PENAL E PROCESSO PENAL. APELAÇÃO. FURTO QUALIFICADO PELO ABUSO DE CONFIANÇA (ART. 155, § 4º, II, DO CPB). RECURSO DEFENSIVO. 1. TEMPESTIVIDADE RECURSAL. INTERPOSIÇÃO DE ACLARATÓRIOS CONTRA A SENTENÇA. INTERRUPÇÃO DO PRAZO RECURSAL. APELO TEMPESTIVO. 2. DEFERIMENTO DE JUSTIÇA GRATUITA. NÃO CONHECIMENTO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA EXECUÇÃO. 3. ARGUIÇÃO DE NULIDADES. 3.1. PRELIMINAR DE INÉPCIA DA DENÚNCIA. DESCABIMENTO. EXORDIAL QUE PREENCHE REQUISITOS DO ART. 41 DO CPP . 3.2. ALEGAÇÃO DE CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO ACOLHIMENTO. REDISCUSSÃO DE MATÉRIA DE MÉRITO. REAPRECIAÇÃO DE PROVA PRÓPRIA DO EFEITO DEVOLUTIVO DA APELAÇÃO. AUSÊNCIA DE NULIDADE DA SENTENÇA 3.3. DEFEITO DE FUNDAMENTAÇÃO DA SENTENÇA. INEXISTÊNCIA. DECISÃO DEVIDAMENTE MOTIVADA. 4. TESE ABSOLUTÓRIA. ALEGAÇÃO DE AUSÊNCIA DE PROVAS. NÃO ACOLHIMENTO. CONTEXTO PROBATÓRIO HARMÔNICO E COESO. AUTORIA E MATERIALIDADE PLENAMENTE COMPROVADAS PELAS DECLARAÇÕES DAS TESTEMUNHAS. NEGATIVA DE AUTORIA ISOLADA NO CONTEXTO PROBATÓRIO. 5. DOSIMETRIA. MANUTENÇÃO DO DESVALOR ATRIBUÍDO À CULPABILIDADE E ÀS CONSEQUÊNCIAS DO CRIME. ELEVADA QUANTIDADE DE BENS SUBTRAÍDOS. NECESSIDADE DE REPOSIÇÃO DOS EQUIPAMENTOS COM URGÊNCIA EM RAZÃO DA ALTA ESTAÇÃO HOTELEIRA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA CONDENATÓRIA MANTIDA. 1. Cuidam os autos de Recurso de Apelação Criminal interposto em face da sentença que condenou o réu como como incurso nas sanções do art. 155, § 4º, II, do CPB (furto qualificado), à pena de 03 (três) anos e 06 (seis) meses de reclusão, em regime aberto, e ao pagamento de 68 (sessenta e oito) dias-multa dias-multa, à razão de 1/30 (um trigésimo) do salário-mínimo vigente à época dos fatos. 2. Antes de adentrar nas razões recursais da defesa, convém enfrentar a preliminar de intempestividade apresentada pela 55ª Procuradoria de Justiça, que argumenta que o advogado do réu foi intimado em 17/05/2023, mas apenas interpôs apelação em 01/09/2023. Apesar de reconhecer que houve a interposição de embargos de declaração, o Ministério Público entende que os aclaratórios não têm o "condão de interromper o prazo para outros recursos quando não indicam qualquer vício próprio e embargalidade". A alegação do Parquet apenas seria válida se os embargos de declaração não tivessem sido conhecidos, como quando são intempestivos ou manifestamente inadmissíveis. No presente caso, apesar de desprovidos, os embargos de declaração interpostos pela defesa contra a sentença foram conhecidos pelo Juízo a quo, motivo pelo qual não é possível a aplicação da referida jurisprudência ao caso em liça. Verifica-se que a defesa foi intimada da sentença em 21/05/2023, com início do prazo em 22/05/2023, enquanto que os aclaratórios foram interpostos no dia seguinte, em 23/05/2023, motivo pelo qual foram tempestivos. Em seguida, a defesa foi intimada da sentença dos aclaratórios em 28/09/2023, com início do prazo em 29/08/2023 e apelação foi interposta em 01/09/2023, dentro do quinquídio legal, tratando-se de apelo tempestivo. 3. Em sede de preliminar, o recorrente intenta a rejeição da denúncia por inépcia, alegando omissão quanto à descrição do fato típico, sendo genérica e descumprindo os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal . Nesse ponto, não assiste razão ao apelante quando pugna pela nulidade da denúncia, com fundamento de violação de justa causa por falta de elementos indiciários, pois a simples leitura da peça inicial acusatória permite a conclusão de que o fato nela denunciado está descrito de forma precisa e clara, garantindo ao réu e à defesa técnica o exercício irrestrito da ampla defesa.O que o recorrente pretende é discutir a valoração dos elementos indiciários, não sendo o recebimento da denúncia o momento adequado para essa análise, por se tratar de uma análise perfunctória, onde é aferida apenas a viabilidade da persecução penal. O recorrente pretende trazer discussões que são compatíveis com a produção de prova judicializada em contraditório e não com a fase de admissibilidade da ação penal. 