Tribunal de Justiça do Estado da Bahia PODER JUDICIÁRIO SEGUNDA TURMA RECURSAL - PROJUDI PADRE CASIMIRO QUIROGA, LT. RIO DAS PEDRAS, QD 01, SALVADOR - BA ssa-turmasrecursais@tjba.jus.br - Tel.: 71 3372-7460 PROCESSO Nº XXXXX-04.2019.8.05.0001 RECORRENTE: JOSÉ MARTINS ABADE RECORRIDO: CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS FUNCIONARIOS DO BANCO DO BRASIL ORIGEM: 3ª VSJE DE CAUSAS COMUNS (MATUTINO) RELATORA: JUÍZA MARIA AUXILIADORA SOBRAL LEITE EMENTA RECURSO INOMINADO. CIVIL. PLANO DE SAÚDE. CONTRATO DE AUTOGESTÃO. INAPLICABILIDADE DO CÓDIGO DO CONSUMIDOR. APLICAÇÃO DA SÚMULA 608 DO STJ. DESISTÊNCIA DO PEDIDO DE REVISÃO DOS REAJUSTES POR FAIXA ETÁRIA. REAJUSTES ANUAIS OCORRIDOS ENTRE 2012 A 2019. PREVISÃO CONTRATUAL DE APLICAÇÃO DO REAJUSTE ANUAL (VCMH) DE ACORDO COM A VARIAÇÃO DO ÍNDICE IPC SAÚDE (FIPE) ACUMULADO PARA O PERÍODO ACRESCIDO DE REAJUSTE TÉCNICO. SINISTRALIDADE. ONEROSIDADE EXCESSIVA. CAUSA DE DESEQUILÍBRIO CONTRATUAL. REVISÃO DO CONTRATO. PRINCÍPIO GERAL DA BOA-FÉ QUE REGE AS RELAÇÕES EM ÂMBITO PRIVADO. CONTRATO DE ADESÃO (ARTS. 423 E 424 DO CC ). VEDAÇÃO ÀS CLÁUSULAS AMBÍGUAS E CONTRADITÓRIAS. POSSIBILIDADE DE REVISÃO DE CLÁUSULAS CONTRATUAIS QUE DECORRE DO PRÓPRIO SISTEMA JURÍDICO (ARTS. 478 E 480 DO CC ). REVISÃO DOS REAJUSTES DOS ANOS DE 2012, 2013, 2018 E 2019 PARA AFASTAR A SINISTRALIDADE E DETERMINAR A APLICAÇÃO DOS ÍNDICES DA ANS NA FALTA DE OUTRO PARÂMETRO OBJETIVO. PRESCRIÇÃO DECENAL PARA A REVISÃO DOS REAJUSTES E PRESCRIÇÃO TRIENAL PARA A RESTITUIÇÃO SIMPLES DOS VALORES PAGOS A MAIOR NOS ÚLTIMOS 3 ANOS. SENTENÇA REFORMADA. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARCIALMENTE. Trata-se de recurso inominado interposto em face da sentença prolatada no processo epigrafado, cujo dispositivo transcrevo in verbis: ¿Assim, adquirindo complexidade probatória incompatível com o rito estabelecido pela Lei nº 9.099 /95, promovo a extinção do presente processo movido pelo Autor JOSÉ MARTINS ABADE contra a Requerida CAIXA DE ASSISTÊNCIA DOS FUNCIONÁRIOS DO BANCO DO BRASIL - CASSI, sem resolução do mérito, com base em seu art. 51 , inciso II .¿ Presentes as condições de admissibilidade do recurso, dele conheço. VOTO Inicialmente impende salientar a aplicação do entendimento sedimentado no STJ que ¿o prazo prescricional aplicável nas hipóteses em que se discute a revisão de cláusula considerada abusiva pelo beneficiário de plano de saúde é de 10 (dez) anos, previsto no art. 205 do Código Civil¿ ( AgRg no AREsp XXXXX/SP , Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/11/2013, DJe 25/11/2013), sendo que, em relação à repetição de indébito, este juízo entende que deve se limitar a 03 (três) anos, na esteira da tese prevalente nos Tribunais Pátrios, com fulcro no art. 206 , § 3º , inc. IV do CC . No mérito, alega a parte autora em sua exordial que aderiu, em 15 de outubro de 2010, ao contrato do plano de saúde de saúde coletivo sem patrocinador, administrado pela acionada, para a cobertura de serviços de assistência médico-hospitalar, de natureza clínica, cirúrgica e obstétrica, com abrangência em todo território nacional. Seguiu narrando que a partir de outubro/2011 passou a sofrer reajustes abusivos no valor de sua mensalidade referentes a aplicação de reajustes anuais e reajustes por mudança de faixa etária em índices diversos ao que pactuado no contrato entabulado entre as partes. Aduziu ainda que à data de aniversário da contratação, seriam realizados reajustes anuais conforme índices definidos pela operadora do Plano ¿ FIPE SAÚDE, segundo critérios estabelecidos na cláusula 27ª do contrato, no entanto, a operadora ré não observou o índice utilizado como critério de reajuste anual, estipulado contratualmente, que é a tabela FIPE SAÚDE, consoante previsto no contrato, que possui índices inferiores àqueles aplicados pela seguradora ré. Dessa forma requereu ao final a revisão do valor de seu plano, aplicando-se aos reajustes anuais o índice constante na tabela FIPE SAÚDE; a declaração da abusividade do reajuste por faixa etária ocorrido em outubro/2019; a devolução em dobro dos valores pagos a maior após a revisão