PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO INTERNO NO PEDIDO DE SUSPENSÃO DE SEGURANÇA. LIMINAR QUE POSSIBILITA A PARTICIPAÇÃO DE EMPRESA PUNIDA COM PENA DE SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DE LICITAR. GRAVE LESÃO À ORDEM ADMINISTRATIVA. HISTÓRICO DA DEMANDA 1. Trata-se de Agravo Interno interposto pelo Estado do Ceará contra a decisão que indeferiu o Pedido de Suspensão de Liminar em Mandado de Segurança, sob os seguintes argumentos: a) não foi comprovado que a decisão questionada viola acentuadamente a ordem, a saúde, a segurança e a economia públicas; b) não há urgência na concessão da medida, pois o pleito de suspensão não foi imediato, tendo sido formulado após o deferimento da liminar. 2. Na origem, a ora agravada (Engevix Engenharia de Projetos S/A) impetrou Mandado de Segurança questionando a validade de cláusulas editalícias (item 3.3) de duas Concorrências Públicas da Companhia de Gestão de Recursos Hídricos (COGERH) que vedam a participação de empresas apenadas com suspensão temporária de licitar. As licitações cujos editais são impugnados referem-se à contratação de serviços de consultoria para a elaboração dos estudos de viabilidade, estudos ambientais (EIA-RIMA), levantamento cadastral, plano de reassentamento e projeto executivo das barragens Poço Comprido e Pedregulho, ambas no Município de Santa Quitéria/CE. Consta que o objeto das citadas concorrências será custeado com valor estimado em R$ 4.041.068,76 (quatro milhões, quarenta e um mil, sessenta e oito reais e setenta e seis centavos). 3. A ora agravada defende que a penalidade de suspensão temporária de licitar e contratar não pode abranger toda a Administração, devendo ser restrita ao órgão aplicador da sanção, o qual, no caso, é a estatal Eletrosul. 4. A própria Engevix Engenharia de Projetos S/A - citada em vários procedimentos da operação lava-jato, tendo feito colaboração premiada - não informa os atos por ela praticados que ensejaram a aplicação, pela Eletrosul, da pena de suspensão temporária de licitar, de sorte que a Corte Especial, no presente feito, estará deliberando no escuro. 5. O Desembargador relator no Tribunal de Justiça do Estado do Ceará concedeu, em parte, a liminar, determinando que as autoridades coatoras se abstenham de desclassificar as propostas da ora agravada com base nos requisitos do item 3.3 dos editais citados. 6. O eminente Relator negou provimento ao Agravo Interno por entender que não se demonstrou ofensa grave à ordem pública. NATUREZA JURÍDICO-POLÍTICA DO PEDIDO DE SUSPENSÃO. NECESSIDADE DE REALIZAÇÃO DE JUÍZO DE DELIBAÇÃO MÍNIMO SOBRE A CONTROVÉRSIA PRINCIPAL 7. A suspensão da eficácia de liminar ou segurança, embora longe de constituir modalidade recursal (típica ou atípica), na prática acaba imprópria e, aqui e acolá, ilegitimamente, por fazer as vezes de recurso. A ratio essendi do instituto não afronta, em si ou em tese, os fundamentos do Estado de Direito, que tem na prevalência do interesse público um dos seus pilares. Se assim é, lógico e necessário que o legislador estabeleça mecanismos, inclusive processuais e pragmáticos, de garantia do bem comum, fragmentado em nichos de valor ético-jurídico do tipo "ordem", "saúde", "segurança", "economia" públicas. À luz da jurisprudência do STJ e do STF, portanto, afasta-se da suspensão a pecha de via que, de plano, haverá de se ter como intrínseca e inevitavelmente contrária aos alicerces mais profundos do ordenamento. Porém, a constitucionalidade, legalidade e compatibilidade do instrumento com o Estado de Direito dependem dos contornos e limites impostos ao instrumento pelo legislador e - principalmente - do cumprimento integral e rigoroso, pelo prolator da decisão, dos requisitos e cautelas procedimentais que da suspensão se exijam. 