CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL X JUSTIÇA ESTADUAL. INQUÉRITO POLICIAL. COMENTÁRIOS EM TESE DISCRIMINATÓRIOS DO POVO NORDESTINO EMITIDOS POR ESCRITOR/COLUNISTA EM PROGRAMA DE TV A CABO. ART. 20 DA LEI 7.716 /89. DÚVIDA SOBRE A TIPICIDADE DA CONDUTA. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE HABEAS CORPUS DE OFÍCIO DURANTE O EXAME DE CONFLITO DE COMPETÊNCIA EM SITUAÇÃO DE EXCEPCIONALIDADE. CASO CONCRETO EM QUE O TRANCAMENTO DAS INVESTIGAÇÕES NESTA INSTÂNCIA SE REVELARIA PREMATURO. OFENSA A COLETIVIDADE E RESULTADO TRANSNACIONAL DA CONDUTA EVIDENCIADOS. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. COMPETÊNCIA TERRITORIAL FIXADA PELA PREVENÇÃO. 1. Tendo em mente a natureza e a finalidade do conflito de competência, a discussão sobre a tipicidade do delito investigado ou sobre o mérito da questão discutida no feito em que suscitado o conflito somente é possível em caráter excepcional, quando se revela como prejudicial necessária ao estabelecimento da competência para o julgamento do processo, ou quando se vislumbra a possibilidade, também excepcional, de concessão de habeas corpus de ofício diante de nítido constrangimento ilegal. 2. Entretanto, a concessão do habeas corpus de ofício durante o exame de conflito de competência deve ser feita cum grano salis, diante da proibição de supressão de instância, que tem em mente não só a valorização da atividade judicante de cada uma das instâncias como também o objetivo de resguardar a atividade revisional típica do segundo grau e a função uniformizadora do entendimento da lei federal e da Constituição , característica das instâncias superiores, de modo que cada instância possa se ater à sua tarefa precípua. 3. Situação em que conhecido colunista, num contexto em que comentava a vitória do Partido dos Trabalhadores, nas eleições presidenciais de 2014, qualificou o povo nordestino, que teria votado maciçamente no mencionado partido, de retrógrado, governista, bovino, subalterno em relação ao poder, atrasado, pouco educado e repressor da imprensa. 4. Ainda que a "discriminação étnico-racial", tal como definida no art. 1º , parágrafo único , I , Lei 12.288 /2010, somente seja punível na medida em que tenha por objetivo ou efeito "anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada", a conduta descrita no art. 20 , caput e § 2º , da Lei 7.716 /89 pune, também, a prática, indução ou incitação de "preconceito", cuja caracterização não é expressamente delimitada na lei. 5. Com tudo isso em mente, revela-se desaconselhável a concessão de habeas corpus de ofício no caso concreto, seja porque as investigações ainda estão em estágio muito incipiente, sem que tenha sido ouvido o investigado de ordem a melhor se poder discernir o seu animus ao tecer comentários sobre os nordestinos, seja diante da desnecessária supressão de instância, seja diante dos vários precedentes da Terceira Seção do STJ, que, em situações análogas, não reconheceram, de plano, a atipicidade da conduta (discriminação ou preconceito) e resolveram apenas o Conflito de Competência suscitado. A título exemplificativo: CC XXXXX/MG , Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 26/04/2017, DJe 02/05/2017; CC XXXXX/RO , Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 27/04/2016, DJe 04/05/2016; AgRg no AREsp XXXXX/RS , Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 12/08/2014, DJe 21/08/2014. 6. Sobre o tema da tipicidade penal e da possibilidade de seu afastamento em sede de habeas corpus, o chamado realismo jurídico, destacado, a título exemplificativo, por Oliver Wendell Holmes, Karl Liewelyn, Jerome Frank e Felix Cohen, não permite o esquecimento, de plano, da diretriz jurisprudencial contida nos julgamentos do HC XXXXX/RJ , Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 25/04/2017, DJe 04/05/2017 e do HC XXXXX/BA , Rel. Ministro ERICSON MARANHO - DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP -, SEXTA TURMA, julgado em 17/03/2016, DJe 31/03/2016, bem como de célebre caso que tramitou no Supremo Tribunal Federal ( HC 82424 , Relator (a) p/ Acórdão: Ministro MAURÍCIO CORRÊA, TRIBUNAL PLENO, julgado em 17/09/2003, DJ XXXXX-03-2004 PP-00017 EMENT VOL-02144-03 PP-00524). 7. Esta Corte, interpretando o disposto no art. 109 , V , da CF , tem entendido, como regra geral, ser competência da Justiça Federal o julgamento de infrações penais que apresentem fortes indícios de internacionalidade da conduta e/ou de seus resultados e que estejam previstas em tratado ou convenção internacional, como é caso do racismo, previsto na Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial, da qual o Brasil é signatário. 8. Evidenciado que as palavras do investigado atingiram uma coletividade e que o programa foi assistido por telespectadores dentro e fora do país, produzindo resultados transnacionais, revela-se indiscutível a competência da Justiça Federal para conduzir a investigação. Precedentes. 9. Desconhecido o local da infração, posto que a opinião supostamente preconceituosa foi manifestada em programa de televisão de canal fechado cujo local de gravação é incerto, e desconhecido o local de domicílio do réu, deve ser fixada a competência territorial com base na regra da prevenção (do § 2º do art. 72 do CPP ), sendo admissível a declaração da competência de um terceiro juízo que não figure no conflito de competência. 10. Conflito conhecido, para declarar a competência de um terceiro Juízo, o Juízo Federal da 13ª Vara da Seção Judiciária de Pernambuco, para a condução e julgamento do Procedimento Investigatório.