RECURSOS EM SENTIDO ESTRITO. ESTUPRO QUALIFICADO TENTADO (1º FATO), LATROCÍNIO TENTADO (2º FATO) E COAÇÃO NO CURSO DO PROCESO (3º FATO). EM PRELIMINAR. 1. No caso vertente, ambos os RSE foram interpostos com fulcro no art. 581 , inc. II (decisão que concluiu pela incompetência do Juízo), do CPP , muito embora o decisum (re) classificatório recorrido esteja enquadrado no art. 593 , inc. II (decisão com força de definitiva proferida por juiz singular), do CPP , comumente conhecida como decisão interlocutória mista, em razão do que deveria ter ensejado, na esteira da regra de vedação cogente inscrita no § 4º deste último articulado ("Quando cabível a apelação, não poderá ser usado o recurso em sentido estrito, ainda que somente de parte da decisão se recorra."), somente a interposição de recursos de apelação. Sob este norte, no entanto, considerando que os RSE's ministerial e defensivo (réu EOCB) subiram a esta Corte nos autos do processo-crime originário, tendo sido interpostos em prazos quinquídios e recebido ampla procedimentalização contraditória, com fulcro no princípio da fungibilidade dos recursos, ambos vão conhecidos como apelações típicas, próprias e atempadas sediadas no referido art. 593 , inc. II (2ª hip.), do CPP , âmbito em que devolvem a esta... Corte, no efeito devolutivo geral da apelação defensiva, a totalidade das questões vertidas no Juízo singular, todavia excepcionada a emissão de veredictos (absolutórios e/ou de inculpação: CPP , art. 593 , inc. I), pena de supressão de instância, mas incluída, naturalmente, dentre outras, a decisão recorrida, que (re) classificou parte do libelo denuncial aditado para crime doloso contra a vida e, em consequência, declinou a Tribunal do Júri da Comarca de Porto Alegre a competência para conhecer, processar e julgar o feito. 2. Ainda em seara prefacial ao mérito, impende rejeitar a preliminar contrarrecursal de nulidade do processo por cerceamento de defesa, alegada pela defesa técnica do réu LFAP (não-recorrente). No ponto, mostra-se irretocável a decisão que determinou o desentranhamento de documento extrajudicial, de produção unilateral da defesa técnica do réu LFAP, contendo declarações retificativas de testemunha que já fora inquirida em Juízo sob o pálio da ampla defesa e do contraditório no devido processo legal aplicável à espécie. Primeiro, porque já se operou a preclusão dessa questão, pois não houve irresignação recursal defensiva do réu LFAP contra o decidido. Segundo, porque o documento particular em tela (cujo conteúdo resta ignoto nos autos), caracteriza ato... temerário no processo, além de tumultuário do devido processo legal aplicável à espécie, pois a defesa técnica de LFAP acostou-o aos autos depois de colhida toda a prova testemunhal e já realizados os interrogatórios, ao invés de requerer, fundamentadamente, a reabertura da instrução oral do processo, para a reinquirição da testemunha que, ao que se infere, retificou o depoimento judicial anteriormente prestado. Neste norte, mostra-se correta a decisão que determinou o desentranhamento, do caderno processual, do referido documento de produção extrajudicial unilateral, daí resultando a rejeição da preliminar de nulidade por cerceamento de defesa. NO MÉRITO. 1. No caso, ambos os recursos têm por escopo a desconstituição do decisum interlocutório recorrido, que desclassificou um dos fatos do aditamento da denúncia (2º fato: latrocínio na forma tentada) para crime da competência do Tribunal do Júri, e, em consequência, determinou a consectária redistribuição do processo, no bojo do qual devem ser conhecidas, processadas e julgadas, também, as imputações criminais conexas. Neste passo, anote-se que ambos os recursos sob foco traduzem as usuais dificuldades incidentes sobre a complexa bitola cognitiva das decisões interlocutórias mistas com força de definitiva ( CPP , art. 593 ,... inc. II, 2ª hip.), pois o desate das questões nucleares neles controvertidas exige, em juízo de delibação recursal que não pode absolver ou condenar (sob pena de supressão de instância), profunda incursão cognitiva no acervo fático-probatório produzido (incursão esta que também poderia ser feita, no caso, em sede de habeas corpus de ofício, para trancamento da ação penal contra determinados corréus), com o proferimento de decisão (causa de pedir e pedido recursal) sobre a natureza anímica das dolosidades que, em unidade de ação e desígnios sequenciais interpenetrados, permearam as condutas do único agente dos fatos criminosos narrados no aditamento à denúncia, conquanto quatro tenham sido os acusados. Nesta toada, a análise do acervo fático-probatório encartado nos autos materializa a existência de graves contaminações probatórias originadas na fase policial, que contribuíram decisivamente para que as formulações acusatórias da denúncia oferecida tomassem um rumo equivocado quanto à imputação de concurso de agentes no concurso de crimes, não sendo corrigidas quando do seu posterior aditamento, mesmo diante da incontrovertida idoneidade, firmeza e segurança dos depoimentos e aponte incriminatório único feitos pela vítima nas fases inquisitorial e judicial do processo.... Assim, a primeira incongruência contaminatória diz respeito aos procedimentos investigatórios de busca e identificação do (s) autor (es) dos dois primeiros fatos criminosos em análise, do que resultou, de início, o oferecimento de denúncia contra ELYZIÁRIO O.C.B., DEMÉTRIO R.L.B. e GABRIEL J.P., com a imputação, ao primeiro, do crime de estupro qualificado tentado, e, a todos os três, do crime de latrocínio tentado que lhe seguiu os passos. Isso porque o indiciamento desses três réus - acolhido, depois, pelo parquet - decorreu da incriminação de todos eles por três testemunhas que, no curso da investigação policial, declararam-se presenciais dos momentos que antecederam e sucederam, respectivamente, a perpetração dos fatos criminosos e, após sucessivas e substanciais alterações depoimentais, acabaram por apontar ELYZIÁRIO como o autor direto das tentativas de estupro e de latrocínio, tendo DEMÉTRIO e GABRIEL como comparsas sem participação ativa. Nesse estado de coisas, o saneamento dessas acusações somente começou a se operar quando da intervenção da vítima, que, às vésperas do início da instrução criminal do processo, nele ingressou como assistente de acusação e incriminou LUIS FERNANDO AP, taxativamente, como o único autor dos fatos criminosos contra ela praticados,... sendo somente aí que a denúncia foi objeto de aditamento, todavia limitando-se a incluir LUIS FERNANDO no pólo passivo da ação, imputando não apenas a ele, mas também aos outros três acusados a prática sucessiva, em concurso de agentes, dos crimes de estupro e latrocínio, ambos na forma tentada. A segunda contaminação substancial decorre dos atos de coação que o réu ELYZIÁRIO praticou no curso do processo, mediante o uso de arma de fogo, privação de liberdade das vítimas e agressões físicas. Isso porque foi no âmbito dessas condutas penalmente relevantes que se operaram as sucessivas modificações narrativas das testemunhas ditas presenciais, com o surgimento e aponte incriminatório, por elas, de ELYZIÁRIO como o autor direto dos fatos criminosos, daí resultando outra das contaminações ocorridas. Por fim, há um último ato de coação praticado pelo padrasto e pela mãe do réu LUIS FERNANDO contra uma das testemunhas de acusação, ao qual está nitidamente vinculado o retardamento moratório da constatação da autoria solitária dele, LUÍS FERNANDO, nos fatos criminosos perpetrados contra a vítima. Destarte, considerando que a palavra da vítima deu uma reviravolta nos apontes incriminatórios vindos da imputação de concurso de agentes no concurso