APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS DECORRENTES DE PERSEGUIÇÃO POLÍTICA DURANTE O REGIME AUTORITÁRIO. PRESCRIÇÃO QUINQUENAL DECLARADA NA SENTENÇA, QUE EN PASSANT E FORA DE HORA APRECIOU MATÉRIA DE MÉRITO. IMPRESCRITIBILIDADE DOS ATENTADOS CONTRA A DIGNIDADE HUMANA, PERPETRADOS POR REPRESSÃO POLÍTICA (VÁRIOS MOTIVOS). APLICAÇÃO EX OFFICIO DO ART. 515 , § 3º DO CPC (POSSIBILIDADE CONFORME JURISPRUDÊNCIA DO STJ). PROVA CANDENTE DO ALEGADO PELO AUTOR. INDENIZAÇÃO FIXADA. APELO PROVIDO. 1. A sentença transita na contramão do entendimento da jurisprudência brasileira, que afirma a imprescritibilidade das ações em que as vítimas de perseguições e torturas infligidas pelos agentes da repressão política a serviço do regime autoritário instituído em 1º de abril de 1964 postulam indenização pelos danos morais que sofreram diante da permissão do Estado para que seus cidadãos fossem perseguidos e até massacrados por divergências políticas, e da omissão da imensa maioria da sociedade brasileira diante das arbitrariedades da época. 2. Afirmar-se que o Decreto nº 20.910 /32 deve incidir em favor da União e dos Estados Federados onde houve perseguição política promovida por agentes oficiais e extra-oficiais agregados ao regime autoritário que vigorou entre nós a partir de 31/3/1964, é fazer pouco caso da História, é optar pelo juridiquês em desfavor da Justiça, é tripudiar sobre aqueles que em determinado momento histórico tiveram suas vidas - e das suas famílias e amigos - atrapalhadas por ações contrárias muitas vezes até ao direito de exceção que vigeu com força naquele período. Não se pode esquecer - ao contrário do que pretendem as rés - que naquela época não vicejava plenamente o acesso à Jurisdição, especialmente no tempo em que vigorou o Ato Institucional nº 5 (de 13/12/68 até 17/10/77). Ora, com o Judiciário cabrestado, imprensa censurada, advogados ameaçados e os cidadãos amedrontados pelas leis de segurança nacional e pelos órgãos militares, paramilitares e policiais de repressão, é óbvio que a liberdade de acesso aos mecanismos da Justiça era nenhuma. Destarte, na singularidade do caso não pode produzir efeitos o decurso do tempo como cogitado no Decreto nº 20.910 /32, mesmo porque a própria Constituição , no corpo do art. 8º do ADCT, fêz retroagir os efeitos da anistia política até 18 de setembro de 1946. 3. Uma coisa é reivindicar indenização por dano moral decorrente de prática de atos atentatórios da dignidade humana (vigilâncias e perseguições, prisões secretas, sem justa causa ou com causa ilegítima, e a aplicação de torturas físicas e mentais), como faz o ora autor; outra coisa, bem diferente, é um ex-servidor militar pretender ascensão funcional à conta de prejuízo na sua carreira determinado pela aplicação do Ato Institucional nº 5 /68. Por isso que a decisão do STF proferida na Ação Originária Especial nº 27/DF, julgada em 10/8/201, quando julgou a segunda situação e reconheceu a prescrição em favor do Poder Público, não serve de paradigma para um caso que claramente envolve violação de direitos humanos (imprescritíveis). Situações inconfundíveis, com pedidos e causae petendi distintos. 4. Afastada a prescrição, e estando a causa devidamente processada, tem-se um processo "maduro" para julgamento, razão pela qual deve-se aplicar o § 3º do art. 515 do CPC , a fim de evitar mais procrastinação em desfavor do requerente. Precedentes do STJ a favor da aplicação ex officio do dispositivo. 5. Para postular em Juízo indenização por danos morais decorrentes de perseguição política ocorrida durante o regime autoritário, o interessado não precisa primeiro se dirigir a Comissão da Anistia, nem se submete ao que for decidido nos termos da Lei nº 10.559 /2002 ou da Lei Estadual nº 10.726/2001, que obviamente não poderiam impedir o acesso ao Judiciário. Aliás, mesmo que a pessoa tenha recebido alguma indenização cogitada pelas Leis ns. 10.559 /2002 e 10.726 /2001 (estadual) - o que não foi o caso do autor - não fica inibido de buscar a reparação pela dor moral oriunda de perseguições políticas que infernizaram sua vida; é que tais indenizações, embora oriundas do mesmo fato - perseguição política - têm naturezas distintas. O dano moral é indenizável conforme comando da Constituição Federal (art. 5º, V e X). Nenhuma legislação ordinária poderá impedir que alguém postule em Juízo o ressarcimento de sofrimentos morais, menos ainda em face do Estado, que só existe e se legitima na medida em que promove o "bem comum"; jamais deve ser fonte de tormentos extra legem ou que - mesmo previstos em lei - afrontem a dignidade humana. 6. Examinando o caso à luz das provas constantes dos autos, constata-se que o então estudante universitário MÁRCIO LUIZ VALENTE, com menos de 20 anos de idade, passou a ser intensamente vigiado por agentes da repressão política, a partir de 15/5/1969, pela Divisão de Informações do DEOPS (que no Estado de São Paulo fazia "as vezes" de polícia política aliada do ente maior, a União). Despertou a atenção do órgão porque havia participação da "invasão" da USP e fazia panfletagem (fls. 23/24). Foi vigiado mais especialmente depois que foi eleito como suplente numa chapa que concorreu ao diretório acadêmico XI de Agosto (fls. 37). De fls. 51 consta a informação - oficial - de que o autor foi preso durante aquela ocupação e porque fazia muita panfletagem em favor da UNE e da UEE. Fuga para o interior para evitar segunda detenção. Nova prisão em 1973, com pernoite na sede da OBAN, para ser interrogado encapuzado. Indenização devida. 7. Conforme o panorama desvelado pela prova, o valor da indenização deve ser fixado em oitenta mil reais. Sobre esse valor incidirão juros de mora (contados de 15/5/1969, quando se iniciou a perseguição estatal do autor) e correção monetária (deste arbitramento), conforme a redação atualizada da Res. 134/CJF; ainda, a União sai condenada em honorários advocatícios que, na esteira da conjugação dos §§ 3º e 4º do art. 20 do CPC , fixo em 10% do valor corrigido da condenação ( REsp XXXXX/PR , Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 23/04/2009, DJe 29/09/2009), restritos a vinte mil reais conforme o entendimento costumeiro da Turma (não há razão objetiva para fixação diversa, aqui).