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4 de Maio de 2024

Enriquecimento ilícito e a inversão do ônus probatório

Publicado por Correio Forense
há 12 anos
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Por mais louváveis que sejam as iniciativas de reforçar os mecanismos de combate ao mau uso do erário, deve ser encarada com cautela a aprovação, por parte da comissão elaboradora do anteprojeto de novo Código Pena l , do delito de enriquecimento ilícito.

A aprovação vem sendo rechaçada, por diversos motivos, pela maioria dos países do Ocidente, tal como Estados Unidos, Bélgica e Itália. Em Portugal, foi declarado inconstitucional pela Corte Constitucional lusitana. A viabilidade desse novo tipo está longe de ser um consenso.

Em qualquer país democrático, para condenar alguém criminalmente, é necessário dirimir qualquer dúvida sobre a culpa do réu. E cabe a quem acusa apresentar provas da ilicitude dos fatos. Isso resulta do princípio da presunção de inocência, uma garantia constitucional típica do Estado Democrático de Direito.

Mas essa lógica não existe numa possível acusação de enriquecimento ilícito. Bastaria que o Ministério Público suspeitasse da ilicitude do patrimônio de um servidor para a deflagração de uma persecução penal, cabendo na prática ao acusado provar a origem lícita dos seus bens. E comprovar que o patrimônio de toda uma vida foi obtido por meios legítimos, em algumas circunstâncias, com o passar do tempo, pode não ser algo tão simples. É cristalina aqui a inversão do ônus probatório.

Qualquer dificuldade em demonstrar a origem lícita dos bens tornaria inevitável uma condenação, ainda que inexistentes provas de sua origem ilícita ou de alguma atividade criminosa por parte do réu. O resultado de tal situação seria o desencadeamento sem precedentes de acusações criminais absolutamente infundadas com fins político-eleitorais. Necessário questionar como ficaria, diante desse quadro, outra garantia constitucional importante, que é o direito ao silêncio, previsto no art. , LXIII da Carta Magna. Uma acusação de enriquecimento ilícito reduziria o uso dessa faculdade.

Há ainda o fato de que toda norma penal tutela um determinado bem jurídico, seja ele a vida, o patrimônio, etc. Bem jurídico este difícil de ser identificado no caso do possível crime de enriquecimento ilícito, pois se trata da criminalização não de uma conduta, mas de uma situação. Não há uma ação especificada, o tipo recai sobre o fato de usufruir de ou possuir bens tidos como incompatíveis com a função remunerada exercida por aquela pessoa.

Outra importante questão sobre o tema é o chamado princípio da subsidiariedade. O Direito Pena l é comumente denominado ultima ratio, última instância sancionatória do ordenamento jurídico, e sanções de natureza penal são criadas apenas quando os demais ramos do direito são ineficazes para intervir.

Não é o caso, porém, do delito em questão. Desde o ano de 1992 existe na legislação um poderoso instrumento de combate ao enriquecimento sem causa de funcionários públicos, que é a Lei de Improbidade Administrativa (Lei 8.429/92), de alcance muito mais amplo que a norma penal proposta.

A Lei 8.429/92 prevê severas penas pecuniárias àqueles condenados por essa prática. Às penas pecuniárias somam-se ainda devolução dos valores, suspensão dos direitos políticos por até 10 anos (esta reforçada pela Lei da Ficha Limpa) e proibição de contratar com o poder público ou receber qualquer tipo de benefício fiscal.

Enfim, já existe um rol de medidas sancionatórias bastante graves. Poder-se-ia argumentar que, mesmo com a existência de tais sanções, o número de condenações por enriquecimento ilícito vem sendo irrisório, e por isso um instrumental penal seria necessário. Mas isso é falso. A tipificação desse crime pode afrouxar ainda mais a fiscalização à corrupção, já que é mais fácil punir a consequência que investigar delitos mais graves. Inúmeros casos de peculato, tráfico de influência e corrupção passiva poderiam ficar impunes. Além disso, o conceito de culpa no direito penal é bem mais restrito que no direito civil/administrativo, sendo muito mais difíceis as condenações criminais.

Conclui-se, portanto, não ser possível, dentro da ordem constitucional brasileira, a criação do delito de enriquecimento ilícito. Não há como subverter direitos e garantias individuais em nome de uma duvidosa necessidade de criminalizar uma não-conduta com sanções já previstas em outros diplomas legais.

Autor: Carlos Eduardo Machado e Mario Polinelli

Advogados membros do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB)

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