PROCESSO Nº: XXXXX-70.2012.4.05.8100 - APELAÇÃO CÍVEL APELANTE: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL APELANTE: REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA ADVOGADO: Oberdan Amancio Campos ADVOGADO: Rafael De Oliveira Nóbrega ADVOGADO: Paulo André Lima Aguiar APELADO: Os mesmos ADVOGADO: Os mesmos RELATOR (A): Desembargador (a) Federal Leonardo Carvalho - 2ª Turma JUIZ PROLATOR DA SENTENÇA (1º GRAU): Juiz (a) Federal EMENTA : ADMINISTRATIVO. CONSTITUCIONAL. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. IRREGULARIDADES NA GESTÃO DO CONSELHO REGIONAL DE ADMINISTRAÇÃO DO CEARÁ. PRELIMINAR DE NULIDADE POR CONFLITO DE INTERESSES E DE INÉPCIA DA INICIAL REJEITADAS. DESPESAS DO PROAR E FIA 2009 DEVIDAMENTE COMPROVADAS. CONSTATAÇÃO DE TRANSAÇÕES SEM JUSTIFICATIVA EFETUADAS EM FAVOR DO RECORRENTE. FRUSTAÇÃO E/OU DISPENSA INDEVIDA DE PROCEDIMENTO LICITATÓRIO NÃO CONFIGURADA. LEI 14.230 /2021. EFETIVA PERDA PATRIMONIAL NÃO DEMONSTRADA. LIBERAÇÃO DE VERBA PÚBLICA SEM OBSERVÂNCIA DAS NORMAS CABÍVEIS. GASTOS EFETUADOS SEM ANUÊNCIA DO DIRETOR FINANCEIRO. OCORRÊNCIA. PREJUÍZOS POR PAGAMENTOS EM ATRASO. IMPOSSIBILIDADE DE CONDENAÇÃO NA MODALIDADE CULPOSA. NOVA REDAÇÃO DA LIA . REVOGAÇÃO DO ART. 11, II DA REFERIDA LEI. NEGATIVA INJUSTIFICADA DE ACESSO A DOCUMENTOS DA GESTÃO DO CONSELHO AOS CONSELHEIROS. CONFIGURAÇÃO DOS TIPOS PREVISTOS NOS ART. 9 , XI , 10 , XI , E 11 , IV DA LIA . APELAÇÃO DA DEFESA PROVIDA EM PARTE. APELO DO MPF IMPROVIDO. 1. Trata-se de recursos de apelação interpostos pelo MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL e por REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA em face de sentença proferida pelo Juízo da 8ª Vara Federal da Seção Judiciária do Ceará, que julgou improcedente a pretensão condenatória relação ao réu EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR e condenou o réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA pela prática do ato de improbidade previsto no art. 9, XI, art. 10, VIII e XI, e art. 11 , II e IV da Lei nº 8.429 /92, aplicando-lhe as seguintes sanções: a) restituição ao Conselho Regional de Administração - CRA/CE da quantia de R$ 142.198,20, relativos a valores transferidos indevidamente da conta bancária do conselho para sua conta pessoal, e a quantia de R$ 2.424,64, decorrente de prejuízos causados pelo encargos de contas pagas com atraso no ano de 2010 e tarifas por emissão de cheques sem fundo; b) suspensão dos direitos políticos por 8 anos; c) pagamento de multa civil equivalente ao dobro do dano; d) proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais por 10 anos. 2. Na sentença questionada (id. XXXXX) o magistrado entendeu ter o réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA praticado uma série de irregularidades à frente da gestão do CRA/CE que configuraram os atos de improbidade previstos nos art. 9, 10 e 11 da Lei nº 8.429 /92. Quanto a EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR destacou o Juiz ter restado demonstrado que o réu não exerceu, efetivamente, o cargo de diretor da instituição, não podendo lhe ser imputada a prática dos atos apontados pelo MPF. 3. Em suas razões de apelação (id. XXXXX), o MPF requer que o réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA seja também condenado a ressarcir os valores referentes ao PROAR 2009 (R$ 19.300,00) e FIA 2009 (R$ 402.014,79), alegando que o demandado não se desincumbiu do ônus de comprovar a regular aplicação de tais despesas. 