PROCESSO Nº: XXXXX-08.2016.4.05.8304 - APELAÇÃO CÍVEL APELANTE: FUNDACAO NACIONAL DO ÍNDIO FUNAI e outro APELADO: ANTONIO REGIVALDO DE SOUZA MORORO ADVOGADO: Selmo Leandro Dos Santos RELATOR (A): Desembargador (a) Federal Fernando Braga Damasceno - 3ª Turma MAGISTRADO CONVOCADO: Desembargador (a) Federal Germana De Oliveira Moraes JUIZ PROLATOR DA SENTENÇA (1º GRAU): Juiz (a) Federal Fernando Braz Ximenes EMENTA APELAÇÃO. ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. LEGITIMIDADE ATIVA SUPERVENIENTE. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO CONFORME ENTENDIMENTO DO STJ. LEGITIMIDADE PASSIVA DA FUNAI EM FACE DA NATUREZA DO PEDIDO. PROCESSO DE DEMARCAÇÃO PENDENTE. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO DA DESAPROPRIAÇÃO INDIRETA. APELAÇÕES PROVIDAS. 1. Trata-se de apelações interpostas pela UNIÃO e pela FUNAI contra sentença que, em ação que pleiteava o reconhecimento de desapropriação indireta, em virtude de ocupação indígena no bem do apelado, julgou o pleito autoral parcialmente procedente, para condenar à FUNAI ao pagamento de importe indenizatório à parte autora, no valor de R$ 721.553,06, acolhendo o valor indicado pelo laudo pericial na avaliação do imóvel. 2. Em suas razões recursais, a União alega sua ilegitimidade passiva, uma vez que o procedimento de demarcação é de competência da FUNAI, inexistindo ato da União a ensejara a situação em tela ou a mora na demarcação. Requer também o afastamento dos honorários fixados em seu desfavor, tendo em vista que, no mérito, a sentença entendeu por eximi-la da responsabilidade. 3. A FUNAI, por sua vez, se insurge contra a sentença que deferiu a indenização pela ocupação indígena do bem alegando, primeiramente, que este não se encontra registrado no nome do apelado. Ademais, pugna pela integração do litisconsórcio necessário com os indígenas, responsáveis pela ocupação alegada, uma vez que possuem capacidade para estar em juízo. Segundo a FUNAI, o processo de demarcação de terra indígena é meramente declaratório, sendo nulo o título de propriedade sobre a área, de forma que descabe falar em desapropriação indireta em decorrência da demarcação. Quanto aos danos da invasão, pugna pelo reconhecimento da responsabilidade dos índios, defendendo que não lhe são imputáveis. Subsidiariamente, requer a fixação dos consectários legais na forma do artigo 1º-F da Lei nº 9.494 /1997. 4. O cerne da presente controvérsia consiste em perquirir a legitimidade passiva da União, a ocorrência de desapropriação indireta no caso concreto e a responsabilidade da FUNAI sobre a ocupação indígena em tela. 5. No caso concreto, o particular relata invasão indígena de seu imóvel, o qual não foi reconhecido ainda como terra indígena, pendente o processo de demarcação. Iniciado em 1993, foi emitida a Portaria nº 26/2002 demarcando área para essa finalidade, na qual não se inclui o bem do apelado, mas, desde 2009, o imóvel está sob estudo para verificação acerca do reconhecimento da propriedade como terra indígena. 6. Anteriormente, o particular intentou ação de reintegração de posse, que foi julgada improcedente em virtude da pendência da referida demarcação. 7. Primeiramente, cabe afastar a ilegitimidade ativa alegada pela FUNAI em relação ao apelado no caso concreto. O imóvel em questão pertencia à pessoa jurídica BAPF - Beneficiamento de Arroz Pai e Filhos LTDA., da qual era sócio-gerente o apelado, mas, no decorrer da demanda, foi adquirido por este, em virtude de liquidação daquela sociedade. Destarte, verifica-se que não cabe falar em ilegitimidade ativa, ante a sucessão verificada no curso da demanda. 8. Quanto à alegação de ilegitimidade passiva, não assiste razão à União. Conforme o entendimento do STJ, é obrigatória a participação da União nas demandas que envolvam o interesse individual ou coletivo dos indígenas, como é o caso dos autos, em que se trata de ocupação alegadamente indevida por parte destes. Neste sentido: AgInt no REsp XXXXX/RS , Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 22/11/2016, DJe 27/08/2020. 9. A FUNAI, por sua vez, alega sua ilegitimidade passiva, pois os danos decorrentes da ocupação seriam imputáveis aos próprios índios. Ocorre que a pretensão do particular é, na verdade, referente ao reconhecimento de desapropriação indireta, que deriva de conduta administrativa, dependendo de atuação da própria Administração de modo a privar-lhe do bem. Assim, não é o caso de aferir a responsabilidade dos índios no caso concreto, o que constituiria pretensão diversa da que efetivamente intenta fazer valer o particular. 10. A FUNAI alega ainda a prescrição sobre a pretensão do particular, tendo em vista que a ocupação se iniciou em meados de 2007. No entanto, considerando que o pedido veiculado é de reconhecimento da desapropriação indireta, esta, nos termos da jurisprudência do STJ, sujeita-se, por analogia, ao prazo prescricional decenal previsto no parágrafo único do art. 1.238 do Código Civil de 2002 para as ações de usucapião extraordinário. No mesmo sentido: PROCESSO Nº XXXXX-48.2013.4.05.8402 , DESEMBARGADOR (A) FEDERAL GUSTAVO DE PAIVA GADELHA (convocado), Terceira Turma, julgado em 21/02/2020. 