Há incompatibilidade entre a Lei de Juizados Especiais e a inimputabilidade penal?
Em decisão recente, o Superior Tribunal de Justiça[1] negou os direitos decorrentes da lei do JECRIM a um paciente inimputável, que respondia pelo crime de lesão corporal, sob o argumento de que sua incapacidade prejudicaria o entendimento do caráter punitivo e o cumprimento das condições impostas para transação penal e suspensão condicional do processo. O argumento utilizado na decisão se estendeu, ainda, aos semi-imputáveis, que também não teriam condições de entender o propósito dos institutos.
A lei 9.099/95 instituiu os Juizados Especiais Criminais, JECRIM, e trouxe uma mudança ideológica no sentido da despenalização e redução do encarceramento nos casos de crimes de menor potencial ofensivo. Medidas como a composição civil, a transação penal e o sursis processual são marcos dessa tendência e evidenciam um direito penal mais próximo do ideal garantista.
A composição civil é um acordo entre acusado e vítima para reparar os danos causados pelo crime, além de representar a renúncia à representação nos casos de ação penal privada ou condicionada. Em caso de ação penal incondicionada, a composição civil se equipara ao arrependimento posterior, o que diminui a pena em eventual transação penal ou condenação. A transação penal, a seu turno, é o oferecimento de pena antecipada, restritiva de direitos ou multa, pelo Ministério Público ao acusado, em momento anterior à denúncia.
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Conforme Aury Lopes Jr., “a transação penal é um direito subjetivo do réu, de modo que, preenchidos os requisitos legais, deve ser oportunizada ao acusado”.[2] Por fim, a suspensão condicional do processo, ou sursis processual, é proposta pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia, em casos de crimes com pena mínima inferior a um ano, com a fixação de um período de prova de 2 a 4 anos, em que o acusado deve cumprir determinadas condições. Se assim o fizer, é extinta a sua punibilidade ao final do prazo.
Considerando-se que os inimputáveis e os semi-imputáveis não cumprem pena, mas medida de segurança, que é uma espécie de sanção penal voltada ao tratamento dos transtornos mentais com base na periculosidade do agente, a decisão do Tribunal é coerente ao excluir a hipótese de aplicação das medidas do JECRIM ao ser constatada a inimputabilidade. No entanto, mostra-se incompatível com a tendência de desinstitucionalização que se verifica na reforma psiquiátrica proposta pela lei 10.216/01.
A crítica antipsiquiátrica, mais do que reduzir os casos de internação e acabar com instituições de características asilares, visa a mudança de paradigma em relação ao portador de transtorno mental, reconhecendo sua dignidade e expondo a realidade das medidas de segurança que, sob o manto da ressocialização e tratamento, configuram sofrimento ilimitado e estigmatização.[3] Nesse sentido, o esforço legislativo demanda vontade política para surtir efeitos.
Projetos como o PAI-PJ, Programa de Atenção Integral ao Paciente Judiciário Portador de Sofrimento Mental Infrator, em Minas Gerais, e o PAILI, Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator, em Goiás, são referências no tratamento de infratores portadores de transtorno mental e apresentam resultados satisfatórios.[4] Esses programas atuam através de tratamento e acompanhamento multidisciplinar do infrator, conferindo-lhe maior autonomia e dignidade.
Uma vez que a lei tem como orientação a não aplicação de pena privativa de liberdade, sempre que possível, e tem aplicação em relação às disposições do Código Penal desde que não haja incompatibilidade e, tendo em vista que a medida de segurança tem natureza jurídica de sanção, não nos parece razoável o argumento de negação da aplicação da lei do JECRIM aos inimputáveis por ausência de previsão legal.[5]
Conforme o artigo 149, § 2º, do Código de Processo Penal, em caso de constatação de insanidade mental do acusado, o juiz nomeará curador especial para acompanhá-lo durante o processo. Considerando essa previsão, negar os benefícios da lei à pretexto da possibilidade de descumprimento das condições seria caminhar no sentido oposto ao movimento legislativo mais recente. Havendo curador especial, a ele caberia aceitar ou não a proposta de transação penal, e fiscalizar o cumprimento do tratamento ambulatorial condicionante do sursis processual. Note-se que o tratamento ambulatorial, diferentemente da internação, não implica em privação de liberdade, e, portanto, parece-nos compatível com os institutos previstos na lei do JECRIM, tanto em relação aos inimputáveis quanto aos semi-imputáveis.
Conforme Antonio Carlos da Ponte,[6] em caso de transação penal, a sentença não homologaria diretamente a medida, mas ficaria condicionada ao cumprimento da medida de segurança de tratamento ambulatorial e, somente assim, faria coisa julgada formal e material. A mesma condição se aplicaria ao sursis processual: com o cumprimento da medida, extingue-se a punibilidade.
Em se tratando de direito subjetivo do acusado, a exclusão da aplicação dos institutos da lei do JECRIM aos infratores portadores de transtorno mental atua na contramão da reforma psiquiátrica sem que haja justificativa suficiente para tanto, e segrega ainda mais essa parcela da população já tão esquecida e discriminada.
Ana Luiza Gardiman Arruda é Mestranda do Núcleo de Pesquisa em Direito Penal da PUC/SP. Bolsista do CNPq. Advogada.
[1] HC 370032/SP. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma. Julgado em 18/04/2017.
[2] LOPES JR. Aury. Direito Processual penal. 12.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 752.
[3] CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. 2.ed. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 517.
[4] Em dez anos de atividade, o PAI-PJ atendeu 799 pacientes, registrando um índice de reincidência de apenas 2%. Disponível em: http://ftp.tjmg.jus.br/presidencia/projetonovosrumos/pai_pj/resultados.html Acesso em: 09/08/2017.
[5] Cf. PONTE, Antonio Carlos da. Inimputabilidade e Juizados Especiais Criminais. Revista dos Tribunais. Vol. 848/2006. p. 438-453. Jun/2006.
[6] Idem.