4. Por sua vez, o réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA alegou em suas razões (id. XXXXX/14245666), preliminarmente, a nulidade do processo, ante os interesses antagônicos defendidos por seu causídico, e a inépcia da inicial, por não restarem individualizadas as condutas a ele atribuídas. No mérito, defendeu que as acusações feitas pelos conselheiros efetivos representam apenas uma tentativa de afastá-lo da Presidência do CRA/CE, sendo destituídas de fundamento. Alega que há somente um depósito em sua conta pessoal, referente a valores de diárias, e que a prestação de contas de 2009 foi tempestivamente entregue, assim como também o foram as prestações de contas do PROAR 2009 e FIA - 2009. Aduz que as despesas do CRA/CE foram devidamente licitadas. Ressalta não ter agido com dolo ou má-fé, destacando não ter restado caracterizado o dano ao erário. 5. Rejeita-se a preliminar de nulidade do processo por eventual conflito de interesses defendidos pelo causídico do recorrente durante a fase do inquérito e durante a tramitação desta ação. 6. Sabe-se que o inquérito civil é um procedimento administrativo de natureza inquisitiva, utilizado como ferramenta de formação do convencimento do Ministério Público para o ajuizamento da ação civil pública. Por ser um procedimento administrativo inquisitivo, nele há uma verdadeira mitigação das garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, cuja observância deixa de ser obrigatória, mostrando-se, porém, recomendável, para se evitar prejuízos à defesa. 7. De todo modo, vê-se que não houve qualquer prejuízo ao apelante, que, durante toda a tramitação da presente ação, teve sua defesa patrocinada por um advogado de sua escolha, diverso do que lhe representou durante a fase do inquérito. Dessa forma, tudo o que foi colhido no inquérito, momento em que o réu era defendido pelo advogado do CRA/CE, foi devidamente submetido às garantias do contraditório e da ampla defesa, já sob o patrocínio de outro causídico, sem qualquer ligação com o CRA/CE. 8. Ademais, cumpre destacar que o advogado do CRA/CE atua na defesa de interesses da própria autarquia, tendo atuado como causídico do réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA na qualidade de Presidente do Conselho à época. Dessa forma, não há embaraço no fato de o referido advogado estar, atualmente, defendendo os interesses do Presidente do CRA/CE em exercício. 9. Rejeita-se, também, a preliminar de inépcia da inicial, pois vê-se que na inicial estão descritas, de forma satisfatória, as condutas supostamente praticadas pelo réu. De fato, o MPF aponta que o demandado, na condição de Presidente do CRA/CE à época dos fatos, teria praticado várias irregularidades durante a sua gestão, instalando um verdadeiro caos administrativo, financeiro e contábil na Presidência. 10. O MPF enumera, de forma detalhada, na inicial, todas as irregularidades encontradas pela auditoria do Conselho Federal de Administração - CFA, que vão desde a ausência de licitação, recolhimento de tributos com atraso, não comprovação de despesas, até transferência injustificada de valores para a sua conta pessoal. Quanto ao prejuízo ao erário, ressalta que as irregularidades verificadas nos anos de 2008 e 2009, e de janeiro a abril de 2010, totalizaram o montante de R$ 474.819,50, discriminando as condutas que deram ensejo a tal prejuízo. 11. Desse modo, resta individualizada a conduta ímproba em tese perpetrada pelo réu, bem como o dano supostamente ocorrido. 12. Quanto ao mérito, inicialmente, cabe observar que, embora ajuizada esta ação de improbidade em 22.10.2012, vindo a sentença de procedência parcial a ser proferida em 11.12.2017, portanto, além do interstício de quatro anos, não há como se reconhecer a prescrição intercorrente no caso, ante a irretroatividade da Lei 14.230 /2021, conforme decidido recentemente pelo STF ao julgar o Tema 1199 da repercussão geral ( ARE 843.989 ), ocasião em que se fixou a tese de que: "4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230 /2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei". 