EMENTA Ação Penal. Competência. Denúncia. Recebimento pela Justiça Federal antes da diplomação do acusado como deputado federal. Posterior deslocamento para o Supremo Tribunal Federal. Validade dos atos praticados na instância antecedente (art. 230-A, RISTF). Crimes ambientais. Causar dano direto ou indireto a Unidade de Conservação e às áreas de que trata o art. 27 do Decreto nº 99.274 , de 6 de junho de 1990 (art. 40, caput, da Lei nº 9.606 /98). Obstar ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público no trato de questões ambientais (art. 69 da Lei nº 9.605 /98). Crimes contra a administração pública. Loteamento irregular (art. 50 , I , II e III , e seu parágrafo único , inciso I , da Lei nº 6.766 /79). Peculato (art. 1º , II, do Decreto-lei nº 201 /67). Associação criminosa (art. 288 do Código Penal ). Reserva Biológica do Tinguá (ReBio Tinguá). Unidade de Conservação de Proteção Integral (art. 2º , I , e art. 7º , I , da Lei nº 9.985 /2000) instituída pela União pelo Decreto nº 97.780/89, cujo art. 4º subordinou-a ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), autarquia federal. Zona de amortecimento. Instituição somente após os fatos descritos na denúncia (Portaria IBAMA nº 68/06). Irrelevância. Degradação ambiental verificada na área circundante da Unidade de Conservação (art. 2º da Resolução CONAMA nº 13/90). Danos diretos à área circundante e indiretos à Unidade de Conservação. Necessidade de prévio licenciamento das atividades pelo órgão gestor da Unidade de Conservação. Hipótese que transcende a questão da mera fiscalização ambiental do IBAMA. Interesse direto da União verificado. Competência da Justiça Federal à época. Nulidade inexistente. Denúncia. Inépcia. Não ocorrência. Descrição suficiente dos fatos imputados ao réu e suas circunstâncias. Possibilidade do pleno exercício do direito de defesa. Preliminares rejeitadas. Danos ambientais causados para viabilizar a implantação de loteamento irregular na área degradada. Crime ambiental e contra a administração pública caracterizados. Autoria e materialidade demonstradas. Inexistência de autorização do órgão ambiental competente para as obras. Aprovação do projeto de loteamento pela municipalidade. Caducidade. Ausência de registro do projeto no registro imobiliário. Depoimentos prestados na fase policial. Valor probante. Inteligência do art. 155 do Código de Processo Penal . Peculato. Não caracterização. Inexistência de prova de que o caminhão mencionado na denúncia, flagrado descarregando manilhas para implantação no loteamento irregular, pertencesse à municipalidade ou de fato a ela estivesse prestando serviços. Ausência de prova de que o réu tenha determinado o emprego desse veículo para fins particulares. Artigo 69 da Lei nº 9.605 /98. Não caracterização. Inexistência de prova segura de que o réu dolosamente tenha concorrido para ocultar máquinas ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público. Associação criminosa. Não configuração. Inexistência de prova de que o réu tenha se associado aos demais denunciados, de forma estável e permanente, para perpetrar uma série indeterminada de crimes. Hipótese de mero concurso de agentes para a prática de crimes determinados. Ação penal julgada parcialmente procedente. 1. Nos termos do art. 230-A do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, havendo deslocamento de competência para o STF, a ação penal deve prosseguir no estado em que se encontra, preservada a validade dos atos já praticados na instância anterior, em homenagem ao princípio tempus regit actum. Precedentes. 2. A Reserva Biológica do Tinguá (ReBio Tinguá) é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral (art. 2º , I , e art. 7º , I , da Lei nº 9.985 /2000) instituída pela União pelo Decreto nº 97.780/89, cujo art. 4º subordinou-a ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (IBAMA), uma autarquia federal. 3. Posteriormente, com o advento da Lei nº 11.516 /07, a ReBio Tinguá passou a se subordinar ao Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público vinculada ao Ministério do Meio Ambiente (art. 1º). 4. A Reserva Biológica, enquanto Unidade de Conservação, deve possuir uma zona de amortecimento (art. 25 da Lei nº 9.985 /2000), entendida como o entorno de uma unidade de conservação, onde as atividades humanas estão sujeitas a normas e restrições específicas, com o propósito de minimizar os impactos negativos sobre a unidade (art. 8º , XVIII, da Lei nº 9.985 /2000). 5. Os limites da zona de amortecimento poderão ser definidos no ato de criação da unidade de conservação ou posteriormente (art. 25 , § 2º , da Lei nº 9.985 /2000). 