dos crimes de tentativa de estupro... qualificado e de latrocínio tentado perpetrados por um único e solitário agente, que o acervo fático-probatório produzido contém substantivas contaminações e incongruências que vão muitíssimo além de qualquer dúvida razoável em favor dos réus ELYZIÁRIO, DEMÉTRIO e GABRIEL, e que a dilação instrutória do processo-crime vertente foi totalmente exaurida no Juízo a quo, viabilizando um quadro cognitivo completo sobre a causa, este contexto legitima as seguintes conclusões recursais no processo: de um lado, (1) que as imputações denunciais formuladas contra estes três réus derivam dessas perniciosas contaminações investigatórias ocorridas, e, de outro lado, (2) que os fatos criminosos perpetrados contra a vítima SHG foram praticados por um único e solitário agente - no caso o réu LUÍS FERNANDO AP -, que, para tanto, não contou com o auxílio direto ou indireto de nenhum cúmplice, e que, por fim, (3) a resolução das questões recursais pertinentes à classificação típica penal dos ânimos dolosos que matriciaram as condutas penalmente relevantes imputadas a este único e solitário agente (LFAP) materializa os crimes de estupro qualificado na forma tentada (CPB, art. 213, § 1º, 1ª hip., c/c o art. 14, inc. II) e de latrocínio na forma tentada (CPB, art. 157, §§ 2º, inc. I, e 3º, 2ª... hip., c/c o art. 14, inc. II), em consequência do que a competência para conhecer, processar e julgar o feito recai sobre o Juízo singular da 11ª Vara Criminal da Comarca de Porto Alegre, remanescendo íntegra a imputação de coação no curso do processo (3º fato: art. 344 [várias vezes] do CPB) contra o réu ELYZIÁRIO. 2. Embora muitas vezes usado sem a menor pertinência temática e compromisso com os casos concretos examinados, é sediço, no processo criminal em geral, que a palavra idônea, firme e segura da vítima adquire fundamental importância para a solução dos crimes solitários, praticados à socapa, na clandestinidade, sem a presença de testemunhas, como no caso sob exame. No caso vertente, procedida a descontaminação das investigações policiais e seus derivativos periféricos, todos os elementos produzidos no acervo fático-probatório dos autos evidenciam que a vítima foi surpreendida, no pátio da sua residência, quando lavava o seu automóvel, por um indivíduo solitário por ela identificado, sem sombra de dúvida, como o réu LUÍS FERNANDO AP, quem, de imediato, abriu a bragueta das calças e deu-lhe a ordem de fazer sexo oral nele. Opondo-se ao abuso sexual pretendido, a vítima foi constrangida com uma faca de cozinha, no curso dos fatos tendo LUÍS FERNANDO tentado... dominá-la e carregá-la para dentro da casa, todavia tendo ambos entrado em violenta luta corporal, tendo ele tentado desacordá-la mediante socos, chutes e golpes com um botijão de gás e uma furadeira. No curso da contenda, a ofendida pediu que ele parasse de agredi-la, sugerindo-lhe que ele pegasse dinheiro e bens dela no interior da casa e fosse embora. Ao receber mais uma pancada, a ofendida meio que perdeu os sentidos e parou de resistir ao seu agressor ("caí como morta"), sendo aí que LUÍS FERNANDO, vendo-a inerte, entrou na residência e subtraiu-lhe dinheiro e telefone celular, em seguida pondo-se em fuga, todavia sendo avistado por uma testemunha transeunte (não identificada no curso das investigações), que, diante do pedido de socorro da vítima, ainda interpelou LUÍS FERNANDO, antes que ele desaparecesse, sobre o que ele tinha feito com a ofendida. Nesta moldura fático-probatória, é inquestionável que, na primeira etapa da ação delitiva, o agente LUÍS FERNANDO AP agiu movido por intenso dolo libidinoso de estuprar, âmbito em que as agressões por ele infligidas à vítima visavam, a qualquer custo, à dominação dela e à satisfação da sua sanha sexual, ainda que para tanto tivesse que matá-la. No entanto, em face