13 . No tocante aos recursos apresentados, cumpre ressaltar que o MPF, em sua apelação, não se opôs à absolvição de EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR , nem mesmo às alegações de que diversas irregularidades não estariam devidamente comprovadas nos autos, questionando, apenas, o fato de o réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA não ter sido condenado a ressarcir os valores aplicados no PROAR 2009 e FIA 2009, defendendo que o demandado não se desincumbiu do ônus de comprovar a regular aplicação de tais despesas. 14. Quanto a esse ponto, na inicial o MPF defende que, consoante demonstra o Comunicado de Visita nº 05/09 (id. XXXXX, p. 27/34), com relação aos recursos aplicados no PROAR 2009, inexiste comprovação de despesas no importe de R$ 19.300,00, referentes a ações de visibilidade no rádio e na TV. No que tange ao FIA 2009, aduz o Parquet a ausência de comprovação de despesas no montante R$ 402.014,79, relativas a recursos provenientes da Casa Civil do Governo do Ceará, do CRA/CE e do CFA. 15. Especificamente no que diz respeito ao PROAR 2009, constata-se nos autos, como já bem delineado na sentença recorrida, a existência de comprovação suficiente acerca das despesas apontadas pelo MPF como não justificadas, não merecendo acolhimento, portanto, as imputações feitas em face de então Presidente REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA . 16. De fato, no tocante às despesas com inserção de propaganda, verifica-se, nos extratos da Conta 7571-P, Agência 0600/9, de titularidade do CRA/CE, a transferência, em favor da rádio Tempo FM LTDA, do valor de R$ 2.300,00, realizada em 18/01/2010, conforme id. XXXXX (p. 4). 17. No que tange aos valores repassados à TV Verdes Mares, constata-se que o referido pagamento, no montante de R$ 10.000,00, se deu em razão da veiculação de propaganda em 09/2009, consoante nota fiscal acostada no id. XXXXX (p. 12). 18. Quanto aos valores pagos a título de assessoria de comunicação, constam dos autos os comprovantes de transferência em favor de Rafael Cavalcante Teixeira (id.14610765, p. 36 e 53) que totalizam R$ 1.475,00, e os comprovantes de transferência em favor de Rodrigo Gonçalves de Almeida (id. XXXXX, p. 37, 54 e 55), totalizando R$ 4.893,77. 19. Embora não haja comprovação das demais transferências apontadas pelo MPF, por ocasião da audiência as testemunhas Rodrigo Gonçalves de Almeida e Rafael Cavalcante Teixeira prestaram depoimento e confirmaram que, de fato, atuaram junto à assessoria de comunicação do CRA/CE no ano de 2009, realizando campanhas institucionais do conselho e outros serviços de publicidade e jornalismo. As testemunhas afirmaram terem sido contratados pelo réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA , recebendo mensalmente, via cheques, os pagamentos de seus honorários, restando justificada, assim, a indicação de despesas a título de honorários em seus nomes. 20. Portanto, vislumbra-se nos autos a presença de elementos de comprovação suficientes acerca das despesas do PROAR 2009 consideradas pelo Parquet como não justificadas, inexistindo indícios de que tais recursos não foram aplicados corretamente nos serviços indicados na prestação de contas do CRA/CE. 21. Do mesmo modo, com relação às verbas aplicadas no FIA 2009, observa-se que os documentos comprobatórios das despesas efetuadas se encontram nos ids. XXXXX a XXXXX (p. 1/36), a exemplo das seguintes notas fiscais e recibos de pagamentos, que não foram considerados na auditoria realizada pela empresa Via Consult: HBM Sign - R$ 150,00; Gráfica Batista - R$ 3.000,00; Linha Digital Serviços de Serigrafia LTDA - R$ 950,00; Adesiva Comunicação Visual - R$ 200,00; Compasso Comunicação e Marketing LTDA - R$ 10.800; (id. XXXXX, p. 12, 13, 15, 16, 23) ; Ludwig e Associados LTDA - R$ 13.000,00; Hilsdorf Aprimoramento Humano e Empresarial LTDA - R$ 10.000,00; MC3 Promoções e Produções Artísticas LTDA - R$ 51.500,00 (id. XXXXX, p. 8, 9 e 10). 