aplicando-se o índice fixado na tabela FIPE SAÚDE. A parte ré por sua vez apresentou defesa sustentando que os índices de reajustes aplicados às mensalidades do plano de saúde do Autor e seus familiares, assim como o aplicado nos planos de todos os outros beneficiários, são consequências de estudo técnico atuarial realizado por profissionais registrados no Instituto Brasileiro de Atuaria-IBA, assim como da variação do índice IPC Saúde (FIPE) nos respectivos períodos. Referido cálculo atuarial considera as despesas médico-hospitalares dos últimos 12 (doze) meses, corrigidas pela inflação médica (projeção dos custos médicos), levando em consideração o número de beneficiários expostos ao risco (aqui consideradas as pessoas aptas a utilizarem o plano). Ao final requereu a improcedência dos pedidos. Da análise dos autos ainda constata-se que a parte autora no ev. 54 requereu a desistência do pedido acerca da revisão dos reajustes aplicados à título de mudança de faixa etária sem oposição da parte ré. Em síntese, esse são os elementos para efeito de apreciação da matéria de fundo, visto que o entendimento desta Turma é para afastar a sentença extintiva. Nesse diapasão, preliminarmente cumpre reconhecer a competência dos Juizados para conhecer e julgar a causa, não sendo necessário a realização de prova pericial complexa, pois, não obstante tratar-se de contrato de plano de saúde regido sob o sistema de autogestão, o qual foi reconhecido pelo STJ, através da Súmula 608, como relação civil que foge a natureza consumerista, deixando expresso que não se aplica o Código de Defesa do Consumidor , destarte, não se pode desconsiderar que ao caso são aplicáveis as regras específicas encapsuladas na Lei dos Planos de Saúde , Lei 9.656 /98, além do Código Civil e principalmente a lei Maior da Constituição Federal . Portanto, a inaplicabilidade do CDC não afasta a aplicação das normas gerais do direito contratual, principalmente a interpretação mais favorável ao aderente, a necessidade de observância da boa-fé e da função social do contrato. Ademais, ressalta-se que o contrato de seguro-saúde em epígrafe é contrato de adesão, no qual não é assegurada ao aderente a discussão de suas cláusulas. Acerca desta temática, preleciona CLÁUDIA LIMA MARQUES: ¿Em matéria contratual, não mais se acredita que assegurando a autonomia da vontade e a liberdade contratual se alcançará, automaticamente, a necessária harmonia e equidade nas relações contratuais. Nas sociedades de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em massa, as relações contratuais se despersonalizam, aparecendo os métodos de contratação estandardizados, como os contratos de adesão e as condições gerais do contrato. Hoje esses métodos predominam em quase todas as relações entre empresas e consumidores, deixando claro o desnível entre os contratantes um autor efetivo das cláusulas, e outro, simples aderente. É uma realidade social bem diversa daquela do século XIX, que originou a concepção clássica e individualista do contrato, presente em nosso Código Civil de 1917¿ (Novas regras sobre a proteção do consumidor nas relações contratuais, Revista de Direito do Consumidor, n. 1, pág. 27). Malgrado não se aplique o CDC às entidades de autogestão, as cláusulas contratuais de plano de saúde podem ser consideradas abusivas, tendo por base os arts. 423 e 424 do CC , já que decorrem da própria natureza jurídica do negócio firmado, bem como os arts. 478, 479, 480 do mesmo diploma legal, dispositivos que cuida sobre a onerosidade excessiva. Enfim, decorre da nova feição do Direito Civil, que, relativizando a aplicação do princípio do ¿pacta sunt servanda¿, impõe o diálogo entre a autonomia privada, a boa fé e a função social do contrato. A propósito, lapidar o V. Acórdão relatado pelo Eminente Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, verbis: ¿A revisão das cláusulas contratuais pelo Poder Judiciário é permitida, mormente diante dos princípios da boa-fé objetiva, da função social dos contratos e do dirigismo contratual, devendo ser mitigada a força exorbitante que se atribuía ao princípio do pacta sunt servanda¿ ( AgRg