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16 de Junho de 2024

Mendicância: deixou de ser infração penal

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LUIZ FLÁVIO GOMES ( www.blogdolfg.com.br )

Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri, Mestre em Direito Penal pela USP e Diretor-Presidente da Rede de Ensino LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

Como citar este artigo: GOMES, Luiz Flávio. Mendicância: deixou de ser infração penal. Disponível em http://www.lfg.com.br 24 julho. 2009.

Por força da Lei 11.983/2009, desde o dia 17.07.09 deixou a mendicância de ser (entre nós) infração penal (mais precisamente contravenção penal). Por mais chocante que possa parecer, até esta data a mendicância, em determinadas circunstâncias, era punida com pena de prisão simples, de quinze dias a três meses (art. 60 da Lei das Contravencoes Penais - Decreto-Lei 3.688/1941). Resta agora a abolição da contravenção de vadiagem, dentre tantas outras.

Caso de abolitio criminis: quando uma lei nova descriminaliza um fato antes tido como delito ou contravenção penal, dá-se o fenômeno da abolitio criminis, que é retroativa. Aliás, toda lei nova mais favorável ao agente do fato é retroativa (por força de dispositivo constitucional: CF, art. , inc. XL).

Em que consistia o fato típico "mendicância"? Dizia o art. 60, acima referido, o seguinte: "Mendigar, por ociosidade ou cupidez: Pena - prisão simples, de quinze dias a três meses. Parágrafo único. Aumenta-se a pena de um sexto a um terço, se a contravenção é praticada: a) de modo vexatório, ameaçador ou fraudulento; b) mediante simulação de moléstia ou de enfermidade; c) em companhia de alienado ou de menor de dezoito anos".

Tipo penal em desuso: sim, raramente (mas muito raramente mesmo), nas últimas décadas, a Justiça criminal fez uso desse tipo penal para punir o mendigo. Cuida-se de um tipo em desuso. Mas o desuso, como se sabe, não revoga a lei (no plano formal). Ele afeta a sua eficácia (no plano sociológico), mas ela continua vigente.

Vigente mas inválida: como bem vinha acentuando a melhor doutrina (cf., v.g., Silvio Maciel, em Legislação criminal especial, vários autores, São Paulo: RT, 2009, p. 134), tratava-se de uma "teratologia legislativa", totalmente inconstitucional (e, portanto, inválida), porque criminalizar a mendicância é, desde logo, um atentado à dignidade humana. Cuidava-se, portanto, de norma vigente, mas inválida (inclusive porque discriminatória e elitista).

Explicação sociológica para a norma revogada: a forma pela qual os brasileiros são socializados consagra duas coisas: (a) a desigualdade e (b) as técnicas para burlar a lei. Isso retrata o Brasil como um país atrasado (arcaico). Pesquisa Social Brasileira, feita em 2002 (cf. Alberto Carlos Almeida, A cabeça do brasileiro, Rio de Janeiro-São Paulo, Record, 2007) veio comprovar que o Brasil, pelas suas desigualdades, é mesmo um país arcaico, sendo que a mentalidade da sua população conta as seguintes características: a) apóia o jeitinho brasileiro; b) é hierárquico; c) é patrimonialista; d) é fatalista; e) não confia nos amigos; f) não tem espírito público; g) defende a "Lei do Talião"; h) é contra o liberalismo sexual; i) é a favor da intervenção do Estado na economia; j) é a favor da censura.

Do Estado-providência ao Estado-penitência: o que também explica a existência da punição penal para a mendicância (para a vadiagem etc.) é a mentalidade exageradamente punitivista das classes sociais superiores que, para além de descarregar todo seu sentimento de culpa pela ladroagem e corrupção que pratica, são as que governam o Estado e o país. O Estado brasileiro nunca foi, a rigor, frente às classes menos favorecidas, um Estado de bem-estar social (um Estado-providência). Diante dos menos favorecidos nele sempre preponderou o Estado-penitência. No nosso país sempre glorificou o Estado penal (em detrimento do Estado social e democrático de Direito).

Nossas políticas criminais sempre ganharam a conotação de "políticas policiais e penitenciárias". Todo país em que o desequilíbrio de forças (entre as classes dominantes e as classes dominadas) é absoluto e total, pende a balança do Direito (frente aos mais pobres) para o âmbito punitivo (não social, econômico). Quanto mais miséria, nesse modelo, mais intervenção penal (menos intervenção inclusiva, de natureza social e econômica). Miséria mais desorganização social mais conglomeração de pessoas em pouco espaço físico gera muita insegurança, muitas desordens. Em lugar de se cuidar da raiz do problema (desemprego, favelização, falta de escolaridade, falta de lazer ao jovem, políticas de integração, políticas salariais decentes etc.), dá-se uma "solução" (maquiagem) aos seus efeitos: criminalização da miséria e dos miseráveis (do Estado de punho protetivo e includente, opta-se pelo Estado de punho de ferro).

As classes populares (os menos escolarizados, os excluídos, os desempregados, os mendigos etc.) podem ser reguladas de duas maneiras (como explica Pierre Bourdieu, citado por Loïc Wacqualt, em Punir os pobres, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2001, p. 135): ou pela mão esquerda do Estado (educação, saúde, assistência, habitação, lazer, inclusão etc.) ou pela mão direita (polícia, justiça, prisão, exclusão etc.).

O Estado prioritariamente punitivista chega a exageros incomensuráveis (como é a punição da mendicância ou da vadiagem) porque acaba privilegiando (desequilibradamente) o "direito à segurança" em detrimento do "direito ao trabalho" (ao lazer, à habitação, à educação, à saúde etc.). Esse é o Estado liberal-punitivista, ou seja, liberal no alto, "em relação às grandes empresas e às categorias privilegiadas" e "punitivo embaixo, para com aqueles que se veem sob as tenazes (condições) da reestruturação do emprego e o recuo das proteções sociais ou sua reconversão em instrumento da vigilância" (Loïc Wacqhant, citado, p. 136).

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