22. Ademais, cumpre destacar que a mera alegação, por parte do MPF, de que as despesas do FIA e PROAR não foram efetivamente comprovadas, destituída de outros indícios acerca do desvio ou má utilização dos recursos, não é suficiente para ensejar a condenação por improbidade, ainda mais após a inovações trazidas com a entrada em vigor da Lei nº 14.230 /2021, aplicáveis ao caso em concreto. 23. Nessa senda, importa esclarecer que, a partir das inovações trazidas pela Lei nº 14.230 /2021 à disciplina da improbidade, faz-se necessária a comprovação do dolo específico do agente, não sendo mais suficiente a demonstração do mero dolo genérico ou da culpa, conforme os §§ 1º e 2º do art. 1º da LIA e a nova redação do art. 10 da referida lei. 24 . Desse modo, ante o atual regime legal, não se mostra mais suficiente apenas a demonstração do dolo genérico do agente, sendo imprescindível a comprovação da atuação dolosa dirigida ao fim específico insculpido em lei, qual seja, no caso, a vontade deliberada de agir para a liberação de verba pública sem obediência aos ditames da lei, ou para a aplicação irregular dos recursos públicos. 25. Sendo assim, estando satisfatoriamente comprovadas as despesas efetuadas pelo réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA à frente da Presidência do CRA/CE quanto aos programas PROAR e FIA do ano de 2009, e à mingua de outros elementos que demonstrem a aplicação ilícita ou irregular dos recursos despendidos, assim como o alegado dano sofrido pelo erário, não há como impor ao apelante o dever de ressarcir os cofres públicos, especificamente quanto a tais despesas, motivo pelo qual não deve ser provido o apelo do MPF. 26. Por outro lado, com relação à apelação apresentada por REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA , tem-se que a sentença questionada o condenou pelas transferências que teriam sido realizadas da conta bancária do CRA/CE para a sua conta pessoal, sem maiores justificativas, o que configurou o tipo previsto no art. 9º , XI da Lei nº 8.429 /92 (incorporar, por qualquer forma, ao seu patrimônio bens, rendas, verbas ou valores integrantes do acervo patrimonial das entidades mencionadas no art. 1º desta lei). 27. Em suas razões o apelante defende que há demonstração de apenas uma transferência para a sua conta pessoal, no valor de R$1.000,00, que seria decorrente do pagamento de diárias, consoante demonstrado na p. 2384 dos autos físicos. 28. No entanto, a transferência a que se refere o apelante diz respeito a um DOC realizado na conta corrente nº 00033-3898-130003043 mantida no Santander, diversa das contas bancárias em que teriam sido feitas as transferências em seu favor, contas do Bradesco nº 7.674/0 e 7571-P, Agência 0600/9, consoante documentos anexados no id. XXXXX (p. 1/10). 29. Além disso, as despesas referentes a diárias pagas sem a devida formalização, conforme apontado pelo MPF, datam de 05/01/2009, 04/05/2009, 11/05/2009 e 20/05/2009, enquanto o documento acostado na p. 2384 dos autos físicos diz respeito ao pagamento de diárias usufruídas somente em novembro de 2009, inexistindo, portanto, relação entre tais pagamentos. 30. Analisando os referidos documentos anexados no id. XXXXX, é possível se constatar os registros de uma série de transferências efetivadas das contas do CRA/CE para a conta bancária de titularidade do recorrente, sem existência, nos autos, de justificativa para tais transferências de valores. Com efeito, vê-se que as referidas transações totalizam o montante de R$ 135.678,17, não havendo qualquer explicação para a realização dessas transferências em favor do então Presidente. 