E M E N T A APELAÇÃO CÍVEL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. INCRA. LOTE DE ASSENTAMENTO DA REFORMA AGRÁRIA. OCUPAÇÃO IRREGULAR. VÍCIO FORMAL SANÁVEL. APELANTES PREENCHEM OS REQUISITOS PARA SEREM BENEFICIÁRIOS DA REFORMA AGRÁRIA. CUMPRIMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE. REINTEGRAÇÃO DE POSSE INDEFERIDA. RECURSO PROVIDO. 1. A demanda foi ajuizada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA em face de Delce de Campos de Souza Calça e de Natanael Marques Calça, visando à sua reintegração na posse do lote n. 248 do Projeto de Assentamento Santo Antônio, localizado no município de ltaquiraí/MS, o qual alega estar indevidamente ocupado pelos réus. 2. A r. sentença julgou procedente o pedido e condenou os réus ao pagamento de honorários advocatícios, fixados "no percentual mínimo do § 3º do art. 85 do CPC , de acordo com o inciso correspondente ao valor atualizado da causa, observando o § 4º, lI, e § 5º, por ocasião da apuração do montante a ser pago", cuja exigibilidade ficará suspensa, em razão do deferimento de gratuidade da justiça, nos termos do art. 98 , § 3º , do CPC . 3. Em suas razões recursais, os réus sustentam que a irregularidade formal da ocupação deve ser superada pelo fato de preencherem os requisitos para serem beneficiários da reforma agrária, bem como por darem plena função social ao lote. Requerem, assim, a reforma da r. sentença, para que sejam mantidos na posse do lote em questão, julgando-se improcedentes os pedidos da inicial. 4. O Estatuto da Terra (Lei nº 4.504 /64) define reforma agrária como "o conjunto de medidas que visem a promover melhor distribuição da terra, mediante modificações no regime de sua posse e uso, a fim de atender aos princípios de justiça social e ao aumento de produtividade". Com efeito, a sua implementação tem como objetivo precípuo promover a justiça social, o progresso e o bem-estar do trabalhador rural e o desenvolvimento econômico do país, com a gradual extinção do minifúndio e do latifúndio, através de um sistema de relações entre o homem, a propriedade rural e o uso da terra (artigo 16 da mesma lei). 5. A Lei nº 8.629 /93, em consonância com o que prevê a Constituição Federal (artigo 189), dispõe que, no Programa Nacional de Reforma Agrária - PNRA, cabe ao INCRA a distribuição das parcelas do imóvel rural aos pretensos beneficiários da reforma agrária, previamente cadastrados, por meio de títulos de domínio, de concessão de uso ou de concessão de direito real de uso - CDRU, esta última modalidade foi incluída pela Lei nº 13.001 /2014, inegociáveis pelo prazo de dez anos, sendo assegurado ao beneficiário do contrato de concessão de uso o direito de adquirir, em definitivo, o título de domínio da propriedade. 6. No tocante à qualidade de beneficiário da reforma agrária, a redação do artigo 20 da Lei nº 8.629 /93, vigente à época dos fatos tratados no presente feito, dispunha que não poderia ser beneficiário o proprietário rural, salvo algumas exceções, tampouco aquele que exercesse função pública, autárquica ou em órgão paraestatal, ou o que estivesse investido de atribuição parafiscal, ou, ainda, quem já tivesse sido contemplado anteriormente com parcelas em programa de reforma agrária. 7. Ademais, os beneficiários têm a obrigação de cultivar a sua parcela direta e pessoalmente, ou através de seu núcleo familiar, e de não ceder o seu uso a terceiros, a qualquer título, pelo prazo de 10 (dez) anos (artigo 21 da mesma lei), sob pena de rescisão do contrato e o retorno do imóvel ao INCRA. 8. No caso, consta que, através da Operação Tellus da Polícia Federal, foram apuradas irregularidades na aquisição de lotes da Reforma Agrária. Diante disso, o Ministério Público Federal ajuizou ação cautelar inominada (proc. n. XXXXX-29.2010.403.6006 ), a fim de que fosse determinado ao INCRA o levantamento ocupacional das parcelas existentes no sul do Estado do Mato Grosso do Sul, verificando-se eventuais irregularidades. 9. A autarquia procedeu, então, ao levantamento ocupacional no PA Santo Antônio, localizado em Itaquiraí/MS, e constatou que o lote n. 248 havia sido abandonado pela beneficiária primitiva e irregularmente ocupado pelos réus, ora apelantes, em 27/07/2010. Diante disso, a beneficiária primitiva foi excluída do PNRA e os ocupantes notificados a desocupar a parcela. 10. Os réus apresentaram recurso administrativo, que foi indeferido. Novamente notificados a desocupar o lote, os apelantes quedaram-se inertes, razão pela qual o INCRA ajuizou a presente demanda, alegando restar configurado o esbulho. 11. A r. sentença julgou procedente a demanda, nos seguintes termos: "Com efeito, os réus não são beneficiários da parcela rural em comento, porque não sorteados para, com justo título, ocupa-la. Logo, a ocupação em tela ocorre em flagrante desrespeito às normas legais e infra legais que disciplinam o tema. Não obstante tenham os réus alegado em sua defesa que exploram adequadamente a terra, a verdade é que a ela não fazem jus porque, como dito alhures, não regulamente contemplados em regular processo de seleção. A título argumentativo, ainda que, em tese, atualmente preenchesse os requisitos necessários e viessem a receber autorização de uso, admitir a sua posse - atualmente injusta - significaria preterir outros candidatos e/ou famílias igualmente aptos, mas que se sujeitaram ao regular processo de cadastramento e seleção. Exatamente por esse motivo é que os réus foram excluídos do programa. E, em que pese o alegado em sentido contrário, não há nos autos documento algum que comprove tentativa de regularização junto ao Incra. Assim, merece procedência o pedido inaugural de reintegração de posse". 12. Todavia, tal fundamento não se sustenta. Isso porque o próprio Superintendente Regional do INCRA/MS informou que os apelantes são cadastrados perante a autarquia, desde 19/09/2007, e que, pelos documentos dos autos, não há elemento hábil a desqualificá-los como possíveis beneficiários, ressaltando, ainda, que inexistem famílias excedentes no PA Santo Antônio. Dessa forma, claro está que, além dos apelantes terem se sujeitado a regular processo de cadastro, a sua ocupação não se deu em prejuízo de outras famílias que fariam jus a um lote naquele assentamento. 13. Ademais, as afirmações dos apelantes, no sentido de que residem e exploram pessoalmente o lote, foram corroboradas pelo relato das testemunhas, bem como pelas fotos e notas fiscais acostadas aos autos, que demonstram a venda de leite, melancia, quiabo, abóbora, pepino, jiló, berinjela e feijão. 14. Desta feita, embora a ocupação tenha se dado de forma irregular, restou demonstrado que os apelantes preenchem os requisitos para serem beneficiários da reforma agrária, bem como que dão a devida função social ao lote. Nessa senda, retirá-los do local tão somente pela existência de vícios formais sanáveis vai de encontro com os próprios princípios da reforma agrária, acima mencionados. 15. Sendo assim, por todos os ângulos analisados, mister se faz a reforma da r. sentença, para julgar improcedente o pedido de reintegração de posse do INCRA. 16. Condenação da autarquia ao pagamento de honorários advocatícios, fixados em R$ 2.000,00 (dois mil reais), nos termos do artigo 85 , §§ 2º e 8º , do CPC . 17. Apelação a que se dá provimento.