E M E N T A DIREITO CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO – ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA GRATUITA – AÇÃO ANULATÓRIA/CONDENATÓRIA – SERVIDOR PÚBLICO – LAICIDADE DO ESTADO X LIBERDADE RELIGIOSA – HERMENÊUTICA – HARMONIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS – AMPLITUDE DO DIREITO DE EXPRESSÃO DE CONSCIÊNCIA E CRENÇA – GARANTIA FUNDAMENTAL EXERCITAVEL NOS ÂMBITOS PRIVADO E PÚBLICO – PUNIÇÃO DISCIPLINAR POR CITAÇÃO DE VERSÍCULO BIBLICO EM COMUNICADOS INTERNOS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL – AUSÊNCIA DE PREVISÃO NORMATIVA QUE ADMITA TAL RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL DE CRENÇA – EXPRESSÃO QUE CONSTITUI DIREITO DA PERSONALIDADE E MANIFESTAÇÃO CULTURAL – RAZOABILIDADE DO EXERCÍCIO E AUSÊNCIA DE PREJUÍZO AO INTERESSE PÚBLICO – AUSÊNCIA TAMBÉM DE PREVISÃO NORMATIVA PARA AS PUNIÇÕES – ANULAÇÃO DAS PUNIÇÕES DISCIPLINARES – DANOS MORAIS CABÍVEIS, NA SITUAÇÃO DE ABUSIVA, GRAVE E DURADOURA RESTRIÇÃO DA GARANTIA FUNDAMENTAL – APELAÇÃO PROVIDA. I – Deferimento à autora dos benefícios da assistência judiciária gratuita, não havendo elementos para se infirmar, com segurança e razoabilidade, a declaração de pobreza firmada pela parte autora. II – Ação objetivando reconhecimento da possibilidade da autora, servidora pública federal da UFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, realizar citações de versículos bíblicos em correspondências internas da instituição, obstando punições disciplinares que lhe foram impostas e protegendo-a contra conduta de seus superiores qualificada como perseguição religiosa, bem como, postulando condenação da ré em indenização por danos morais. Reconvenção da UFMS postulando, a seu favor, indenização por danos morais à sua honra objetiva. III – Caso em que a servidora foi proibida pelos superiores da UFMS para deixar de fazer citações de versículos bíblicos em suas correspondências internas da instituição, por considerada violação dos princípios da laicidade estatal, interesse público e impessoalidade da administração. Ante a resistência da servidora, fundada na sua garantia constitucional de liberdade de crença, foram instaurados 3 (três) processos administrativos disciplinares, com punições nos dois primeiros, estando o terceiro em tramitação quando do ajuizamento da ação. IV – No nosso regime constitucional, nenhuma conduta (ação ou omissão) pública pode estar livre do exame de conformação com os valores fundamentais proclamados na Lei Suprema da Nação. O Poder Judiciário detém competência constitucional para proceder ao controle de constitucionalidade dos atos administrativos em geral. V – A controvérsia objeto dos autos é significativamente profunda e sensível, pois, traz a debate um conflito entre, de um lado, alguns dos valores fundamentais de que todas as pessoas em nosso país são titulares - as garantias constitucionais da liberdade de expressão e da liberdade de consciência e de crença ( Constituição Federal /1988, artigo 5º , incisos IV e VI )-, e, de outro lado, os princípios do interesse público e impessoalidade que devem reger todos os atos da Administração Pública na atuação de seus agentes / órgãos e o princípio da laicidade do Estado brasileiro (art. 19, inciso I). VI – A definição do modo pelo qual se deve proceder à aplicação dos valores expressos nas normas constitucionais em confronto impõe os recursos da hermenêutica constitucional, que tem por objeto a identificação dos enunciados normativos decorrentes nas normas (regras e princípios) constitucionais, num processo de concretização construtiva que passa pela análise das normas em sua interação com os fatos sobre os quais deve incidir, no contexto da realidade social em que se insere e sob o influxo dos valores e fins desta mesma sociedade. VII – O princípio da laicidade do Estado e também os princípios constitucionais que regem a administração pública, devem ceder prevalência ante as garantias fundamentais da liberdade de crença e da liberdade de expressão, sendo estes são os valores constitucionais fundamentais que devem merecer a proteção jurisdicional na situação fática subjacente. VIII – Examinando-se os valores em cogitação, é necessário registrar que a crença-fé-religião integra e forma a própria personalidade humana, sendo seu direito inalienável e irrenunciável, integrando o rol da Declaração Universal dos Direitos do Homem - DUDH, proclamada aos 10.12.1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, especificamente em seus artigos 18 e 19, personalidade cujo pleno exercício é garantido em todo e qualquer lugar (artigo 6º) e em condições isonômicas (artigo 7º). Sendo reconhecido no plano universal como um direito que