31. Em audiência, o réu afirmou que as transferências para a sua conta pessoal se davam, basicamente, em razão de gastos com diárias, deslocamentos ou ressarcimentos de despesas pagas, mas não há nos autos qualquer comprovação que possa justificar tais transações. Como afirmado durante o depoimento, a gestão não se preocupava em formalizar as solicitações de despesas com diárias e deslocamentos dos membros do conselho, não podendo tal conduta desidiosa e negligente, em claro desacordo com as regras legais de gestão da administração pública, ser usada como justificativa para as inúmeras transferências efetivadas em seu favor. 32. Cabe ressaltar, ainda, o depoimento do réu EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR , que afirmou categoricamente não existir, na gestão do CRA/CE, o costume de se ressarcirem despesas eventualmente assumidas por algum membro, como gastos com pagamento de contas de restaurantes, por exemplo. 33. Especificamente quanto às transferências realizadas nas datas de 05/01/2009 (R$ 1.760), 04/05/2009 (R$ 1.720), 11/05/2009 (R$ 1.520) e 20/05/2009 (R$ 1.520), tem-se que tais transações indevidas restaram identificadas na auditoria realizada pela Via Consult (COMUNICADO DE VISITA Nº 03/09, id. XXXXX, p. 13), referentes ao pagamento de diárias sem a devida formalização. 34. Na aludida auditoria, a empresa Via Consult, a partir da análise dos documentos relativos à gestão do CRA/CE no exercício de 2009, identificou várias irregularidades, como a formalização incompleta da prestação de contas, ausência de elaboração de plano de trabalho etc., destacando, em seu item 12. "Processamento da despesa", os gastos com diárias sem qualquer indicação formal de tais despesas. 35. A respeito desses valores, observa-se que o recorrente não impugnou especificamente a consultoria realizada pela Via Consult, alegando, apenas, em suas razões de apelação, ter restado identificado somente um único depósito em sua conta pessoal, relativo ao pagamento de diária, conforme demonstram os documentos de id. XXXXX (p. 23/25). No entanto, tal despesa não tem relação com as transferências apontadas pelo MPF, como já ressaltado anteriormente. 36. Ademais, como bem destacado na sentença recorrida, o réu, em sua defesa, não negou efetivamente a ocorrência das transações ora discutidas, apenas informando que se tratava de "diárias devidamente comprovadas". No entanto, não se constata, nos autos, a formalização de tais despesas, inexistindo comprovação de que os pagamentos se referiam a algum benefício ao qual fazia jus o apelante. 37. Note-se que eventual prova de que os valores recebidos o foram em razão do gozo de diárias poderia ter sido facilmente demonstrada pelo réu a partir do cotejo entre os devidos relatórios de viagem e seus extratos bancários indicando o recebimento dos valores, o que não foi realizado pela defesa. 38. Embora o réu afirme em seu depoimento que, com relação aos procedimentos de solicitação de diária, não havia uma formalização, chegando a adquirir passagens aéreas diretamente das empresas, é certo que, como já ressaltado, tal fato não exime o demandado das obrigações inerentes à gestão do conselho, no tocante à observância dos procedimentos previstos em lei para aquisição de bens e serviços, ainda mais em se tratando de alguém com formação na área de administração, e que trabalhou durante bastante tempo no CRA/CE, conforme afirmado em audiência. 39. Ademais, em seu depoimento, o réu EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR afirmou que o próprio CFA exigia que os pagamentos fossem justificados com o respectivo relatório de viagem, inexistindo tais documentos nos autos. O réu ainda afirmou que os pagamentos de diárias não deveriam, de forma alguma, ser feito por meio de transferências, mas apenas por meio de cheques. 