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6 de Maio de 2024

Pretensão judicial de R$ 8,10 é irrelevante. "Pode isso, Arnaldo?"

Juiz do Pará inaugura o "princípio da pretensão judicial insignificante".

Publicado por Jocil Moraes Filho
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Era uma vez... Não?!

Melhor, contar logo o caso (apesar de parecer surreal)...

O Juiz de Direito da 2ª Vara da Fazenda da Capital do Estado do Pará, Dr. João Batista Lopes do Nascimento, sentenciou uma pretensão judicial de R$ 8,10, de maneira bastante curiosa e discutível:

Com a devida venia ao entendimento do nobre magistrado, mas ele demonstrou tudo, menos preparo para o trato da jurisdição. Fosse ele um Juiz de Futebol (com as devidas venias aos árbitros), certamente só apitaria os jogos de primeira divisão ou da UEFA Champions League, é claro, afinal de contas só existe necessidade/relevância de tutelar as grandes causas.

Fosse Ministro do STF então: julgar se a pesca de dois camarões no período de defeso ou o furto um pacote de bolachas, ambos para alimentar-se, atrairia a incidência do princípio da insignificância (bagatela), para os crimes ambiental e de furto, seria um verdadeiro insulto à prestação jurisdicional constitucional.

Afora o tom desrespeitoso e indecoroso do magistrado, chama atenção o seu verdadeiro descompromisso e descompasso com a processualística vigente. Mal sabe ele que uma quantia de R$ 8,10 aqui e outra acolá, ao final das contas trazem um prejuízo de milhões aos jurisdicionados.

Será que ele irá adotar a mesma postura com os próximos 100, 1.000 ou 10.000 jurisdicionados que forem às suas barras exigir os mesmos R$ 8,10?

Aliás, deveria manter a postura e preparar os envelopes e as notas de R$ 10,00, pois, é bom que se diga, ele está obrigado a manter integridade e coerência nas suas decisões (art. 926 do CPC), delas somente se afastando quando demonstrar o overruling ou o distinguish, bem como, está proibido de adotar comportamento (endo e inter) processual contraditório, não podendo, sequer, exigir o troco de R$ 1,90 dos demais, dado o precedente que criou.

Mas falando sério, a decisão é uma violação frontal à prestação jurisdicional, que aliás não foi prestada (foi negada!).

Nem se ouse afirmar que a decisão seria uma espécie de non liquet pós-moderno, porque isso seria deveras leviano com Aulo Gélio, já que:

Na Roma Antiga, o pretor tinha a faculdade de, entrando em estado de perplexidade, determinado por dúvida insuperável em face do conflito das provas, proferir o non liquet (expressão abreviada da fórmula juravi mihi no liquere, atque ita judicatu illo solutus sum, ou, em tradução livre, “jurei que o assunto não estava claro, e me afasto, em consequência, daquele julgamento”). Assim julgou o magistrado Aulo Gélio ao apreciar intrincada e complexa demanda, sobre a qual não logrou formar segura convicção, certeza estreme de dúvidas. Fonte

A hipótese ora ventilada é de profunda falta de sensibilidade judiciária e até mesmo de vida, daí porque as pontuais preocupações da atual Presidente do STF, a Eminente Ministra Carmen Lúcia com relação à seriedade (Ninguém é obrigado a ser juiz. Se for juiz precisa ser sério, ou não é juiz, é simples assim.”, e à vocação do juiz . Longe de se estar aqui defendendo que a infelicidade da decisão é recorrente na magistratura, que aliás, tem envidado esforços para adequar-se, em parco tempo, a um CPC bastante complexo e intrincado.

No entanto, é imperioso que se diga que o processo que se espraia a partir do advento do CPC vigente é extremamente minucioso e demanda bastante percuciência na análise de questões como a discutida no presente caso, em que o Detran/PA, cobrou uma taxa de R$ 8,10 do jurisdicionado, para entregar pelos Correios o seu documento de circulação veicular e, além de não tê-lo entregue no endereço do autor, ainda se recusou a repetir o valor.

Já tive a oportunidade de presenciar, em evento promovido em São Paulo, acerca da aplicação do CPC ao processo tributário, o eminente FREDIE DIDIER JR assentar que não seria necessário abrir o então Novo CPC com um capítulo de Normas Fundamentais, que nada mais são do que meras reproduções de princípios extraídos do texto constitucional, muito embora, na sua doutrina encontremos a advertência de que:

Embora se trate de uma obviedade, é pedagógico e oportuno o alerta de que as normas de direito processual civil não podem ser compreendidas sem o confronto com o texto constitucional, sobretudo no caso brasileiro, que possui um vasto sistema de normas constitucionais processuais, todas orbitando em torno do princípio do devido processo legal, também de natureza constitucional.

Ele é claramente uma tomada de posição do legislador no sentido de reconhecimento da força normativa da Constituição.

E isso não é pouca coisa.

DIDIER JR, Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Intridução ao Direito Processual Civil, Parte Geral e Processo de Conhecimento. 17 ed. Salvador: Ed. JusPodivm, 2015. P. 47)

A cada dia me convenço que a inclusão foi salutar, mas não se mostrou ainda efetiva.

Observe-se que o art. 8 do CPC, prescreve:

Art. 8. Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência.

Ora, quem em sã consciência vai esperar que a Fazenda Pública ressarça voluntariamente a quantia de R$ 8,10?

Só pra abrir o procedimento de devolução da quantia certamente o aparelho administrativo gastaria mais do que isso. E o aparelho judicial pra julgar a demanda certamente também, mas a regra do jogo é exatamente esta: quem quiser a devolução do valor, que leve a demanda ao Judiciário, porque voluntariamente a Fazenda não paga.