da decidida resistência encetada pela... vítima e em meio à luta corporal que se sucedeu entre ambos, no curso da qual a vítima implorou que LUIZ FERNANDO lhe subtraísse o dinheiro e bens que estavam dentro da casa, desde que a deixasse em paz, a ação criminosa que começou com o seu desígnio libidinoso perpassou o animus necandi do agente e materializou-se, por fim, em deliberado animus furandi, que se consumou e exauriu, tão logo a vítima deixou de lhe oferecer resistência, com a subtração de bens no interior da casa, seguida de fuga. No bojo desse iter criminis, o acervo fático-probatório produzido permite a sólida conclusão de que as condutas solitárias desenvolvidas por LUÍS FERNANDO caracterizam a concausalidade e concomitância dos dolos libidinoso e necandi/furandi que o animaram no curso da ação. Vale dizer, também: no curso das condutas de LUÍS FERNANDO, o seu intento libidinoso original evolui, em unidade de ação com desígnios plúrimos interpenetrados, para os subsequentes anima necandi et furandi desenvolvidos no crime patrimonial, compondo os crimes autônomos de estupro qualificado tentado seguido de um latrocínio na forma tentada. A não ser assim, a sequencialidade dos fatos perpetrados teria de configurar, em tese, os crimes sucessivos de estupro qualificado tentado, seguido de uma tentativa de... homicídio qualificado e de um furto simples na forma consumada, estes dois últimos requisitando, inclusive, um novo aditamento da denúncia, com a subsequente procedimentalização dessas três imputações na forma do devido processo legal aplicável à espécie. Por derradeiro, ainda no ponto, fica a observação de que a resolução das questões de veredicto do processo ( CPP , art. 593 , inc. I :"sentenças definitivas de condenação ou absolvição proferidas por juiz singular") são da exclusiva alçada do Juízo monocrático a quo, que sobre eles (os veredictos) ainda não se pronunciou, como se vê do inteiro teor do decisum recorrido ora desconstituído, que desclassificou para crime doloso contra a vida uma das três imputações da denúncia aditada e, em consequência, declinou a competência para o feito a Juízo do Tribunal do Júri da Comarca de Porto Alegre. Diante do exposto, em preliminar de ofício, impende conhecer os recursos interlocutórios como apelação, e rejeitar a preliminar contrarrecursal de nulidade do processo-crime, e, no mérito, dar parcial provimento ao apelo ministerial e provimento ao apelo defensivo, para, sob os fundamentos das questões recursais incidentais decididas, desconstituir o decisum desclassificatório-declinatório recorrido, classificar as... imputações do aditamento à denúncia para os lindes do art. 213, § 1º (1ª hip.), c/c o art. 14, inc. II, ambos do CPB (1º fato), do art. 157, §§ 2º, inc. I, e 3º (2ª hip.), c/c o art. 14, inc. II, ambos do CPB (2º fato), e do art. 344 (várias vezes) do CPB (3º fato), fixar a competência monocrática da 11ª Vara Criminal do Foro Central da Comarca de Porto Alegre para conhecer, processar e julgar a ação penal movida pelo Ministério Público contra os réus ELYZIÁRIO O.C.B., DEMÉTRIO R.L.B., GABRIEL J.P. e LUIS FERNANDO A.P., e, por fim, determinar o imediato retorno do processo à origem, para prosseguimento na forma da lei, âmbito em que eventuais recursos especial/extraordinário contra este julgamento deverão ser procedimentalizados em autos apartados, formados com cópia integral autenticada de todo o processado até então. EM PRELIMINAR DE OFÍCIO, RECURSOS INTERLOCUTÓRIOS CONHECIDOS COMO APELAÇÕES, COM REJEIÇÃO DA PRELIMINAR CONTRARRECURSAL DE NULIDADE DO PROCESSO, E, NO MÉRITO, PARCIAL PROVIMENTO AO APELO MINISTERIAL E PROVIMENTO AO APELO DEFENSIVO. M/ AG 3.512 - S 30.08.2017 - P 263 ( Recurso em Sentido Estrito Nº 70073517963, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aymoré Roque Pottes de Mello, Julgado em 30/08/2017).