no Ag XXXXX/SC ). Na mesma diretriz, o Enunciado 23 do Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal: ¿A função social do contrato prevista no artigo 421 do novo Código Civil não elimina o princípio da autonomia contratual, mas atenua ou reduz o alcance desse princípio, quando presentes interesses meta individuais ou interesse individual relativo à dignidade da pessoa humana¿ (in Theotonio Negrão e José Roberto F. Gouvêa, Código Civil e Legislação Civil em Vigor, Editora Saraiva, 24ª Edição, página 120). Volvendo ao exame da causa, compreendo que a decisão proferida pelo Juiz a quo merece reforma, não para acolher in totum a pretensão inaugural que busca a revisão do contrato para aplicar tão somente o índice da tabela Fipe/Saúde, disposição que se encontra no contrato, o qual também majora o reajuste utilizando-se de outras variáveis. De igual sorte não seria caso de manter-se os reajustes anuais nas bases fixadas pelo plano de saúde, tese defendida pela defesa. Prevê o contrato entabulado entre as partes em sua cláusula 27 que: ¿O valor das mensalidades será reajustado com base na variação do índice FIPE SAÚDE do período, ou, na sua falta, na de outro índice que o substitua, levando-se em conta, também, eventual variação nos custos do CASSI FAMÍLIA quanto aos aspectos atuariais e/ou administrativos¿, cuja interpretação literal resulta no reconhecimento de que o aumento anual importa em causa de desequilíbrio contratual dado a onerosidade excessiva e a aleatoriedade decorrente dessa variação não explicitada de forma clara e específica no instrumento contratual do percentual de aumento ou o índice de reajuste. In casu se vislumbra a presença da sinistralidade no aumento imposto pelo plano no contrato da parte autora embasado na referida cláusula contratual e por isso deve ser considerada abusiva, já que consagra vantagem exagerada para a seguradora. De fato, ao permitir que o preço do contrato possa ser reajustado sempre que houver um aumento na utilização dos serviços, a cláusula elimina a característica aleatória do contrato de seguro de saúde. Como se sabe, através do contrato de seguro o segurador assume a obrigação de garantir a outra parte (o segurado) contra os prejuízos resultantes de riscos futuros, previstos no instrumento contratual, mas de acontecimento incerto. O segurado paga o prêmio e o segurador o recebe, ambos sem saber se o evento ocorrerá ou não. Se o segurador adquire o direito de se precaver, mediante aumento automático do prêmio, contra a ocorrência do evento futuro, desaparece a aleatoriedade do contrato. É o que acontece, na prática, com a adoção da cláusula de reajuste por sinistralidade. Precavendo-se da eventualidade de ter que arcar com custos acima de um certo patamar, a operadora elimina a aleatoriedade do contrato em relação à sua pessoa, transferindo ônus que, em princípio seria seu, para a outra parte (o segurado). Todos os riscos, que são próprios da atividade securitária, são transferidos para a outra parte, o segurado. Como se vê, além de criar vantagem exagerada para a contratada (operadora), por manter os custos de operação em patamar que lhe seja conveniente, uma vez eliminada a aleatoriedade própria do contrato de seguro, a cláusula de reajuste baseada na sinistralidade também impõe à outra parte (o conjunto de beneficiários do plano) uma onerosidade excessiva, na medida em que a sujeita a aumentos aleatórios, desfigurando o objeto do contrato de seguro. Ademais, o reajuste por sinistralidade por vincular o índice de aumento ao nível de utilização dos serviços prestados desconfigura a natureza do contrato de seguro que deve ser baseado na álea, bem como realiza a transferência indevida do risco da atividade explorada ao beneficiário, o que gera a este a consecução de obrigação excessivamente onerosa, incorrendo, assim, a referida cláusula contratual nas vedações estabelecidas em lei. Tratando sobre a aplicação dos índices previstos na tabela IPC Saúde (FIPE) do período, nos termos do contrato entabulado entre as partes, o qual, é verdade, na maioria das vezes tiveram índices baixos, entretanto foram cumulados