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30 de Abril de 2024

Termos rebuscados atrapalham a compreensão de sentenças judiciais e textos do Direito

Publicado por Anderson Almeida
há 10 anos
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Por Marcio Maturana

Em vez de cadeia, “ergástulo público”. No lugar de viúvo, “consorte supérstite”. E cheque não, mas sim “cártula chéquica”. Palavras do nosso idioma estranhas e desconhecidas, entrecortadas por expressões e citações em latim, uma língua morta, tornam incompreensíveis muitas sentenças judiciais e outros textos do Direito. O costume de inviabilizar a comunicação existe não só entre juízes, mas também entre advogados e outros profissionais da área. A orientação pela informação clara e compreensível, porém, cresce bastante entre os próprios magistrados.

A Associação de Magistrados Brasileiros (AMB) já fez uma intensa campanha a favor da simplificação da linguagem jurídica. A partir de 2005, foram feitos concursos para estudantes e magistrados, palestras com o professor Pasquale Cipro Neto e distribuição de uma cartilha com glossário de expressões jurídicas. A iniciativa foi motivada depois que uma pesquisa do Ibope encomendada pela própria AMB revelou que a população brasileira se incomodava não só com a lentidão dos processos na Justiça, mas também com a linguagem hermética, prolixa e pedante.

Nossa campanha de 2005 deu ótimos frutos. A maioria dos juízes que não priorizava a clareza nas sentenças corrigiu alguns excessos. Até hoje a cartilha que preparamos é buscada, mas não foi mais atualizada. Talvez a AMB volte a implementar as ações da campanha contra o “juridiquês” no ano que vem — disse o desembargador Nelson Calandra, presidente da AMB.

Quatro anos em vão

No Congresso, a iniciativa mais direta contra o “juridiquês” foi o Projeto de Lei da Câmara 7.448/06, apresentado pela então deputada federal Maria do Rosário.

O texto determinava sentenças em ­linguagem simples, clara e direta. Foi aprovado pela Câmara em 2010, através de um substitutivo de José Genoino, mas quando chegou ao Senado, em dezembro de 2010, não pôde tramitar porque a Casa havia acabado de aprovar o projeto de novo Código de Processo Civil.

Mais do que servir como uma ferramenta para afastar e dominar a situação os termos incompreensíveis num raciocínio tortuoso acabam agredindo a própria Constituição Federal, lei máxima do país, na opinião do juiz André Nicolitt, que também atua como professor de Direito na Universidade Cândido Mendes e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

A linguagem rebuscada e inacessível viola os princípios constitucionais do acesso à Justiça e da publicidade. É um exercício de poder, uma violência simbólica para mostrar erudição e ­autoridade. Numa cultura jurídica menos autoritária, teremos uma linguagem mais acessível. O uso de termos incompreensíveis ao cidadão comum não é uma prática apenas de magistrados, pois muitos advogados também fazem isso. Sem bons argumentos, tentam impressionar com jargões e frases de efeito. Mas tudo não passa de uma cortina de fumaça: muito barulho por nada — afirmou o juiz.

Dilema nas faculdades

Apesar de muitos dos atuais jovens profissionais de Direito defenderem uma linguagem mais clara nos tribunais, Nicolitt não percebe nas faculdades onde dá aulas nenhuma inquietação sobre esse problema entre a futura geração de advogados e juízes.

Os alunos chegam muito passivos, na expectativa de aprender, e acabam aceitando o que lhes é apresentado. Na formação dos profissionais de Direito, esse costume é ruim porque cria um mundo distante da realidade. Parece que todo mundo vive ali, dentro daqueles limites e sem referenciais com o mundo exterior. Isso ainda é bem forte no ambiente acadêmico — lamentou o professor.

Os novos livros de Direito são um caminho para mudar esse cenário, segundo Nicolitt. Ele, que é autor de títulos como Manual de Processo Penal e Novo Processo Penal Cautelar, garante que a literatura jurídica atual segue a tendência de se tornar mais objetiva, até por uma exigência do mercado. A ­expectativa é que esses novos textos mais claros “façam a cabeça” dos futuros profissionais.

Mesmo os defensores de textos jurídicos mais claros e diretos, porém, ressaltam que o objetivo não é chegar a algo próximo do coloquialismo, da forma que acontece nos textos jornalísticos. A linguagem técnica faz parte do diálogo até de outras categorias profissionais, como médicos ou engenheiros.