11. A sentença recorrida entendeu que a análise do caso passava ao largo da caracterização da área como terra indígena ou não, não enfrentando o tema. 12. No entanto, merece reparo a conclusão do juízo a quo. O reconhecimento do caráter da área, se indígena ou não, impactará diretamente na demanda, uma vez que, sendo de fato terra indígena, não cabe falar em desapropriação indireta. Nessa situação, são considerados nulos os títulos de propriedade existentes sobre a área e somente farão jus os particulares à indenização pelas benfeitorias edificadas de boa-fé, respeitado, nesse caso, o prazo quinquenal. Nesse sentido: AgInt no REsp XXXXX/SP , Rel. Ministro BENEDITO GONÇALVES, PRIMEIRA TURMA, julgado em 19/05/2020, DJe 04/06/2020. 13. Por outro lado, caso não se trate de terra indígena, há que se verificar se a situação em tela, de ocupação da área por índios, caracteriza, de alguma forma, conduta administrativa desapossadora do particular, sem a respectiva indenização. 14. No caso concreto, o imóvel do particular insere-se em área que permanece em estudo pela FUNAI, não havendo conclusão acerca de seu reconhecimento como terra indígena. A demarcação, por sua vez, é atribuição da FUNAI, não sendo possível aferir em juízo o caráter da área, considerando ainda que tal reconhecimento depende de uma análise multifatorial, não apenas geográfica, mas também antropológica. Ademais, não se pode obrigar o ente público a cumprir a obrigação em prazo incompatível com a complexidade que o procedimento específico exige. O Decreto nº 1.775 /96 prevê um procedimento longo, contabilizando cinco etapas para a finalização e concreção do reconhecimento da área como território indígena, de maneira que se exige um lapso de tempo considerável até a conclusão de todo o procedimento. Neste sentido: PROCESSO Nº XXXXX-79.2017.4.05.8400 , Desembargador Federal Alexandre Luna, Primeira Turma, julgado em 05/09/2020. 15. Se fosse terra indígena, como visto, improcedente o pedido de desapropriação indireta, cabível apenas a discussão acerca das benfeitorias. Ocorre que, nesse caso, pendente o processo de demarcação, impossível o reconhecimento da terra como tal. Por outro lado, não sendo terra indígena, haveria que se verificar se há conduta administrativa desapossadora a justificar o reconhecimento de desapropriação indireta e o direito à indenização. 16. A sentença entendeu pelo cabimento da indenização por vislumbrar que a ocupação indígena se deu a partir da expectativa gerada pela FUNAI, com a edição de suposta portaria que reconheceu o imóvel como possível área indígena. No entanto, a formação de grupo de trabalho acerca da situação e o estudo sobre a área não implicam incentivo à ocupação indígena, inexistindo comprovação de conduta administrativa a subsidiar a referida invasão. Não há, como entendeu a sentença, nítida responsabilidade da FUNAI em relação ao esbulho, não sendo possível reconhecer, como o fez o juízo a quo, que gerou a situação deflagradora da invasão. 17. Resta analisar se a demora no processo demarcatório, que é a única conduta atribuível à FUNAI no caso concreto, pode ser considerada como desapropriação indireta. Primeiramente, considerando que a análise permanece junto à referida fundação, não tendo sido entregue à União para efetuar a parte que lhe cabe no processo, a responsabilidade por eventual demora é imputável apenas à FUNAI. 18. Embora a ocupação, em si mesma, não decorra de atuação administrativa, a demora no processo demarcatório impede a reintegração da posse, em face da decisão anteriormente prolatada nesse sentido, em virtude da pendência do processo de demarcação. Tem-se, portanto, situação na qual a reintegração da posse encontra-se obstada em virtude de processo administrativo pendente. No entanto, a impossibilidade de reversão da situação sem prejuízo à coletividade é pressuposto da caracterização da desapropriação indireta, que não se verifica no caso. Nesse sentido: PROCESSO Nº XXXXX-60.2002.4.05.8200 , Desembargador Federal Gustavo de Paiva Gadelha (convocado), Terceira Turma, julgado em 12/03/2020. 19. Embora venha sendo moroso, há processo de demarcação em curso, que solucionará a questão, sendo o pronunciamento estatal possível e certo, de forma que se reverterá a situação, seja para o reconhecimento da terra como indígena - e aí o descabimento da desapropriação indireta -, seja para viabilizar a reintegração da posse, se verificada que a propriedade é, de fato, do particular. 20. Sendo assim, não se verifica, no caso concreto, a desapropriação indireta alegada, devendo ser afastada a responsabilidade da FUNAI no caso concreto. 21. Quanto aos honorários advocatícios fixados pelo juízo a quo, no montante de R$ 18.000,00 pro rata, cabe a sua inversão em desfavor do apelado, ora sucumbente. Beneficiário da gratuidade da justiça, fica suspensa a exigibilidade da referida obrigação, na forma do artigo 98 , § 3º , do CPC . 22. Apelações providas, afastando a indenização a que fora condenada a FUNAI e a responsabilidade da União pelo ônus da sucumbência.