40. Assim, resta suficientemente comprovada a percepção indevida dos aludidos valores por parte de REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA à época em que esteve à frente da Presidência do CRA/CE. 41. A sentença recorrida também condenou o apelante pelo fato de os procedimentos de licitação realizados no exercício 2009 (processos licitatórios 01, 04, 05 e 06) estarem incompletos, assim como por algumas aquisições do CRA/CE, inclusive quanto ao PROAR e FIA 2009, terem ocorrido sem a necessária licitação ou sem o devido procedimento de dispensa, o que configuraria o tipo do art. 10 , VIII , da Lei 8.429 /1992. 42. Quanto a tais alegações, observa-se que, com relação ao período de janeiro a abril de 2010, à prestação de contas do PROAR e FIA 2009 e ao exercício 2008, os Comunicados de Visita nº 06/10, nº 05/09 e nº 01/09 (id. XXXXX) informam ter restado prejudicada a análise dos procedimentos de licitação em virtude de o órgão não dispor do controle dos referidos procedimentos em tais épocas e em razão de alguns procedimentos estarem incompletos, como ressaltado na própria sentença. 43. Com relação, porém, ao exercício 2009, o Comunicado de Visita nº 03/09 atesta que, a despeito da ausência de controle dos procedimentos licitatórios, foram analisados os Processos nº 001/2009, 04/2009, 005/2009 e 006/2009, todos na modalidade Convite, sendo constatada a ausência de algumas peças (id. XXXXX, p. 12). O Comunicado de Visita nº 01/09, por sua vez, ainda informa, quanto ao exercício 2008, que "O relatório do CFA referente à prestação de contas de 2008 faz menção quanto à falta de licitação para despesas com assessoria jurídica, passagens aéreas, aquisições de equipamentos de informática e publicidade e propaganda. Todas estavam acima do limite permitido para dispensa, conforme o Artigo 24 , da Lei 8.666 /93." 44. Em que pesem todos os indícios sobre a frustação e/ou dispensa indevida de procedimento licitatório, é certo que, com a nova redação dada ao art. 10 , VIII , da Lei 8.429 /1992 pela Lei 14.230 /2021, a configuração do tipo passou a exigir a comprovação da efetiva perda patrimonial decorrente da conduta. 45. No caso dos autos, o MPF não aponta qual seria a perda patrimonial efetiva para o CRA/CE decorrente do fato de os procedimentos licitatórios encontrarem-se incompletos, de ter ocorrido a dispensa indevida de licitação, em alguns casos, ou mesmo a aquisição de mercadorias e/ou serviços sem a necessária dispensa formalizada. Note-se, inclusive, que, com relação ao PROAR e FIA 2009, já restaram devidamente comprovadas as despesas apontadas pelo MPF, como já destacado anteriormente, inexistindo indícios de danos patrimoniais acarretados ao erário em razão das licitações realizadas nesse período. 46. Embora sejam graves e altamente reprováveis as condutas acima descritas, não há embasamento legal para a condenação do recorrente com fulcro na disciplina da improbidade administrativa, eis que a nova norma insculpida na Lei 14.230 /21 exige a configuração do efetivo prejuízo patrimonial, não havendo que se falar em ultratividade da norma anterior. 47. Quanto à condenação do apelante REGINALDO no tipo previsto no art. 10 , XI , da Lei 8.429 /1992, referente à liberação de verba pública sem a estrita observância das normas pertinentes, constata-se nos autos que, de fato, o recorrente era o responsável por gerir as contas do conselho à época de sua gestão, realizando despesas sem a anuência e participação do então Diretor Administrativo e Financeiro do CRA/CE, em desacordo com o que determinava o art. 37, VII , da Resolução Normativa CFA nº 316/2005, segundo o incumbe ao Presidente do CRA/CE assinar, juntamente com o Diretor Administrativo e Financeiro, cheques, orçamentos, balancetes, balanços e prestações de contas, bem como autorizar as despesas constantes do orçamento. 