Nas sentenças, às vezes é inevitável usar alguns termos em latim, porque muitos princípios vieram do direito romano e não há tradução fidedigna. Afinal, nas sentenças você não se comunica apenas com o público leigo, mas também com outros tribunais e com advogados — argumentou o juiz Nicolitt.

Ele acrescenta, ainda, que até algumas palavras e expressões em latim já não criam dificuldade de comunicação da Justiça com o público leigo. Habeas corpus, por exemplo, todo mundo sabe o que significa e está presente dessa forma, sem explicação ou tradução, até na Constituição federal.

Sentenças poéticas

No caso das sentenças, existe ainda a questão do estilo pessoal, já que o juiz assina o documento.

Concordo que precisamos aprimorar a comunicação, mas temos que respeitar a redação da sentença como o momento daquele profissional que a assina. Até jornalistas têm estilos diferentes — comparou Calandra, da AMB.

O desembargador lembra que muitos juízes preferem apresentar um estilo mais literário. Não é ­incomum que algumas sentenças sejam redigidas até de forma poética, com versos. Conjugando bom humor e seriedade.

O bom humor contra o “juridiquês” também está presente no artigo que o ex-presidente da AMB, desembargador Rodrigo Collaço, escreveu aos juízes em 2005 na Tribuna do Direito para defender a simplificação da linguagem jurídica. O primeiro parágrafo é assim:

“O vetusto vernáculo manejado no âmbito dos excelsos pretórios, inaugurado a partir da peça ab ovo, contaminando as súplicas do petitório, não repercute na cognoscência dos frequentadores do átrio forense. Ad excepcionem o instrumento do remédio heróico e o jus laboralis, onde o jus postulandi sobeja em beneplácito do paciente (impetrante) e do obreiro. Hodiernamente, no mesmo diapasão, elencam-se os empreendimentos in judicium specialis, curiosamente primando pelo rebuscamento, ao revés do perseguido em sua prima gênese”.

Defensores de linguagem clara nos tribunais frequentemente lembram uma história que teria acontecido num tribunal de Santa Catarina. “Encaminhe o acusado ao ergástulo público”, disse o juiz. Dois dias depois, a ordem ainda não havia sido cumprida porque ninguém sabia o significado de “ergástulo” — palavra arcaica usada como sinônimo de cadeia.

Casos assim não faltam nos tribunais brasileiros. Há dois anos, a ministra do Superior Tribunal de Justiça Nancy Andrighi contou ao jornal Gazeta do Povo, do Paraná, o episódio de um julgamento em que uma senhora de idade avançada podia perder a casa onde morava.

Após longa deliberação dos magistrados, a decisão foi proferida com ex­­pressões técnico-jurídicas e o caso foi dado por encerrado. Nancy percebeu a aflição da senhora e quebrou o protocolo ao perguntar se ela havia compreendido a decisão. A resposta, obviamente, foi não. Desde então, a ministra mantém um projeto pessoal de simplificação das decisões judiciais, “traduzindo” suas principais decisões para a linguagem coloquial, no site www.nancyandrighi.stj.jus.br.

Senado apresenta “tradução” de resumos de projetos no seu site

Nascedouro das leis que vão basear as decisões dos juízes, o Senado já se preocupa com a clareza logo na apresentação dos projetos que estão tramitando. Quando o cidadão faz uma pesquisa sobre qualquer projeto na página www.senado.gov.br/atividade/, encontra na aba “Identificação da matéria” o nome do autor do projeto, depois a ementa apresentada no texto parlamentar e, logo abaixo, o item “Explicação da ementa” — um serviço criado há aproximadamente dois anos para facilitar e agilizar o entendimento de todas as proposições.

A ementa deve ser um resumo do projeto, mas às vezes ela não explica suficientemente. É muito comum que diga apenas, por exemplo, “altera o artigo tal da lei tal” — afirmou a secretária-geral da Mesa, Claudia Lyra.

Ela conta que o serviço se antecipou às exigências da Lei de Acesso à Informação, que obriga órgãos e entidades da administração federal a divulgarem uma série de informações em suas páginas na internet, além de abrirem espaço para solicitação de acesso a informações.

Uma equipe de sete pessoas na Secretaria-Geral da Mesa trabalha na explicação das ementas logo que os documentos são apresentados para exibição no site. Todas têm formação em Direito, o que permite a tarefa de “tradução” dos termos originais dos projetos de lei.


Fonte: http://www12.senado.gov.br/jornal/edicoes/2012/06/26/termos-rebuscados-atrapalhamacompreensao-de-sentencas-judiciaisetextos-do-direito

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