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5 de Maio de 2024

As duas mortes do Toni. Artigo de João Negrão sobre o assassinato de Toni, no Rola Papo

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JOÃO NEGRÃO - Nada justifica a postura dos

representantes da UFMT que qualificaram o Toni como um indivíduo de má

conduta.O Toni não era um bandido. Ele necessitava de tratamento para

poder concluir os estudos e voltar para o seu país.

LEIA A MATÉRIA DIRETO DA FONTE

27/09/2011 - 20:45:00

As duas mortes do Toni

Por João Negrão, especial para o Maria Frô

Quarta-feira, 21 de setembro de 2011, 19 horas, em Jackson, capital do

estado da Geórgia, Estados Unidos, Troy Davis, um negro de 42 anos,

recebeu a dose letal que o levaria à morte. Condenado por assassinato,

Troy Davis deitou-se na maca para receber as injeções repetindo a mesma

frase de 22 anos antes, quando foi preso e condenado: “Sou inocente”.

Quinta-feira, 22 de setembro de 2011, por volta das 23 horas, em

Cuiabá, capital do estado de Mato Grosso, Brasil, Tony Bernardo da

Silva, um negro de 27 anos, africano de Guiné-Bissau, estudante de

Economia da Universidade Federal, recebeu um pontapé na traquéia e

morreu. O golpe culmina uma sessão de socos e pontapés desferidos por

dois policiais e um empresário que duraria em torno de 15 minutos.

Impossível não traçar um paralelo entre as duas mortes.

A primeira foi uma condenação legal, nos moldes da justiça

norte-americana, que todos conhecemos, empenhada a condenar negros,

ainda que, como é o caso de Troy, haja evidências de inocência.

Inclusive depoimento de outro preso assumindo a autoria do crime

atribuído a ele. Em vão: Troy não recebeu perdão, não teve a clemência

do governador da Geórgia e muito menos direito a recurso na Suprema

Corte, dado às evidências de sua inocência.

Difícil não imaginar que se trata de mais um caso de racismo como os

que pontuam a crueldade do sistema jurídico e a sociedade racista dos

Estados Unidos, especialmente nos estados sulistas como a Geórgia.

Como é difícil não suspeitar que o caso do Toni foi uma expressão pura e cabal de racismo.

Uma condenação prévia: um negro que adentra a uma pizzaria freqüentada

por rapagões e moçoilas de classe média alta de Cuiabá, num bairro idem,

embora predominantemente de repúblicas estudantis (o Boa Esperança fica

ao lado do campus da UFMT) é um bandido. E ainda mais se este negro

acidentalmente esbarra na namorada de um desses fregueses.

Afinal, aquele não é um lugar para negros. Pior ainda. Que atrevimento!

Um negro que deveria estar na senzala não pode adentrar a uma casa

grande dos pequenos burgueses e tocar a mulher branca do sinhozinho.

Então, eis seu crime. E está decretada a pena de morte. Não se sabe se

os policiais e o empresário (sinhozinho) estavam armados. Se estivessem

teriam desferido vários tiros? Tenho dúvida. Não sei se não preferiram

mesmo usar como instrumentos de execução os socos e pontapés. Afinal,

esta na moda uma das marcas da intolerância: matar a porradas negros,

homossexuais e todos que esses “bad boys” não toleram por serem

diferentes deles, supostamente bem nascidos, bem nutridos e crentes da

impunidade. E com um ingrediente macabro: eles se divertem. E não raras

vezes filmam e jogam em suas redes sociais.

Seguindo o mesmo “modelito” que a imprensa em geral aplica a esses

casos, todos ciosos a dar voz e vez aos assassinos da elite, tentam

desqualificar o morto. Versões diversas surgem por todos lados dando

conta que ele tinha passagens pela polícia, era drogado, perdeu a vaga

no convênio da UFMT e outras informações nefastas. Como sempre trabalham

com meias-verdades, com deturpações dos fatos e a omissão de outros.

Essas versões são disseminadas por advogados e familiares dos

assassinos, que encontram voz em veículos de comunicação que,

deliberadamente ou não, as propagam sem questionar o contexto da vida do

Toni e os depoimentos de amigos, colegas e ex-namorada, todos,

unanimemente, testemunhando sua conduta passível e respeitadora.

É compreensível que os advogados e familiares tomem tal atitude. Mas

não justifica a postura dos representantes da Universidade Federal de

Mato Grosso, que qualificaram o Toni como um indivíduo de má conduta.

O setor da UFMT responsável pelo convênio entre o governo brasileiro e

os governos dos países africanos de língua portuguesa, que permitem

jovens daqueles países estudarem no Brasil, sempre foi omisso e racista

com esses estudantes. Poderia desfilar aqui uma série de descasos,

dificuldades criadas e declarações preconceituosas. Não é o caso agora.