A isso denomino de "rifa judiciária", porque a Fazenda agindo assim, nem todos buscarão o ressarcimento.

Agrade ou não ao magistrado, ao judiciário, ao Papa Francisco, a realidade social é exatamente esta: não é razoável admitir-se que qualquer Fazenda Pública do país devolveria R$ 8,10, sem criar qualquer óbice, que tornasse menos estimulante a devolução do que a abdicação ao valor.

Não se diga que o magistrado tenha tentado enveredar pela análise econômica do direito, pois nem POSNER, COASE e CALABRESI, tampouco, o próprio ordenamento jurídico admitem a interpretação em tiras (GRAU, Eros Roberto. Ensaio e discurso sobre a interpretação/aplicação do direito. 5.ª ed., rev. E ampl. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 131-132).

Nem se diga, porém, que a indignação do magistrado possui um viés de celeridade, porque o processo foi ajuizado em 2013 e somente agora em 2016, 3 anos e 8 meses após, é que recebeu essa peculiar decisão, demais disso, nas profícuas palavras de BARBOSA MOREIRA, sabiamente reportadas pelo Eminente Ministro Luiz Fux, na exposição de motivos do CPC, temos que:

“Para muita gente, na matéria, a rapidez constitui o valor por excelência, quiçá o único. Seria fácil invocar aqui um rol de citações de autores famosos, apostados em estigmatizar a morosidade processual. Não deixam de ter razão, sem que isso implique – nem mesmo, quero crer, no pensamento desses próprios autores – hierarquização rígida que não reconheça como imprescindível, aqui e ali, ceder o passo a outros valores. Se uma justiça lenta demais é decerto uma justiça má, daí não se segue que uma justiça muito rápida seja necessariamente uma justiça boa. O que todos devemos querer é que a prestação jurisdicional venha ser melhor do que é. Se para torná-la melhor é preciso acelerá-la, muito bem: não, contudo, a qualquer preço”.

(BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: alguns mitos. Revista de Processo, v. 102, p. 228-237, abr-jun. 2001, p. 232) (g. N.)

É inolvidável que numa época em que se debate o que é ou deixará de ser precedente, se vamos ou não respeitar o que disse a Lei (art. 926 e 927 do CPC), não parece adequado descartar uma causa, pelo simples valor econômico imediato e individual, merecendo destaque o magistério de KARL LARENZ, para quem:

Mas, embora o juiz seja levado, pelo caso a resolver, a interpretar de novo um determinado termo ou uma determinada proposição jurídica, deve interpretá-los, decerto, não apenas precisamente para este caso concreto, mas de maneira a que a sua interpretação possa ser efectiva para todos os outros casos similares. (Metodologia da ciência do direito. 6 ed. José Lamego (Tradutor). Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012. P. 442.)

Os R$ 8,10 do autor podem representar milhões em repetição de indébito pra Fazenda Estadual ou, mais ainda, por uma questão de estratégia processual, a Defensoria pode ter optado por entrar com a ação individual e quem sabe num Incidente de Assunção de Competência conseguir, com menos resistência, um precedente obrigatório (art. 927, III, CPC), a ser seguido numa eventual ação coletiva - tudo é possível em matéria processual, a dinâmica de petição inicial e de defesa modificou sensivelmente, e é preciso estar atento a essa modificação de parâmetro.

Nessa senda, merece desagravo a conduta do Defensor Climério Machado de Mendonça Neto, o qual, não fez mais do que a sua obrigação moral e constitucional (art. 134, CF) de, encontrar tempo (ou de utilizar "o tempo de sobra") para defender a causa de um necessitado.

Talvez a explicação mais plausível para o episódio advenha de LÊNIO STRECK, para quem:

(...) Recentemente, um exemplo de um magistrado que olvidou possuir “dois corpos”, o dele mesmo (natural e representativo da pessoa humana que é), e o do juiz (corpo místico, superior ao primeiro, e no qual se concentra sua responsabilidade política). Ver aqui. Por mais horrendo que seja o crime praticado pela ré (ela ajudou o namorado a estuprar, por várias vezes, sua filha de oito anos e a abusar sexualmente, de outras formas, da filha de seis), não estava o magistrado autorizado a usar palavrões em sua sentença — nas palavras dele: “Eu não sei se eu já disse algum palavrão na minha função de juiz, mas você é provavelmente a p... Mais desprezível que eu já encontrei na vida.” A questão vai além da quebra do decoro judicial, pois indica julgamento com parcialidade, apartado da responsabilidade política. Em outros termos: o juiz americano decidiu com base em seus sentimentos pessoais, preso as carências e imperfeições do seu “corpo natural”, deixou de lado o “corpo místico” do qual deve se valer todo e qualquer magistrado no exercício da nobre e difícil atividade judicante.

Fonte: Conjur

DESTARTE, ao Eminente Juiz de Direito da 2ª Vara da Fazenda da Capital do Estado do Pará, Dr. João Batista Lopes do Nascimento, encaminho não as minhas, mas as palavras proferidas na sua posse pela Eminente Ministra Carmen Lúcia, quando quebrando o protocolo da cerimônia, cumprimentou inicialmente "Sua Excelência, o Povo" e arrematou:

Cumprimento o jurisdicionado, aquele que procura o Judiciário na luta pelos seus direitos. Com ele me comprometo, como acho que é o compromisso de todos nós do Supremo Tribunal Federal, firme e fielmente, estejam certos todos os cidadãos do país, a trabalhar até o limite de nossas forças e de nossa capacidade para que a jurisdição seja devidamente prestada e prestada para todos.

[...]

Sem justiça, sobra força de uma pessoa sobre a outra, a violência pessoal que não respeita o que de humano distingue o homem de outras espécies.

Fonte: O globo

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