalte-se que, no despacho de flagrante, a autoridade policial consignou que ¿a despeito de o conduzido não estar na condução, ao dizer para o motorista fugir, demonstrou que tinha controle sobre a ação do condutor e, assim, agiu de qualquer modo para o cometimento do crime.¿ 18. Por sua vez, a douta Procuradoria de Justiça, tentando contornar o equívoco constante da exordial acusatória e da sentença vergastada, afirmou que o réu participou efetivamente da ação criminosa, argumentando que o simples fato de o mesmo não estar dirigindo o veículo seria irrelevante para a configuração do tipo penal imputado, sendo certo que, demonstrado pela acusação que o veículo era objeto de crime, e, ainda, que o réu fora preso em flagrante no seu interior, nítida está a sua posse compartilhada. 19. Nada obstante, e com as devidas vênias, o compartilhamento da posse foi desprezado pelo órgão de atuação ministerial na instância de piso, uma vez que não está expressamente descrito na denúncia, não podendo, portanto, ser considerado para fundamentar uma condenação. 20. Isso porque a ninguém é desconhecido que a sentença deve guardar relação com a denúncia, já que nesta se expõe ao Estado-Juiz a pretensão punitiva, com a descrição do fato criminoso e de todas as suas circunstâncias. O princípio da correlação entre a imputação e a sentença representa uma das mais relevantes garantias do direito de defesa e qualquer distorção, sem observância dos dispositivos legais cabíveis, significa ofensa a ele, ensejando a nulidade da decisão. 21. A descrição do fato na denúncia define o objeto litigioso do processo, em torno do qual será exercida a jurisdição em cada caso concreto, não sendo este o caso dos autos, porquanto a acusação não atribui ao acusado fato penalmente relevante, mas conduta não prevista no núcleo do tipo penal imputado, sendo defeso ao magistrado, no momento da prolação da sentença, valer-se de fatos não descritos na denúncia. 22. Veja-se, inclusive, que a considerar a conduta imputada, no caso ¿viajar¿, impunha-se também estender a denúncia às demais pessoas ¿ duas mulheres ¿ que, indiscutivelmente, por igual, viajavam no veículo. Ou será que o direito penal se tornou seletivo, isto é, o ¿passado¿ condena, porquanto na hipótese deste processo, não por coincidência, das três pessoas que viajavam no veículo, além do condutor, somente o réu possuía antecedentes penais? 23. Desta feita, a conduta imputada ao ora apelante ¿ viajar ¿ não pode ser enquadrada em nenhum dos verbos nucleares do tipo penal previsto no art. 180 do Código Penal , pelo que deve ser reconhecida como atípica, no ponto. 24. Provimento do apelo.