8. Não obstante essa legitimidade original, em nada incondicional, a suspensão transformou-se em espécie de bête noire da processualística e experiência judicial brasileiras, em razão de uso heterodoxo e abusivo no cotidiano dos Tribunais. Nela se enxergam pelo menos dois pontos de modificação anômala do princípio do due process (ordem natural do processo) e do princípio do juiz natural. Primeiro, a constatação objetiva de que o instituto atropela, por meio de decisão monocrática do Presidente do Tribunal, o rito próprio e a cognição comum dos recursos. E segundo, o sentimento de que a suspensão abate a distribuição livre e aleatória a Desembargador ou Ministro integrante de órgão colegiado, porquanto dirigida diretamente ao Presidente da Corte, é instrumentalizada mediante a ciência prévia da pessoa do julgador, permitindo, a partir da combinação da medida com o manejo de recursos, verdadeiro forum shopping interno. 9. Por isso, a suspensão de liminar ou segurança deve ser vista e utilizada como via absolutamente excepcional, de rígida vinculação aos núcleos legais duros autorizativos previstos na legislação ("ordem", "saúde", "segurança", "economia" públicas), que devem ser interpretados de maneira estrita, sendo vedada dilatação ou afrouxamento das hipóteses de cabimento ou de legitimação, p. ex., para ampliar o rol dos legitimados ativos legalmente estabelecidos (o "Ministério Público" e a "pessoa jurídica de direito público interessada") ou, no mérito, para se distanciar dos valores ético-jurídicos legitimadores da medida. Esses reclamam dupla fundamentação, ou seja, primeiro, "manifesto interesse público" ou "flagrante ilegalidade" e, segundo, cumulativamente, a finalidade específica de evitar (prevenção) "lesão à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas", lesão em si (e não o risco em si) que deve ser "grave" (arts. 4º da Lei 8.437 /1992 e 15 da Lei 12.016 /2009). De modo que a decisão do Presidente do Tribunal que aprecia a Suspensão clama por fundamentação de máxima intensidade, com imediato trâmite e julgamento de eventual recurso interposto contra ela. 10. Estabelecidas essas premissas, entende-se que, apesar da inexata e infeliz terminologia jurisprudencial e doutrinária predominante, na Suspensão não se tem puramente juízo político. Jurisdição se exerce com fulcro em parâmetros e conteúdo valorativo preestabelecidos na legislação, o que, na lógica e no discurso jurídicos do Estado de Direito, implica juízo de legalidade e juízo de constitucionalidade e, com amparo neles, decisão jurisdicional. No coração do Estado de Direito, como a própria expressão indica, encontra-se o império das normas (regras e princípios) de Direito, regido só por elas - não mais nem menos que por elas. Por isso, mesmo no âmbito da Suspensão, devem ser rejeitados juízos estritamente políticos (de conveniência e oportunidade). A nenhum juiz, mesmo os integrantes das Cortes de grau mais elevado, deve ser dado afastar-se dos parâmetros da Constituição Federal e das leis. 11 . Mesmo compreendida como juízo de legalidade ou juízo de constitucionalidade, ainda assim a Suspensão de Liminar ou Segurança há de se utilizar com elevada prudência. Do contrário, inverte-se a ordem natural e democrática do sistema jurídico e do processo, em que aos juízes incumbe emitir juízos técnico-legais; e, aos outros Poderes, juízos políticos. Por isso, a Suspensão de Segurança é medida absolutamente excepcional, voltada a sobrestar execução ou cumprimento de liminar prejudicial à ordem, à saúde, à segurança e à economia públicas, não servindo como sucedâneo recursal. 12. A decisão que examina o pedido de suspensão não pode afastar-se totalmente do mérito da causa originária, não só porque é necessária a verificação da plausibilidade do direito, como também para que não se torne via processual de manutenção de situações ilegítimas. Por isso, o deferimento ou indeferimento da citada medida pressupõe juízo de delibação mínimo acerca da controvérsia principal - no caso, a abrangência dos efeitos da sanção de suspensão temporária do direito de licitar prevista no art. 87 , III , da Lei 8.666 /1993. A PENALIDADE DE SUSPENSÃO TEMPORÁRIA DO DIREITO DE LICITAR PREVISTA NO ART. 87 , III , DA LEI 8.666 /1993 ABRANGE TODA