48. Com efeito, os documentos de id. XXXXX demonstram que os cheques e ordens de pagamento do conselho eram, em grande parte, autorizadas apenas por REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA , corroborando tal fato o depoimento do réu EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR . 49. O referido réu informou em audiência que, ao ser convidado para ser diretor administrativo, alegou não ter disponibilidade de tempo para exercer a função, de modo que comparecia no CRA/CE apenas uma vez na semana, e por pouco tempo. Indagado sobre os procedimentos de pagamentos, afirmou que, na teoria, nenhum pagamento deveria ser feito sem a sua anuência e assinatura, mas que, na prática, isso não ocorria, pois muitas despesas ocorreram sem seu conhecimento, até mesmo porque não estava sempre presente. 50. No mesmo sentido são os depoimentos das testemunhas RODRIGO GONÇALVES DE ALMEIDA e RAFAEL CAVALCANTE TEIXEIRA , que, à época, trabalhavam na assessoria de comunicação do CRA/CE, afirmando que se encontravam com EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR apenas uma vez na semana, geralmente às sextas à tarde, enquanto REGINALDO estava no conselho diariamente. 51. A testemunha SÉRGIO MARIA NOBRE OTHON SIDOU , contador do conselho à época, afirmou em seu depoimento que nem mesmo chegou a conhecer o réu EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR , pois tratava unicamente com REGINALDO a respeito das contas do CRA/CE. Embora a testemunha não tenha afirmado a existência de cheques sem a assinatura de EUDES , reiterou a necessidade de os pagamentos serem assinados por ambos, tanto pelo Presidente quanto pelo Diretor Administrativo e Financeiro. 52. Portanto, o que se colhe dos autos é a existência de ordens de pagamento assinadas exclusivamente pelo recorrente REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA , que tomava para si, na prática, a gestão financeira do conselho, em clara dissonância com o que determinam as resoluções do CRA/CE, restando configurada a liberação de verbas públicas sem a estrita observância das normas aplicáveis. 53. No que concerne aos prejuízos ocasionados pelo pagamento de dívidas em atraso no período de janeiro a abril de 2010, no valor de R$ 2.424,64, o Juiz de origem entendeu ter o réu agido com culpa, nos seguintes termos: "resta comprovada a culpa do réu REGINALDO SILVA nos acréscimos por pagamento em atraso e devolução de cheques sem fundos ocorridos no ano de 2010, apurados pelo relatório da empresa Via Consult." 54. Contudo, sabe-se que que recentemente, ao julgar o Tema 1199 da repercussão geral ( ARE 843.989 ), o STF fixou a tese de que:"3) A nova Lei 14.230 /2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente". 55. Desse modo, diante da nova disciplina da improbidade dada pela Lei nº 14.230 /2021, não há mais como se atribuir ao réu a prática de ato ímprobo na modalidade culposa, quando se trata de atos para os quais não houve condenação transitada em julgada, como no caso dos autos. 56. Quanto à condenação de REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA pelo tipo previsto no art. 11 , II da Lei nº 8.429 /92, o magistrado de origem entendeu não ter o recorrente realizado os procedimentos cabíveis para a cobrança da dívida ativa do CRA/CE, bem como não ter prestados as contas referentes aos anos de 2007, 2008 e 2009. 57. Em que pesem os argumentos expostos na sentença, tem-se que as novas alterações trazidas pela Lei nº 14.230 /2021 tornaram taxativo o rol de condutas estabelecido art. 11 da LIA , revogando seus incisos I, II, IX e X, alterando o conteúdo dos incisos III, IV, V e VI, e incluindo os novos incisos XI e XII. 58. Desse modo, considerando a aplicabilidade dos novos dispositivos legais aos fatos cuja responsabilização ainda não restou decidida definitivamente pelo judiciário, é forçoso reconhecer que a conduta imputada ao recorrente não configura mais ato de improbidade administrativa, sendo incabível, portanto, a manutenção da condenação imposta em sentença. 