4. Em seguida, o recorrente argumenta que a sentença se omitiu quanto à análise de fatos essenciais levantados pela defesa, mesmo após a interposição de embargos de declaração. Destaca que o apelante teria evidenciado a fragilidade da acusação, que se baseou unicamente no testemunho do gerente do hotel e dos demais funcionários. Argumenta que a versão do gerente foi desmentida por uma outra funcionária, porém essa circunstância foi ignorada pelo Magistrado sentenciante, de modo que a sentença teria se omitido quanto aos argumentos trazidos pela defesa. Novamente, o recorrente apresenta, como discussão preliminar, matéria atinente ao mérito da apelação, porque pretende discutir a valoração da prova pelo Juízo a quo, própria do efeito devolutivo da apelação, motivo pelo qual se afasta a alegada preliminar. 5. O apelante também argumenta que a sentença não se manifestou sobre a matéria de defesa, de forma que entende que a análise direta por este Tribunal de Justiça configuraria supressão de instância, motivo pelo qual requer a anulação da sentença por ausência de fundamentação, nos termos do art. 93 , inciso IX da CF/88 . Ao contrário do que argumenta a defesa, a sentença vergastada está bastante fundamentada e minuciosamente destrinchada, constando detalhadamente os motivos pelos quais o apelante foi condenado pela prática do crime, assim como os fundamentos utilizados pelo Magistrado para a individualização da pena, em atenção aos critérios previstos no art. 59 do CP e seguintes, dentro dos limites determinados pela legislação penal. Vale ressaltar que o julgado faz transcrições dos relatos das testemunhas e do interrogatório do réu e, em seguida, confronta as narrativas, embasando o édito condenatório da convicção extraída diretamente das provas produzidas nos autos, motivo pelo qual rejeita-se a preliminar vergastada. 6. Quanto à alegação de insuficiência de provas, após análise de toda a coleta probatória produzida sob o crivo do contraditório, não há como acatar a tese da defesa de que não houve produção em juízo de uma única prova em desfavor do réu, bem como a de que não pode o acusado ser condenado com base na palavra exclusiva do gerente do hotel. Primeiramente, porque eventuais divergências entre os depoimentos prestados na fase inquisitorial e judicial são toleráveis, desde que não digam respeito a aspectos essenciais, mas a detalhes periféricos, como é o caso dos autos. O fato de a camareira Maria Delva não ter confirmado que presenciou o momento em que o acusado teria dito ao gerente que levou os equipamentos para a casa do réu não tem o condão de desnaturar o valor dessa informações, porque a testemunha confirmou que o gerente teria lhe comunicado o ocorrido à época dos fatos. Ademais, o acusado não foi condenado unicamente com base nessa informação de que o réu teria confessado levar os equipamentos para a sua casa, mas por outros elementos de prova, a saber, a circunstância de que era o responsável pela manutenção dos quartos, além do fato de ter se ausentado mais cedo do trabalho no dia que foi interpelado sobre os aparelhos de ar condicionado, bem como porque os equipamentos foram retirados por alguém que tinha conhecimento técnico, eis que não houve nenhum dano, além de tempo e acesso ao local. 7. Por outro lado, apesar de alegar que não foi colacionada aos autos a troca e mensagens entre o réu e o gerente, o próprio acusado confessou em juízo que, ao ser informado sobre o furto dos bens, respondeu um singelo "ok", quando seria esperado que ele demonstrasse alguma preocupação ou até mesmo se defendesse, uma vez que os quartos estavam sob sua responsabilidade. O réu nega que a ala furtada estivesse fechada, a despeito de todas as outras testemunhas relatarem que os apartamentos ficavam fechados no período de baixa estação. Ademais, o recorrente afirmou que no dia anterior à constatação