A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, NÃO ESTANDO RESTRITA AO ENTE QUE A IMPÔS 13. É entendimento assente no Superior Tribunal de Justiça que a extensão dos efeitos da pena de suspensão temporária de licitar abrange toda a Administração Pública, e não somente o ente que aplica a penalidade. Nessa linha: AgInt no REsp XXXXX/PR , Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, DJe de 31/3/2017; MS XXXXX/DF , Rel. Ministra Eliana Calmon, Primeira Seção, DJe de 23/8/2013; REsp XXXXX/SP , Rel. Ministro Castro Meira, Segunda Turma, DJ de 22/11/2004, p. 294, e REsp XXXXX/RJ , Rel. Ministro Francisco Peçanha Martins, Segunda Turma, DJ de 14/4/2003, p. 208. LICITAÇÃO VICIADA - LESÃO À ORDEM E À ECONOMIA PÚBLICAS 14. É evidente que a participação de empresas punidas pela Administração com a pena de suspensão temporária de licitar, em concorrências públicas, abrange a ordem e a economia públicas. 15. A liminar cuja Suspensão foi postulada impõe que a Administração Pública autorize a participação de empresa em procedimento licitatório contra disposição normativa expressa, cuja observância é obrigatória para a Administração em virtude do princípio da legalidade. Ademais, impede a realização de processo licitatório sem vícios que possam comprometer todo o contrato administrativo e a economia pública. 16. O fato de não existir perfeita contemporaneidade do pedido de Suspensão de Liminar com o deferimento da tutela provisória não obsta sua concessão, porque o pleito foi apresentado antes da finalização das Concorrências Públicas, de modo que se encontra presente o interesse em evitar a contratação com a empresa punida, ora agravada. 17. O Superior Tribunal de Justiça reconhece a existência de grave lesão à ordem administrativa e à economia pública quando presentes vícios na licitação, bem como a impossibilidade de o Poder Judiciário autorizar a realização do processo licitatório em tal situação. Nesse sentido: AgInt na SS XXXXX/BA , Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, DJe de 7/8/2018; AgInt na SS XXXXX/MG , Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, DJe de 7/8/2018; AgInt na SLS XXXXX/MG, Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, DJe de 7/8/2018 e AgInt na SS XXXXX/AP , Rel. Ministra Laurita Vaz, Corte Especial, DJe de 17/4/2018. ADEQUAÇÃO DA VIA ELEITA - AUSÊNCIA DE NATUREZA RECURSAL 18. No caso dos autos, o deferimento do pedido de suspensão de liminar visa apenas retirar a executoriedade de decisão manifestamente ilegal, que, como destacado, permite inaceitável participação de empresa apenada com suspensão temporária do direito de licitar em concorrências públicas. A própria Engevix Engenharia e Projetos S/A reconhece que lhe foi cominada a citada sanção; contudo, a fim de não cumpri-la, tornando-a inócua, pretende limitar seus efeitos com base em interpretação do art. 87 , III , da Lei 8.666 /1993 contrária à jurisprudência pacífica do STJ. 19. No presente feito, não se quer reapreciar o mérito da controvérsia, ou rejulgar a causa, atribuindo a esse incidente natureza recursal, mas sustar a eficácia de decisão judicial que permite a manutenção de situação manifestamente ilegal, passível de causar prejuízos a toda a sociedade, que é exatamente o alvo do instituto da Suspensão de Segurança. 20. Assim, trata-se apenas de cautelarmente sobrestar o cumprimento de decisão que obriga a Administração a descumprir norma legal, maculando, todo o certame, o tratamento isonômico entre os participantes, e prejudicando a escolha da melhor proposta. O escopo do presente feito é suspender a potencial lesão a esses outros interesses que devem ser protegidos. CONCLUSÃO 21. Rendendo homenagens ao judicioso voto do eminente Relator, dele divirjo e dou provimento ao Agravo Interno, deferindo o pedido de suspensão da liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança em questão, com efeitos retroativos à concessão da liminar deferida pelo Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, até o trânsito em julgado do writ.