6. Na espécie, os laudos periciais disponíveis à época do oferecimento da denúncia demonstravam que os danos ambientais teriam ocorrido na zona de amortecimento da ReBio Tinguá. 7. Não se olvida que, em juízo, constatou-se que a zona de amortecimento da ReBio Tinguá somente foi instituída pela Portaria IBAMA nº 68, de 20 de setembro de 2006, vale dizer, após os fatos descritos na denúncia. 8. Ainda que não existisse a zona de amortecimento, o certo é que, nos termos do art. 27 do Decreto nº 99.274 /90, ao qual se refere o tipo penal do art. 40 da Lei nº 9.605 /98, nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota ficará subordinada às normas editadas pelo Conama. 9. Ademais, nos termos do art. 2º da Resolução CONAMA Nº 13/90, então vigente, que dispunha sobre normas referentes ao entorno das Unidades de Conservação, visando à proteção dos ecossistemas ali existentes, nas áreas circundantes das Unidades de Conservação, num raio de dez quilômetros, qualquer atividade que possa afetar a biota deverá ser obrigatoriamente licenciada pelo órgão ambiental competente. 10. Logo, as intervenções no meio ambiente, nos imóveis descritos na denúncia, que se encontravam na área circundante da ReBio Tinguá, dependiam de licenciamento do órgão gestor daquela Unidade de Conservação. 11. Trata-se de situação suficiente para atrair a competência da Justiça Federal, uma vez que o art. 40 da Lei nº 9.605 /98 tipifica como crime a conduta de causar dano direto à área circundante e indireto à Unidade de Conservação federal. 12. Não se olvida que o Supremo Tribunal Federal já decidiu, relativamente a crime diverso (art. 46 da Lei nº 9.605 /98), que a atividade de fiscalização ambiental exercida pelo IBAMA configura interesse genérico, mediato ou indireto da União, para os fins do art. 109 , IV , da Constituição Federal ( HC nº 81.916/PA , Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ de 11/10/02; RE nº 300.244/SC , Primeira Turma, Relator o Ministro Moreira Alves, DJ de 19/12/01). 13. O caso concreto, todavia, transcende a questão da mera fiscalização ambiental do IBAMA e, posteriormente, do Instituto Chico Mendes sobre as áreas degradadas. 14. Os danos ambientais foram de considerável monta e ocorreram muito próximos à Reserva Biológica, inclusive na sua divisa, de modo a afetar a sua higidez, fato que, por si só, firma o interesse direto da União, a justificar a competência da Justiça Federal. 15. A competência da Justiça Federal, portanto, não se firmou pelo fato de, segundo as informações técnicas então disponíveis, as atividades desenvolvidas em zona de amortecimento da ReBio Tinguá estarem sujeitas ao controle direto da autarquia federal, mas sim pelo fato de a degradação ambiental ter causado danos diretos à área circundante e indiretos à Unidade de Conservação federal. 16. A denúncia não é inepta, uma vez que descreve suficientemente os fatos criminosos e suas circunstâncias, de modo a ensejar o pleno exercício do direito de defesa. 17. Nos termos do art. 155 do Código de Processo Penal , [o] juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas. 18. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no sentido de que os elementos do inquérito podem influir no formação do livre convencimento do juiz para a decisão da causa quando complementam outros indícios e provas que passam pelo crivo do contraditório em juízo (RE nº 425.734-AgR/MG, Segunda Turma, Relatora a Ministra Ellen Gracie, DJ de 28/10/05; HC nº 103.092/RJ , Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 4/5/12; HC nº 114.592/MT , Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJe de 26/3/13; HC nº 119.315/MG , Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 13/11/14; HC nº 125.035/MG , Primeira Turma, de minha relatoria, DJe de 8/4/15). 19. Dessa feita, os depoimentos prestados por réus e testemunhas na fase policial, na parte em que harmônicos com a prova documental e com a prova oral colhida em juízo, podem servir para a formação do convencimento judicial quanto à responsabilidade penal do agente. 20. Os crimes ambientais foram praticados para viabilizar a implantação de um loteamento irregular na área degradada. 21. Nos termos dos arts. 12 e 18 da Lei nº 6.766 /79, todo projeto de loteamento deve ser aprovado pela prefeitura municipal para, após essa aprovação, ser submetido ao registro imobiliário dentro de 180 (cento e oitenta) dias, sob pena de caducidade da aprovação. 22. A teor do art. 37 do referido diploma legal, "é vedado vender ou prometer vender parcela de loteamento ou desmembramento não registrado". 