a esses índices da tabela Fipe/Saúde, um aumento substancial sob o fundamento da necessidade de atualização decorrente da variação dos custos atuariais e administrativos, decorrendo daí um desequilíbrio na relação contratual e, a simples exclusão dos percentuais de aumento, que entendemos como aumento por sinistralidade e a manutenção do índice de reajuste previsto da tabela FIPE, importará em manutenção do desequilíbrio contratual, agora em desfavor do plano de saúde, vale dizer, a balança pendendo mais em desfavor do plano, na medida em que o percentual da tabela FIPE SAÚDE é inferior ao aplicado pela média dos planos coletivos, já que o reajuste anual estabelecido pela ANS para os planos individuais, até 2018, tinha por parâmetro a média do reajuste aplicado nos planos coletivos. Com efeito, até 2018, a metodologia aplicada pela ANS para obtenção do índice máximo tem sido a mesma desde 2001 e baseia-se na média ponderada dos percentuais de reajuste dos contratos coletivos com mais de 30 beneficiários, que passam por um tratamento estatístico e resultam no índice máximo de reajuste dos planos individuais novos a ser aplicado no período seguinte. Portanto, na falta de outro parâmetro e diante do claro desequilíbrio contratual seja para excluir o aumento da sinistralidade ou reajuste técnico imposto pelo plano, seja com relação à manutenção apenas do aumento anual baseado tão só na tabela FIPE/SAÚDE, resta mais equânime, e baseada nos princípios da igualdade e da coletividade, considerando não só o contrato ora em análise como os contratos coletivos de um modo geral, deve-se revisar o contrato para aplicar os índices de reajustes anuais da ANS. Assim, no tocante a revisão dos índices de reajustes anuais, muito embora a previsão contratual de reajuste das mensalidades de plano de saúde seja um expediente admitido pela legislação vigente, é imprescindível fiscalizar a proporcionalidade das contraprestações exigidas pelas seguradoras e demais operadoras de planos de saúde. Examinando os autos, se verifica que nem todos os aumentos anuais impostos ao longo dos anos reclamados na inicial importaram em causa de desequilíbrio contratual, isso tendo em vista o índice médio adotado pelos demais planos de saúde coletivo, como é o presente, porquanto, como já dito, até 2018, a ANS fixava os índices de reajustes considerando a média dos reajustes coletivos. Vale dizer, os aumentos impostos anualmente pelo plano de saúde nos anos de 2012 a 2019 foram na ordem de 10,39% (...); 18,74% (...); 8,81% (...); 9,45% (...); 13,49% (...); 9,05% (...); 17,38% (...) e 13,68% (...) respectivamente, mostrando-se tão somente os índices que somente nos anos de 2012, 2013, 2018 e 2019 é que se apresentaram substancialmente superiores aos divulgados pela ANS para os contratos individuais do período, da ordem de 7,93% (...); 9,04% (...); 10% (...) e 7,35% (...), respectivamente, fazendo-se devida a aplicação do percentual aplicado pela ANS nestes anos. Todavia, verifica-se que não há abusividade quanto aos reajustes operados nos demais anos questionados, estando inclusive inferiores aos percentuais estabelecidos pela ANS. Dessa forma, entendo que somente podem ser considerados excessivos os reajustes ocorridos nos anos de 2012, 2013, 2018 e 2019, daí porque só com relação aos referidos períodos é que cumpre revisar para adotar os índices médios dos demais planos coletivos, que nada mas são, repita-se, do que o próprio índice da ANS para os planos individuais, divulgados anualmente Ante o exposto, voto no sentido de CONHECER O RECURSO E DAR-LHE PROVIMENTO PARCIAL para reformar a sentença, declarando abusivos os reajustes anuais e aumentos por sinistralidade dados pelo plano de saúde réu nos anos de 2012, 2013, 2018 e 2019, revisionando o contrato, permitindo-se tão só para as respectivos anos, a aplicação dos índices de reajustes anuais dados pela ANS para os referidos períodos, determinando a restituição simples dos respectivos valores pagos a maior, respeitado o prazo prescricional de 03 (três) anos. Sem custas e honorários advocatícios. BELA. MARIA AUXILIADORA SOBRAL LEITE Juíza Relatora