Ações de despejo e a teoria do adimplemento substancial
Por Francisco dos Santos Dias Bloch,
advogado (OAB-SP nº 196.787)
A Lei nº 8.245/91, também conhecida como a Lei de Locações, permite ao locatário extinguir a ação de despejo por falta de pagamento, depositando em juízo as quantias em aberto no prazo da defesa (trata-se da purga da mora). Ocorre que a própria lei estabelece de maneira expressa, em seu artigo 62, que isto só pode ser feito a cada 24 meses.
Ou seja, nos termos da Lei de Locações, o locatário pode purgar a mora, e extinguir a ação de despejo por falta de pagamento, apenas uma vez a cada dois anos. Antes disso, qualquer inadimplemento, por menor que seja, permite ao locador rescindir o contrato e despejar seu inquilino, sem que este último tenha a possibilidade de pagar em juízo.
Da mesma forma, é comum que, em ações de despejo, locador e locatário façam acordos para pagamento de eventual saldo em aberto, ficando estabelecido que o inadimplemento do inquilino resultará na imediata expedição de mandado de despejo, sem a possibilidade de purgação da mora. Esta espécie de acordo, homologada judicialmente, pode ser cumprida de forma imediata, bastando que o locador informe o inadimplemento em juízo: o inquilino fica sem qualquer chance de defesa.
Em ambas as situações, entretanto, é importante considerar que a Lei de Locações não existe em um vazio, e deve ser interpretada em conjunto com os princípios legais que regulamentam os contratos de maneira geral, especialmente os princípios da função social dos contratos e da boa-fé objetiva (artigos 421 e 422 do Código Civil).
Os contratos de locação possuem valor social e devem ser preservados, tendo em vista o direito à moradia, no caso das locações residenciais, e a preservação do fundo de comércio, no caso das locações comerciais tudo nos termos da Lei de Locações. E no caso específico das ações de despejo, o remédio que a Lei nº 8.245/91 oferece aos locatários é a purgação da mora, que permite o pagamento em juízo das obrigações em aberto, extinguindo o processo de despejo.
Disto se conclui que as possibilidades de purgação da mora devem ser interpretadas da maneira mais ampla possível. É neste contexto que se deve considerar a teoria do adimplemento substancial, já bem fixada na doutrina e na jurisprudência. Esta teoria estabelece que, em um contrato de prestações continuadas, como é o caso do contrato de locação, o inadimplemento deve ser significativo, considerando o valor total da obrigação, para que seja possível a rescisão do acordo.
Havendo o inadimplemento não significativo, cabe ao credor apenas cobrar (executar) as quantias em aberto, e não rescindir o acordo. Veja-se neste sentido o conceito apresentado por Clóvis Couto e Silva para o adimplemento substancial: "constitui um adimplemento tão próximo ao resultado final, que, tendo-se em vista a conduta das partes, exclui-se o direito de resolução, permitindo-se tão somente o pedido de indenização e/ou adimplemento, de vez que a primeira pretensão viria a ferir o princípio da boa-fé (objetiva)".
Esta teoria tem encontrado respaldo nos tribunais brasileiros, especialmente em ações de rescisão contratual movidas por construtoras e incorporadoras imobiliárias: nestas situações, o Poder Judiciário tem entendido que, se houve o pagamento da maior parte do valor estabelecido no acordo, não é razoável que o contrato seja rescindido, e cabe ao vendedor apenas cobrar as parcelas em aberto. São neste sentido as seguintes decisões, ambas do STJ: REsps nºs 1.200.105 e 1.215.289.
No caso específico das ações de despejo por falta de pagamento, a teoria do adimplemento substancial possui aplicação prática importantíssima no que diz respeito à purgação da mora, em caso de inadimplemento pelo locatário.
É possível utilizar a teoria acima para, por exemplo, justificar a purgação da mora antes de decorrido o período de 24 meses desde a última purgação, previsto em lei, quando o valor em aberto for relativamente pequeno.
Da mesma maneira, a teoria do adimplemento substancial, combinada com o princípio da função social dos contratos, pode permitir a purgação da mora em caso de descumprimento de acordos judiciais.
Diante do quadro acima exposto, conclui-se que as normas sobre purgação da mora, em ações de despejo por falta de pagamento, devem ser interpretadas de maneira ampla, considerando a teoria do inadimplemento substancial. O contrato de locação deve ser preservado sempre que possível, por meio do instituto da emenda da mora.
Resumindo, não é razoável negar ao locatário a possibilidade de pagar os valores em aberto, preservando seu contrato, quando o inadimplemento em si não é significativo, considerando os valores envolvidos na locação.
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