23. Por sua vez, dispõe o art. 50 da Lei nº 6.766 /79: Art. 50 . Constitui crime contra a Administração Pública. I - dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, sem autorização do órgão público competente, ou em desacordo com as disposições desta Lei ou das normas pertinentes do Distrito Federal, Estados e Municípios; II - dar início, de qualquer modo, ou efetuar loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos sem observância das determinações constantes do ato administrativo de licença; III - fazer ou veicular em proposta, contrato, prospecto ou comunicação ao público ou a interessados, afirmação falsa sobre a legalidade de loteamento ou desmembramento do solo para fins urbanos, ou ocultar fraudulentamente fato a ele relativo. Pena: Reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa de 5 (cinco) a 50 (cinqüenta) vezes o maior salário mínimo vigente no País. Parágrafo único - O crime definido neste artigo é qualificado, se cometido: I - por meio de venda, promessa de venda, reserva de lote ou quaisquer outros instrumentos que manifestem a intenção de vender lote em loteamento ou desmembramento não registrado no Registro de Imóveis competente. II - com inexistência de título legítimo de propriedade do imóvel loteado ou desmembrado, ressalvado o disposto no art. 18, §§ 4º e 5º, desta Lei, ou com omissão fraudulenta de fato a ele relativo, se o fato não constituir crime mais grave. Pena: Reclusão, de 1 (um) a 5 (cinco) anos, e multa de 10 (dez) a 100 (cem) vezes o maior salário mínimo vigente no País. 24. A prova carreada aos autos demonstra a materialidade e a autoria dos danos diretos à área circundante da Reserva Biológica do Tinguá, dos danos indiretos causados a essa unidade de conservação e da implantação do loteamento irregular, com oferta de lotes à venda e sua efetiva comercialização. 25. Diversamente do que sustenta a defesa, não havia autorização dos órgãos ambientais competentes para intervenções de tamanha magnitude nas áreas em questão. 26. Mediante graves danos infligidos ao meio ambiente, que afetaram indiretamente a ReBio Tinguá, deu-se início a um loteamento, com o anúncio e a venda de lotes, bem como a construção de imóveis no local, sem que houvesse aprovação do projeto pelo órgão ambiental competente, na forma em que veio a ser executado, e sem que houvesse o registro do projeto de loteamento no registro de imóveis, cuja aprovação pela municipalidade caducara. 27. No tocante ao crime de peculato (art. 1º , II, do Decreto-lei nº 201 /67), não há prova de que o caminhão mencionado na denúncia, flagrado descarregando manilhas para implantação no loteamento irregular, pertencesse à municipalidade ou a ela estivesse prestando serviços. 28. Ainda que superadas as questões referentes à prova da titularidade do caminhão e do desvio de finalidade, não há prova de que foi o acusado quem determinou o emprego desse veículo nas obras do loteamento. De rigor, portanto, a absolvição do réu quanto a essa imputação. 29. Também não há prova segura de que o acusado dolosamente tenha concorrido para ocultar máquinas ou dificultar a ação fiscalizadora do Poder Público, razão por que deve ser absolvido da imputação descrita no art. 69 da Lei nº 9.605 /98. 30. O crime previsto no art. 288 do Código Penal , com a redação vigente à data dos fatos, exigia dois elementos indispensáveis a sua configuração, quais sejam, a reunião de mais de três agentes e a associação estável ou permanente para a prática de crimes. 31. Na espécie, não há prova de que o réu tenha se associado aos demais denunciados, de forma estável e permanente, para perpetrar uma série indeterminada de crimes, mas sim do mero concurso de agentes para a prática de crimes determinados, pelo que de rigor a absolvição do réu. 32. Ação penal julgada parcialmente procedente, para absolver o réu das imputações descritas no art. 288 do Código Penal e no art. 1º , II, do Decreto-lei nº 201 /67, c/c o art. 29 do Código Penal , com fundamento no art. 386 , II , do Código de Processo Penal ; para absolvê-lo da imputação descrita no art. 69 da Lei nº 9.605 /98, com fundamento no art. 386 , V , do Código de Processo Penal , e para condená-lo, como incurso nas sanções do art. 40 , caput, c/c o art. 15 , II, a e o, e o art. 53 , I , todos da Lei nº 9.605 /98 , bem como nas sanções do art. 50 , I , II e III , e seu parágrafo único , inciso I , da Lei nº 6.766 /79, c/c os arts. 62 , I , e 69 do Código Penal , à pena de 7 (sete) anos, 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias de reclusão, em regime semiaberto, e ao pagamento de 67 (sessenta e sete) dias-multa, no valor, cada qual, de um salário mínimo vigente à data do fato, corrigido desde essa mesma data. ( AP 618, Relator (a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 13/12/2016, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-116 DIVULG XXXXX-06-2017 PUBLIC XXXXX-06-2017)