DIREITO PENAL. PROCESSO PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. REDUÇÃO A CONDIÇÃO ANÁLOGA À ESCRAVIDÃO. MATERIALIDADE. AUTORIA. DOLO. COMPROVAÇÃO. REFORMA DA SENTENÇA. CONDENAÇÃO. DOSIMETRIA. CONCURSO FORMAL. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PROVIDO. 1. Recurso interposto pelo Ministério Público Federal contra sentença que absolveu os réus da prática do delito tipificado no art. 149 , c/c art. 71 , ambos do Código Penal . 2. Materialidade. Comprovação. Prova testemunhal e documental. Relatório de fiscalização do Ministério do Trabalho e Emprego. Comprovação de jornadas exaustivas, restrições à liberdade de locomoção e trabalho executado em condições insalubres/degradantes. 3. Autoria. Comprovação. Prova testemunhal e documental. 3.1. Realizada fiscalização que comprovou a utilização pela empresa LAFEE de operações fraudulentas de fornecimento e industrialização por conta de terceiros, efetuadas completamente à margem da legislação nacional de proteção ao trabalho. Controle de cadeia econômica que utilizava oficina de costuras irregular onde se deu a prática delitiva. modelo de produção de moda utilizado pela LAFEE se ajusta precisamente à modalidade de produção da indústria de moda que se convencionou chamar de "sweating system". 3.2. Autoria em relação ao corréu Rolando devidamente comprovada. Relatório da fiscalização que concluiu no sentido da dependência econômica da oficina comandada por Rolando em relação à empresa dos demais corréus. A análise do conjunto probatório revela que Rolando não era apenas um funcionário nem estava submetido às mesmas condições de trabalho dos demais costureiros. Exercia função de controle na oficina, sendo evidente, pelos depoimentos colhidos e pelos documentos juntados aos autos, que era o "patrão" das vítimas. 4. Dolo comprovado. O elemento volitivo restou comprovado nos autos, ao contrário do que entendeu a magistrada sentenciante. O que se constata dos autos é que os corréus se aproveitaram da situação de vulnerabilidade das vítimas para submetê-las a jornadas exaustivas, pagar- lhes salários aviltantes, abaixo do mínimo legal, descontando valores tidos como "empréstimos" para comida e moradia, o que caracterizava dívida ilegal com o empregador, além de restringir-lhes a liberdade de locomoção. 4.1. Os corréus Jung, Hwun, Sang e Byung são empresários, proprietários de empresas de confecções no Brasil, tendo demonstrado que tinham conhecimento mínimo sobre os direitos trabalhistas, eis que eles mesmos afirmaram que exigiam documentos comprobatórios de regularidade fiscal das empresas que eram contratadas. Tampouco serve de justificativa a alegação de ausência de conhecimento acerca da existência de trabalho em condições análogas à de escravo no Brasil, eis que os corréus haviam se estabelecido no país há alguns anos e pelo próprio exercício de atividade empresarial deveriam ter se informado acerca dos requisitos mínimos para contratação, de forma que as leis vigentes fossem respeitadas. 4.2. Em relação ao corréu Rolando, dos elementos carreados aos autos, se depreende que o corréu Rolando tinha conhecimento da ilicitude de sua conduta, eis que, não obstante sua origem paraguaia, não é crível admitir-se que naquele país possa ser legal e permitida a restrição de liberdade de trabalhadores como fato normal do diaadia. Deve-se considerar o fato de que já foi empregado em outras oficinas, do que decorre o conhecimento mínimo de direitos trabalhistas. Além disso, o fato de Rolando residir na oficina juntamente com os demais costureiros tinha o intuito de facilitar o controle sobre os empregados. Diante das provas coligidas no caso concreto, resta claro que os corréus, consciente e deliberadamente, submeteram terceiros a condições degradantes e jornadas de trabalho exaustivas, práticas que se amoldam ao art. 149 do Código Penal . 5. Não cabe falar em erro de proibição, no sentido de que os corréus desconheciam que a sua conduta era ilegal, deve ser afastada, pelos motivos expostos. Na espécie, as circunstâncias deixam evidente que os corréus tinham, sim, consciência da ilicitude, tratando-se de erro vencível, insuficiente inclusive para a diminuição de pena. Entender que os réus não teriam potencial conhecimento da ilicitude, ou seja, que nem sequer poderia conhecer a natureza jurídica delitiva de sua conduta concreta seria partir de pressuposição incompatível com os fatos do caso, e mesmo com a realidade fática em geral (cujo exame é necessário para que se estabeleça o conhecimento potencial da ilicitude, requisito para a aferição da culpabilidade do agente). 6. Dosimetria. 6.1. 1ª fase. Valoração negativa das circunstâncias do crime, no que tange ao fato de se tratar de estrangeiros especialmente vulneráveis econômica e juridicamente (por estarem em situação documental irregular e serem economicamente hipossuficientes); também, por ter sido atestado nos autos que as vítimas relataram que não podiam sair do estabelecimento sem prévio aviso e autorização do oficinista Rolando, o que implica restrição em sua própria liberdade de locomoção. Pena-base fixada em 2 (dois) anos, 4 (quatro) meses e 11 (onze) dias-multa para cada corréu. 6.2. 2ª fase. Na segunda fase, inexistem agravantes ou atenuantes a serem consideradas no caso concreto. 6.3. 3ª fase. Na terceira fase da dosimetria, não há causas de aumento ou diminuição pertinentes in concreto. Apesar de a denúncia imputar aos réus o crime do art. 149 c/c art. 71 do Código Penal , que trata do crime continuado, entendo que, no caso, deve incidir, porém, o fator de aumento disciplinado no art. 70 do Código Penal . Isso porque, mediante uma só conduta, praticou-se o crime previsto no art. 149 do Código Penal por doze vezes, tendo em vista a submissão de doze vítimas às condições de trabalho reveladas nestes autos. Aumento estabelecido no patamar máximo de incidência do art. 70 do Código Penal , ou seja, em ½ (metade). Pena definitiva fixada em 3 (três) anos e 6 (seis) meses de reclusão e 16 (dezesseis) dias-multa, sendo o valor unitário do dia-multa estabelecido no mínimo legal, a saber, em um trigésimo (1/30) do salário mínimo vigente ao tempo dos fatos, atualizados monetariamente, na forma do 2º do art. 49 do Código Penal . Fixação do regime inicial de cumprimento da reprimenda como aberto, nos termos do art. 33 , § 2º , alínea c, do Código Penal . 7. Pena privativa de liberdade substituída por duas penas restritivas de direitos, quais sejam, prestação de serviço à comunidade ou a entidades públicas (art. 43 , IV , do Código Penal ), nos termos legais e segundo condições a serem fixadas pelo Juízo da Execução e de prestação pecuniária (art. 43 , I , do Código Penal ), que fixo em 20 (vinte) salários-mínimos vigentes no mês do pagamento para os corréus Jung, Hwun, Sang e Byung e em 5 (cinco) salários-mínimos vigentes no mês do pagamento para o réu Rolando, ante sua reduzida capacidade econômica em relação aos demais corréus. 8. Recurso provido. Sentença reformada.