Por enquanto fica o registro de que o Toni sempre buscou

desesperadamente lutar contra o vício do crack e encontrou pouco apoio

na UFMT. Seus amigos se mobilizaram, igualmente seus colegas e

professores. Mas a instituição se agarrou na burocracia. Por ele não

conseguir mais freqüentar as aulas, o desligaram do convênio, pura e

simplesmente. E ficou por isso. Contudo não pouparam declarações cruéis,

insensíveis e até irresponsáveis na imprensa.

Esta é a mesma instituição que ignora que drogas como o crack estão se

proliferando dentro e na periferia do campus da UFMT do Boa Esperança.

Foi ali mesmo que o Toni se viciou. Nas imediações da república em que

ele morava, assim como nos corredores da UFMT, a droga e traficantes

transitam livremente. Que providência a instituição tem tomado acerca

disso? Prefere tapar os olhos e ajudar a condenar seus jovens alunos.

Foi-se o tempo em que o romantismo e a rebeldia de fumar um baseado

faziam parte do cotidiano universitário. Agora o ambiente universitário é

um dos mercados de drogas pesadas, assim como seu entorno. E a tragédia

do crack, a pior delas, bate à porta de todos nós. Meus amigos e

colegas, muitos deles vivendo esse drama familiar, sabem do que estou

dizendo. Acompanhei esses dramas quando morava ainda em Cuiabá.

Eu mesmo o vivo bem de perto. Tenho um irmão que vive a perambular

pelas ruas de Goiânia se consumindo pelo crack. Gilmar, um dos sete

filhos adotivos de minha mãe, era um rapaz trabalhador desde criança.

Estudou, casou, formou família. Suas três filhas e esposa não agüentaram

viver aquela tragédia e o abandonaram. Desde então passou a viver nas

cracolândias do bairro Vila Nova, na capital de Goiás.

Minha mãe, já com seus 74 anos e morando agora em Goiânia, acompanha

seu infortúnio e, dentro de suas limitações, nos mobiliza a todos para

tentar salvá-lo.

O Toni tentou sobreviver. Poucos meses antes de voltar para Brasília, o

recebi na minha casa, a qual ele freqüentava com os demais estudantes

guineenses. Minha mulher era amiga dele, chegaram de Guiné-Bissau

juntos. Ele para curso Economia e ela, Publicidade. Éramos capazes de

deixar nossa casa aberta para ele, junto com meus filhos. O Toni não era

um bandido. Repito: era uma pessoa amável e respeitadora.

Naquela tarde fria de julho e Cuiabá melancólica devido à carência de

seu sol escaldante, o Toni chegou desesperado. Primeiro pediu dinheiro

emprestado. Depois, muito envergonhado, chorou no nosso colo. Pediu

ajuda, implorou para que afastássemos aquela sua vontade incontrolável

de querer consumir a droga. Então começamos a mobilizar os amigos,

colegas e seus professores. Ele necessitava de tratamento para poder

concluir os estudos e voltar para o seu país.

Dois meses depois voltei para Brasília. Mas acompanhamos daqui a vida

do Toni. Ficamos sabendo que ele havia ido para o tratamento. Depois

fomos informados que havia vendido tudo que tinha e foi obrigado a

entregar toda a sua bolsa de estudos para os traficantes. Quando perdeu a

bolsa, foi para a rua mendigar. Foi num desses momentos que entrou na

pizzaria naquela noite do dia 22 de setembro.

O Toni é filho de uma família de classe média alta em Guiné-Bissau. Seu

pai é agrônomo e possui uma pequena fazenda. Idealista, sempre quis que

os filhos tivessem boa formação para ajudarem no desenvolvimento do

país. Tem irmãos que estudam ou estudaram na França, Inglaterra e

Portugal. Parte da família fez carreira nas forças armadas, onde um tio

seu é um dos comandantes.

Certa vez o Toni foi flagrado pela polícia em Cuiabá carregando um

botijão de gás que ganhou de um dos colegas, pois o seu ele havia

vendido para comprar crack. A polícia o abordou, o levou preso, apesar

de afirmar que o objeto era dele. Passou o dia inteiro na delegacia,

jogado numa sala e só saiu de lá depois que acionou a Polícia Federal,

jurisdição da qual estão os estudantes africanos.

Aqui abro um parêntese. Não foram poucas as vezes que a UFMT acionou a

Polícia Federal para perseguir os estudantes africanos que, por um

motivo ou outro, não estavam freqüentando aulas ou haviam formado e

ainda estavam no Brasil tentando pós-graduações ou empregos.

