Modulação dos efeitos não pode ser banalizada pelo Poder Judiciário
O direito não é apenas uma expressão da autoridade e da coerção. Uma de suas destacadas funções se relaciona com sua capacidade de ordenação: o estabelecimento de um padrão estipulado de conduta, que seja racionalmente inteligível em sua totalidade[1]. É dizer: o Direito é mais do que mera aceitação e subordinação: é um critério regulador de conduta. Não é acidental, portanto, a importância da segurança jurídica para o Direito moderno, que se manifesta por diversos institutos jurídicos de direito material e processual: as garantias constitucionais do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e da irretroatividade da lei, a proteção à boa-fé e da legítima confiança, a coisa julgada e a preclusão.
Essa expectativa de previsibilidade tem gerado discussão sobre a necessidade de conferir estabilidade à jurisprudência, de prevenir viradas bruscas de orientações jurisprudenciais, sobretudo dos tribunais superiores e do Supremo Tribunal Federal, e de evitar surpresas na prestação jurisdicional. Postula-se, pois, a proteção da legítima confiança do cidadão ou do jurisdicionado aos efeitos de determinado quadro normativo que foi modificado.
Essa expectativa de proteção gerou, no plano do controle de constitucionalidade, a consagração do instituto da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, prevista no artigo 27 da Lei 9.868, de 1999, segundo o qual “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”.
Essa mesma expectativa de previsibilidade das decisões e proteção do jurisdicionado também tem suscitado hoje relevante discussão sobre a possibilidade de proteger o jurisdicionado contra mudanças de entendimento jurisprudencial em geral, sobretudo aquelas ocorridas no âmbito de Tribunais Superiores, como o do Superior Tribunal de Justiça, o que se traduz por termos como “modulação dos efeitos da decisão judicial”, “eficácia ex nunc das decisões judicias”, “ilegitimidade da eficácia retroativa de pronunciamentos judiciais”, “direito adquirido a orientação jurisprudencial”[2].
No curto espaço dessa coluna, pretende-se indicar alguns pontos de reflexão para enfrentar a seguinte indagação: seria o artigo 27 da Lei 9.868, de 1999, um instituo que poderia ser utilizado pelo Poder Judiciário para realizar a modulação de suas decisões? Seria um expediente disponível para a generalidade do Poder Judiciário?
Entendo que não.
Para contextualizar o problema, observem-se os seguintes exemplos.
No julgamento do RE 377.457, que versava sobre a Cofins, o Supremo Tribunal Federal decidiu, em regime de Repercussão Geral, que a revogação pelo artigo 56 da Lei 9.430/96 da isenção concedida às sociedades civis de profissão regulamentada pelo artigo 6º, II, da Lei Complementar 70/1991 foi válida e legítima. Entendeu que a distinção entre lei ordinária e lei complementar não se punha em termos de hierarquia, mas sim de distribuição material entre as espécies legais, sendo que competindo à lei ordinária regular as isenções no Cofins, poderia o benefício estabelecido na LC 70/91 (que seria materialmente legislação ordinária) ser revogado por lei ordinária. O Tribunal, por maioria, rejeitou pedido de modulação dos efeitos de sua decisão, vencidos os ministros Menezes Direito, Eros Grau, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Carlos Britto[3].
O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, julgando a mesma matéria, em sede de ação rescisória ajuizada pela União, seguiu o entendimento do STF e julgou a ação procedente para rescindir acórdão que mantivera a isenção prevista na legislação complementar. Não obstante a rescisão do julgado, o Tribunal aplicou a modulação dos efeitos da decisão, no sentido de estabelecer que a exigência da Cofins no caso concreto deveria se dar a partir da data do julgamento (não sendo necessário o recolhimento do tributo com base em decisão transitada em julgado)[4].
Num terceiro caso, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal, por meio de seu Conselho Especial, em sede de controle concentrado de constitucionalidade declarou a inconstitucionalidade de Decreto que admitia o "aproveitamento" ou 'transposição"de candidatos aprovados em concurso público para nomeação em cargos distintos daqueles para os quais se havia prestado o certame, em afronta aoartigo 37, inciso II, da Constituição (Súmula 685 do STF). Considerando que esse Decreto tinha produzido efeitos (com a nomeação de candidatos para cargos distintos daqueles para os quais haviam prestado concurso), o Tribunal de Justiça houve por bem modular os efeitos de sua decisão, dando-lhe eficácia ex nunc, com fundamento no artigo 8, § 5º, da Lei nº 11.697/2008 e do artigo 128 do Regimento Interno do TJ-DF, em paralelismo com o artigo 27 da Lei 9.868/99[5].
Para compreender o impacto dessa decisão do Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, é ilustrativo examinar o resultado de julgamento de uma apelação, num caso individual, envolvendo essa mesma temática: um servidor público distrital, que havia sido nomeado em cargo diferente daquele em que foi aprovado (nos termos permitidos pelo Decreto Distrital mencionado) ajuizou demanda pleiteando a reg...
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