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7 de Maio de 2024

Negociando com Vespas

O risco de uma (nova) política externa ideologizada

Publicado por Eduardo Sefer
há 5 anos
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O Brasil possui um histórico invejável em termos de diplomacia. Historicamente, soube se manter neutro e sólido entre as contendas. Não discriminar parceiros e oponentes. Não se aliar a ninguém, nem se alinhar com ninguém. Defender seus interesses comerciais e políticos, mas agir com pragmatismo. Prudência, por vezes, excessiva, mas sempre presente.

Num país recém-tornado independente, reconheceu a autodeterminação de sua única província de língua castelhana, a despeito de tê-la em seu controle. Interviu sempre que necessário; mas nunca invadiu ou anexou terras vizinhas, mesmo com a abundância de oportunidades para fazê-lo; de caudilhos bolivianos a comerciantes lusos em Angola, de rebeldes nas duas margens do Prata à descolonização das Guianas, nenhuma agressão ou conquista foi feita. Uma exceção pontualíssima viria a ser o Acre, colônia de uma dezena de milhar de cearenses, que, mais brasileiro que boliviano, foi transferido ao nosso controle por comum acordo.

No século XX, o impressionante progresso do avanço industrial e científico beneficiou o mundo de forma um tanto desigual. Nosso país demorou consideravelmente para abraçá-lo (graças, no grosso, à má política econômica); mas em termos de diplomacia, continuou consistente como de costume. Um pequeno desvio, em 1946, quando auxiliou na criação da ONU, e outros atos questionáveis, sob a batuta de Oswaldo Aranha. Mas, em linhas gerais, dois séculos e quatro golpes de estado (1889, 1930, 1937 e 1964) não mudaram uma vírgula de nossa tradição diplomática, neutra, não alinhada, livre e soberana.

Claro, houveram momentos e momentos. Certos grupos políticos tencionaram forçar uma mudança em nosso (não) alinhamento. O Partido Comunista Brasileiro foi banido da política precisamente por ter apoio direto de Moscou. A ingerência de interesses outros em nossa política (felizmente) é um ponto sensível. É forçoso admitir que houve uma razoável blindagem nesse aspecto - ao contrário dos EUA, onde o lobby de interesses estrangeiros (notadamente a AIPAC, de matiz israelense) é extremamente forte e eleitoralmente decisivo.

Nos últimos anos, contudo, vimos alguns tropeços nessa linha independente. O fenômeno do alinhamento ideológico - notadamente com nossos vizinhos - começou a tomar forma. Acordos que não nos beneficiavam de nenhuma forma. Financiamentos de projetos estrangeiros a juros subsidiados, cujo único retorno seria conseguir novos concorrentes, e enriquecer empresas amigas do governo. Ajudas financeiras a tiranias de terras remotas, sem qualquer retorno. Mantivemos a neutralidade oficial, mas oficiosamente, houve uma guinada muito peculiar. A Venezuela ganhou uma refinaria e uma inexplicável vaga no Mercosul (que aproveitou-se de uma injusta suspensão do Paraguai para colocá-la dentro); a Bolívia nacionalizou todo o ativo da Petrobrás com o silencioso aval do governo brasileiro. Cuba, Angola e Guiné Equatorial foram beneficiados por empreendimentos financiados a fundo perdido. A China ingressou na OMC com nosso apoio, ao passo que não deu o apoio que esperávamos na ONU.

Disse o Barão do Rio Branco: "no relacionamento internacional não há amigos nem inimigos. Existem apenas – e sempre – interesses, conflituosos ou convergentes". Uma máxima que é ignorada pela diplomacia movida à ideologia. O governo presente parece ter recuperado a compostura.

E por qual motivo escrevo este artigo?

Simples. Nosso presidente eleito parece ignorar por completo este fato. Critica, corretamente, a diplomacia ideológica do último governo de esquerda. Mas a todo momento apregoa construir uma nova. Que tenha uma salutar proposta de acordos bilaterais - certo - mas quer antagonizar com nossos clientes e parceiros por pura e simples predileção ideológica.