59. No que diz respeito, por sua vez, à condenação do apelante pelo art. 11 , IV , da Lei 8.429 /1992 (negar publicidade aos atos oficiais, exceto em razão de sua imprescindibilidade para a segurança da sociedade e do Estado ou de outras hipóteses instituídas em lei), a sentença destacou ter o demandado negado acesso a vários documentos do conselho, especialmente a prestação de contas do FIA e PROAR 2009, além daqueles referentes a repasses feitos pela Unimed. 60. Consta dos autos, de fato, cópia do mandado de segurança nº XXXXX-38.2013.4.05.8100 , no qual o conselheiro Ilailson Silveira Araújo requereu que o então Presidente do CRA/CE fornecesse alguns documentos relativos à gestão do conselho, como a prestação de contas do FIA e o orçamento do CRA-CE para o exercício de 2010, tendo em vista a negativa do réu em fornecê-los (id. XXXXX, p. 52/56). 61. Foi anexada aos autos, ainda, cópia da ação cautelar de exibição e depósito judicial de documentos ajuizada pelo CRA/CE (Proc XXXXX-30.2010.05.8100), durante a gestão do demandado, em que se requereu o depósito judicial dos documentos objetos do mandado de segurança ajuizado, sob o argumento de que se estaria evitando o uso indevido dos documentos pela chapa opositora nas eleições do conselho. 62. As declarações do réu REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA em audiência corroboram o fato de o demandado ter negado, a membros do próprio conselho, livre acesso a documentos da gestão do CRA/CE, uma vez que afirmou não ter fornecido cópias dos documentos solicitados por alguns conselheiros em razão de tal grupo atuar apenas com a intenção de acusá-lo de "inverdades", motivo pelo qual preferiu depositá-los em juízo. 63. Sendo assim, restam configuradas apenas as práticas, pelo réu REGINALDO , das condutas previstas no art. 9, XI, art. 10 , XI , e art. 11 , IV da Lei nº 8.429 /92, diante da constatação de diversas transferências realizadas da conta do CRA/CE para a sua conta pessoal sem qualquer justificativa, da liberação de verbas públicas sem a assinatura e anuência do então Diretor Financeiro EUDES COSTA DE HOLANDA JÚNIOR e da negativa de acesso aos documentos referentes à gestão do conselho. 64. Por consequência, devem ser redimensionadas as sanções aplicadas. Para tanto, deve ser excluída a sanção de suspensão dos direitos políticos, por não atender aos vetores da proporcionalidade e da razoabilidade, especialmente quando considerada a circunstância de que os atos ímprobos não guardam relação com qualquer espécie de atividade político-partidária. Pela mesma razão, deve ser excluída a sanção de proibição de contratar com o Poder Público ou receber benefícios ou incentivos fiscais, pois os atos de improbidade acima reconhecidos não guardam relação com qualquer espécie de contratação indevida ou fraudulenta praticada pelo réu. 65. No que tange a multa civil, reputo razoável sua fixação no valor de R$10.000,00. 66. Quanto à pena de ressarcimento ao erário, deve ser excluída a quantia de R$ 2.424,64, referente aos prejuízos decorrentes do pagamento de dívidas em atraso no período de janeiro a abril de 2010, diante da impossibilidade atual de condenação por culpa, perfazendo o montante devido R$ 142.198,20. 67. Apelação de REGINALDO SILVA DE OLIVEIRA parcialmente provida para, reformando em parte a sentença recorrida, manter a condenação apenas quanto às condutas previstas no art. 9, XI, art. 10 , XI , e art. 11 , IV da Lei nº 8.429 /92, ficando estabelecidos como sanções o pagamento de multa civil no valor de R$ 10.000,00 e o ressarcimento ao erário no valor de R$ 142.198,20. Apelação do MPF improvida.