do furto teria checado todos os apartamentos e não deu por falta de nenhum item, entretanto foram subtraídos 30 (trinta) ar-condicionados, 26 (vinte e seis) aparelhos de TV e 18 (dezoito) frigobares, pertencentes ao estabelecimento. Como alguém poderia furtar todos esses itens em tão curto espaço de tempo, tendo que fazer a desinstalação dos ar-condicionados tomando o cuidado de não danificá-los sem que ninguém percebesse? Ainda que o gerente e o sócio do estabelecimento confirmem que a segurança do hotel era vulnerável, não é crível que furto desta monta tenha sido executado por pessoas externas. Pelo contrário, trata-se de trabalho interno, que precisou ser executado por um longo período e na surdina, para que os outros funcionários não percebessem a movimentação. Ainda que camareiras, gerente, recepciontistas e supervisores pudessem ter acesso aos quartos das alas desativadas, não seria esperado que se deslocassem por esse setor, ao contrário do réu, que possuía a função de manutenção e por isso lhe era solicitada a vistoria dos apartamentos para conserto e reparo antes da limpeza e disponibilização aos hóspedes. 8. Ao contrário do que afirma a defesa, não se vislumbra incoerência na versão do gerente e dos demais funcionários, enquanto que o réu negou que houvesse quartos que ficassem fechados durante algum período do ano, o que foi contrariado por todas as testemunhas. Além disso, é normal que estabelecimentos hoteleiros desativem parte das instalações na baixa temporada como forma de economia. Por fim, o simples fato de que as testemunhas são empregadas a empresa que teve os bens subtraídos não invalida seus testemunhos porque não possuem nenhum interesse direto na incriminação do acusado. Assim, observa-se que as declarações firmes do gerente do hotel, aliadas aos depoimentos das demais testemunhas, funcionários do local que tinham conhecimento da rotina e em conjunto com as demais provas constantes nos autos, mostram-se suficientes ao decreto condenatório do réu, sendo inaplicável ao caso concreto o princípio in dubio pro reo ¿ porquanto não há dúvidas quanto à autoria delitiva imputada ao apelante. 9. No que diz respeito à dosimetria da pena, registre-se que o abuso de confiança foi utilizado como qualificadora do crime, porque o réu era funcionário da empresa e subtraiu os bens em razão da função desempenhada. Quanto à primeira fase, analisando os autos, bem como a dinâmica do delito, verifica-se que o Magistrado agiu com acerto ao negativar a culpabilidade e as consequências do crime. A elevada quantidade de bens subtraídos demonstram uma maior culpabilidade do acusado, especialmente pelo tempo que levou para poder retirar cada um desses bens do local e trabalho sem levantar suspeitas, o que autoriza um maior juízo de reprovabilidade de sua conduta. Quanto às consequências dos crime, o sócio do hotel foi obrigado a recomprar com urgência os bens subtraídos para repor nos quartos e poder alugá-los na alta estação, calculando um prejuízo em torno de R$ 60 a R$ 70 mil, causando um prejuízo de alta monta, autorizando a manutenção do desvalor atribuído a esta vetorial. O regime inicial de cumprimento de pena deve ser mantido no aberto, na forma definida na sentença, assim como a substituição da pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos (na forma do art. 44 do CPB), consistentes na prestação de serviço à comunidade e prestação pecuniária de 3 (três) salários mínimos, fixadas na sentença. Assim, não há o que alterar na fixação da pena, mantendo-se o direito de recorrer em liberdade. 10. Recurso conhecido e desprovido. Sentença condenatória mantida. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos, ACORDAM os Desembargadores integrantes da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Ceará, por unanimidade, em CONHECER do recurso para NEGAR-LHE provimento, nos termos do voto da Relatora. Fortaleza, 21 de maio de 2024. DESEMBARGADORA ÂNGELA TERESA GONDIM CANEIRO CHAVES Relatora