Num mundo multipolar, alinhar-se a um dos polos implica em abdicar do seu. O Brasil sempre se mostrou um agente neutro e livre. Agora - após anos de irresponsabilidade e alinhamento - tem sua neutralidade novamente ameaçada pela intransigência política e por favoritismos tacanhos.

Andiemo. A China já enviou a mensagem, por via de sua imprensa oficial para o estrangeiro. Que a retórica eleitoral fique no campo eleitoral. O andar da carruagem, nesse aspecto, é extremamente preocupante. O presidente eleito demonstra, até agora, não saber distinguir os espaços.

Ontem (06/11), nosso presente Chanceler teve um encontro desmarcado no Egito. Um prenúncio muito simples e claro. O Oriente Médio responde por 1/8 de nossa exportação agropecuária. Conquistamos esse mercado a muito custo, desde a década de 1970. E podemos sofrer graves perdas se o falatório irresponsável prossiga, ou pior, se torne realidade.

Falo, por óbvio, da decisão de transferir a embaixada brasileira para Jerusalém. Não é uma questão de "soberania nacional". O Estado de Israel foi uma das poucas entidades criadas por iniciativa e resolução da ONU (e a primeira que passou pelo procedimento). A mesma Resolução que criou Israel (181/1947) definiu Jerusalém como território internacional. A expulsão sistemática de 700.000 palestinos, a partir de 1947, e a ocupação do território repartido por Israel, Jordânia e Egito em 1948, não alterou o status aplicável e internacionalmente reconhecido a Jerusalém - na qualidade de corpus separatum. Reconhecer Jerusalém como capital de Israel viola a própria resolução que criou Israel.

Este é um ponto sensível na política internacional. Equivale a tomar partido numa disputa não resolvida, coisa que o Brasil foi muito criterioso em não fazer. E nesse caso, tomar partido contra um cliente valoroso, a troco de nada. Um antagonismo fútil e capacho. Equivale a reconhecer como território soberano uma ocupação ilegal.

A pergunta mestra da diplomacia sã é: "como isso nos beneficia?". O que ganhamos com isso? Respondo: em nada. Abriremos espaço para a Austrália, Argentina e Turquia tomarem nosso mercado. O presidente eleito fala em "água para o Nordeste" com uma tecnologia de dessalinização israelense. Não é a única, para início de conversa. Mais eis o ponto: é necessário rastejar para obter cooperação?

O Brasil já possui um acordo comercial com Israel, e alinhamento geopolítico não é requisito para trocas comerciais e tecnológicas. Bastante recordar que nosso programa nuclear foi construído, no auge da Guerra Fria e contra as pressões norte-americanas, com auxílio da Alemanha. E que nosso sistema hidrelétrico foi estruturado com cooperação tecnológica soviética, no mesmo período. E para isso, não foi necessário implorar de joelhos a Schmidt ou a Brezhnev. Não foi necessário prometer apoio na ONU à Alemanha ou à URSS - algo que o Brasil nunca fez.

Dialogar com todos, negociar com todos, de forma neutra, mas na defesa firme de nossos interesses. Sem antagonismo, sem alianças, sem promessas de mútuo apoio. "Comércio com todos, aliança com ninguém". Nos desviamos por 14 anos deste saudável caminho, e temos a oportunidade de voltar a ele em definitivo.

Por fim, fica o alerta, novamente, feito por Rio Branco:

“O sentimento de gratidão raros homens o possuem e mais raro ainda ou menos duradouro é ele nas coletividades humanas que se chamam Nações.”

Que o Presidente eleito tenha mais consciência do que faz e diz, consiga conselheiros melhores, estude um pouco mais o assunto, e coloque o interesse da nação acima de suas predileções ideológicas - o que, no momento, não parece estar fazendo.

Ainda há tempo. Que seja melhor aproveitado.

E que, no futuro próximo, não deixe a política estragar nosso comércio.

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