HABEAS CORPUS. TRÁFICO DE DROGAS. TRANCAMENTO DO PROCESSO. AUSÊNCIA DE EXPOSIÇÃO QUANTO À DESTINAÇÃO DAS DROGAS NA DENÚNCIA. INÉPCIA MANIFESTA. OCORRÊNCIA. HABEAS CORPUS CONCEDIDO. 1. Tendo em vista que a denúncia é uma peça processual por meio da qual o órgão acusador submete ao Poder Judiciário o exercício do jus puniendi, o legislador estabeleceu alguns requisitos essenciais para a formalização da imputação, a fim de que seja assegurado ao acusado o escorreito exercício do contraditório e da ampla defesa. Na verdade, a própria higidez da denúncia opera como uma garantia do acusado. Assim, só é legítima e idônea para consubstanciar a pretensão punitiva estatal a denúncia que, atenta aos requisitos previstos no art. 41 do CPP , descreve o fato criminoso imputado ao denunciado com todas as suas circunstâncias relevantes, de modo a permitir que ele compreenda os termos da acusação e dela se defenda, sob o contraditório judicial. 2. Nas palavras de Eugênio Pacelli e Douglas Fisher, "o essencial em qualquer peça acusatória, seja ela denúncia, seja queixa, é a imputação", que consiste na ?precisa atribuição a alguém do cometimento ou da prática de um fato bem especificado. Esse, ou esses, os fatos, devem ser descritos com rigor de detalhes, para que sobre eles se desenvolva a atividade probatória. A exigência de delimitação precisa do fato imputado encontra-se na linha de aplicação do princípio constitucional da ampla defesa. Para que seja ampla a defesa é necessário, então, que se saiba, com precisão, qual o fato que se diz ser o réu o autor, para que ele possa, na maior medida possível, definir os meios de prova que se ajustarão à espécie, segundo os seus interesses, bem como possa também dar a ele (fato) a definição de direito que favoreça aos interesses defensivos? (Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 5. ed., São Paulo: Atlas, 2013, p. 104). 3. A denúncia deve conter a exposição do fato criminoso e, sem incursão nas várias teorias que procuram conceituar analiticamente o delito, pode-se afirmar que sua estrutura compreende uma conduta típica, antijurídica e culpável. O dolo, desde o nascimento do finalismo, integra a própria conduta e passou a ser entendido como a consciência e a vontade de realizar os elementos do tipo, com o propósito de lesão ou perigo de lesão a bem jurídico. Como elemento subjetivo do tipo penal, compreende o conhecimento de todas circunstâncias do tipo e a vontade de realizá-lo. Não é aferível com base naquilo que se encontra instalado na mente do agente, mas sim nas suas ações e omissões, que repercutem no ambiente externo. 4. Ao exigir, portanto, que a denúncia contenha a ?exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias? ? no qual se insere o dolo e, nele, a vontade dirigida a um fim ?, o art. 41 do CPP impõe a necessidade de que se aponte ? ainda que superficialmente ? os indícios do dolo, que, no caso do tráfico, requer seja a droga destinada a terceiros (onerosa ou gratuitamente). Se na denúncia não constar, além da exposição suficiente do fato e de seu contexto, pelo menos mínima justificativa ? baseada em indícios (por exemplo, quantidade e variedade de drogas, apreensão de dinheiro, anotações, balança de precisão, entre outros) ? apta a ensejar a acusação por tráfico, não há sequer como o réu rebater a tese acusatória, verificar quais provas serão necessárias para tanto, argumentar pela desclassificação etc. Mais do que isso, a imputação de tráfico desprovida de qualquer fundamento concreto ainda burla as regras de competência e priva o acusado indevidamente de benefícios legais como a transação penal e a suspensão condicional do processo, ambos aplicáveis ao crime do art. 28, cuja competência constitucionalmente estabelecida para tramitação é dos Juizados Especiais Criminais. 5. No caso, é manifesta a inépcia da exordial acusatória no que se refere à imputação de tráfico de drogas. Primeiro, chama a atenção que não consta da referida peça nenhuma narrativa que contextualize a acusação para além da descrição estritamente formal e pontual das circunstâncias de tempo e lugar (dia, hora e endereço) do crime. A inicial acusatória nem sequer expõe como se deu a diligência policial que levou à descoberta das drogas, onde elas estavam, como foi e o que motivou a abordagem policial (na verdade, não é possível saber nem mesmo se houve abordagem e flagrante ou se a apuração ocorreu de outra forma), se mais algum objeto foi apreendido (por exemplo, dinheiro), enfim, nada que dê contornos concretos à acusação. Além de não contextualizar os fatos, a denúncia não esclareceu, nem mesmo minimamente, o que justificou a imputação do crime de tráfico em vez do crime de porte de drogas para consumo pessoal; limitou-se a afirmar que o réu ?agindo com consciência e vontade dirigidas para este fim, portanto, dolosamente, trazia consigo 0,12 kg (cento e vinte gramas) de ?maconha?? e que ?O consumo e a comercialização das drogas são proibidos por lei?, assertivas que reforçam a vagueza da imputação, porquanto podem conduzir tanto à caracterização da conduta prevista no art. 28 quanto a do art. 33 da Lei de Drogas . 6. Habeas corpus concedido para trancar o processo em relação à imputação de tráfico de drogas, sem prejuízo do oferecimento de nova denúncia, dessa vez com observância aos requisitos legais.