Setores da imprensa de Cuiabá, motivados por advogados e familiares dos

assassinos, utilizam este caso do botijão, entre outros sem gravidade,

para propagar que o Toni tinha passagens pela polícia. Como se a tal

“passagem” fosse uma sentença de morte.

Antes de continuar, peço licença para contar duas histórias:

Em 1980, um rapaz que faria 20 anos dali a poucas semanas, cursava

Agrimensura na antiga Escola Técnica Federal de Goiás e fazia estágio

numa cidade a 20 quilômetros de Goiânia. Numa tarde, como fazia todos os

dias, entrou às 17 horas no ônibus que o levaria de volta para casa,

quando dois policiais o abordaram, algemaram, jogaram no camburão e

levaram para a delegacia. Lavraram um boletim e mal ouviram a versão do

rapaz. Em seguida, para fazê-lo confessar que havia feito um assalto, os

policiais deram-lhe tapas nos ouvidos, murros, beliscões no nariz, nas

orelhas, cascudos e ameaçaram quebrar seus dedos com um alicate e

queimá-lo com cigarros.

As sevícias duram até que um dos policiais sugeriu ao delegado que o

rapaz fosse levado para que a vítima identificasse o assaltante. Àquela

altura a cidade inteira já sabia da prisão. Ao chegar à casa da senhora

assaltada, de onde foram levados um televisor, aparelho de som e uma

bicicleta do filho, o carro da polícia encontrou uma multidão que queria

linchar o “bandido”. Os policiais com dificuldade abriram um corredor

para a mulher chegar até o carro. Quando ela olhou pelo pára-brisa foi

logo dizendo: “Não, não é este. O ladrão é branco!”.

Em 2004, um homem de 44 anos foi abordado pela polícia próximo à sua

casa. Estranhou o fato de os policiais o obrigarem a ficar ao lado da

viatura, longe do seu carro. Então um dos policiais faz uma rápida

revista e aparece com um revolver e um pacote do que seriam drogas.

Imediatamente o homem protesta, denuncia a “plantação” e só não vai

preso porque estava com a identificação de secretário-adjunto de

Comunicação Social do governo de Mato Grosso e ameaçou denunciar os

policiais, que imediatamente fugiram do local.

O homem e o rapaz de 24 anos antes é a mesma pessoa: eu. Poderia aqui

contar outras várias histórias de arbitrariedades e prisões às quais fui

submetido. Por ser negro, tido como ladrão, drogado e traficante, tive

passagens pela polícia. Infelizmente aquela piadinha infame que de vez

em quando ouvimos por aí é de fato uma máxima entre policiais: “Preto

parado é suspeito, correndo é ladrão”.

Quantas passagens pela polícia justificam uma morte?

Mereceria eu morrer por ter cometido o crime de ter nascido negro?

Mereceria eu morrer pelo crime de provocar aos policiais a sanha

assassina de quem ainda nos vê como escravos, como sub-raça, como seres

desprezíveis?

Mereceria eu morrer porque há cinco séculos retiraram meus antepassados

da África, jogaram num navio negreiro, atravessaram o Atlântico, os

leiloaram, os submeteram a ferro e fogo, os jogaram nos canaviais, minas

e fazendas, os subjugaram nas senzalas, colocaram no pelourinho,

humilharam, sugaram seus sangues e suores, para depois, com a abolição,

os jogarem as ruas como se fossem animais, sem direito a dignidade?

Deveria eu morrer por ser filho de Clarice Laura e José Orozimbo, neto

de José e Regina e de Josefa e Pedro Alves, por sua vez netos e filhos

de escravos?

Este é meu crime?

Por favor, se é este o meu crime, então que me matem! Mas me matem apenas uma vez. Não façam como estão fazendo com o Toni.

Depois de ser trucidado pelos “bad boys da intolerância”, Toni corre o

risco de ser massacrado, pisoteado, sangrando até a última gota da sua

dignidade.

PS: O corpo do Toni ainda está no IML de Cuiabá aguardando resultados

de exames pedidos pelo delegado que acompanha o caso e a chegada da

família para liberá-lo.

Dona Cecília, mãe dele, me informou que um de suas irmãs, que é arquiteta na França, deve vir ao Brasil.

A Embaixada de Guiné-Bissau em Brasília também está acompanhando o caso e prestando apoio à família.

O governo brasileiro, por meio do Itamaraty, já se manifestou,

repudiando o crime e pedindo desculpas à família e aos guineenses.

Amigos e compatriotas do Toni estão se mobilizando em Cuiabá e aqui em

Brasília, denunciando o assassinato e pedido para que seja tipificado

como motivado por racismo.

JOÃO NEGRÃO é jornalista em Brasília.

Transcrito da Página do Enock

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