integra a própria essência da pessoa humana, pode e deve ele ser exercido pela pessoa em qualquer lugar em que esteja, seja qual for a natureza dos ambientes em que esteja ou dos atos que pratique, porque constitui expressão da sua personalidade. VIII-A – A liberdade de religião consignada como garantia fundamental no artigo 5º , inciso VI , da Constituição Federal , é exercida sob 3 (três) formas: (i) a liberdade de ter alguma crença, ou de passar a adotar outra fé, ou de deixar de ter qualquer religião, ou de descrer de tudo, ou de ser ateu ou agnóstico; (ii) a liberdade de culto; e (iii) a liberdade de associação religiosa; bem como, expressa-se sob 2 (duas) dimensões: (i) na vida privada; e (ii) na vida pública, correlacionando-se aqui com a liberdade de manifestação do pensamento ( CF/88 , art. 5º , inciso IV ). VIII-B – A liberdade da manifestação do pensamento é também consagrada pela Constituição Federal , no art. 5º , inciso IV . Informam esta garantia fundamental também o inciso IX do mesmo dispositivo (liberdade de expressão da atividade de comunicação, independentemente de censura ou licença) e o art. 220 , caput e § 2º (liberdade de manifestação do pensamento livre de qualquer censura ou restrição). IX – No sentido contraposto nos autos, registre-se que a laicidade estatal ( CF/88 , artigo 19 , inciso I ) impõe que o Estado não se imiscua com qualquer organização religiosa - não assuma qualquer feição confessional - e também se abstenha de favorecer ou desfavorecer qualquer tipo de crença em detrimento de outras, garantindo nas suas ações uma neutralidade e isonomia de tratamento a todas, respeitando a multiplicidade de valores no seio da sociedade democrática. IX-A – A laicidade estatal de modo algum expressa o significado que a UFMS pretende atribuir ao citado princípio, qual seja, no sentido de que o Estado estivesse proibido de, no exercício de suas atividades, fazer qualquer referência a crenças. Tal posicionamento contraria os próprios princípios e fins da instituição estatal. IX-B – O Estado é instituído pelo povo de um país e destina-se a assegurar os valores fundamentais prevalecentes dessa mesma coletividade, dentre os quais também os valores de fé, de crença, de religião, tanto que este valor se insere dentre as garantias fundamentais dos cidadãos em nosso país ( CF/88 , art. 5º , inciso VI ). Não está o Estado de modo algum alheio às questões de consciência e crença que emanam da pluralidade existente no meio social; antes, conhece-as e objetiva a proteção do exercício de quaisquer delas por aqueles que escolhem segui-las como balizas valorativas de suas vidas. IX-C – Sendo o Estado integrado e exercido por servidores selecionados dentre as pessoas dessa mesma coletividade, não há qualquer preceito fundamental que impeça tais pessoas de, no regular exercício de suas funções públicas, exercerem de forma concomitante e harmônica também a sua garantia fundamental de crença, do que decorre que não podem ser excluídos, das manifestações no âmbito público (estatal), os valores de crença que majoritariamente informam a sociedade brasileira, apenas devendo ser delimitado tal agir pelo dever de respeito e tolerância com a garantia de crença de todos os grupos sociais, inclusive os minoritários. X – Do exposto, não se pode conceber a ocorrência de uma tão grave violação constitucional que fosse decorrente de uma mera manifestação da crença individual de qualquer servidor público, mesmo que exercida no âmbito do espaço público de suas atividades, quando respeitados certos limites, limites estes que se possam extrair exclusivamente dos demais comandos constitucionais, por serem de mesma natureza e grau hierárquico na estrutura normativa da nossa ordem jurídico-constitucional. X-A – Diante destas ponderações e dos precedentes do C. STF, do CNJ e desta Corte Regional Federal, que a própria ordem constitucional emanada diretamente da Lei Maior pode nos fornecer, de uma maneira geral, os seguintes limites para a manifestação individual de consciência e de crença no âmbito do espaço público, conjuntamente considerados: (i) devem ser preservados os interesses do serviço público, evitando-se, assim, que de qualquer modo venham a ser afetados de maneira prejudicial; (ii) deve haver respeito aos direitos dos demais servidores e usuários do serviço público em geral, que não podem ser coagidos ou constrangidos a aquiescerem com a fé manifestada, sendo ressalvada a possibilidade de que, uma vez resguardado este pressuposto de conduta ética respeitosa e tolerante, os servidores visem o proselitismo, pois na verdade é da própria essência das crenças em geral tal prática de pregar os fundamentos de sua fé para conduzir outras pessoas a seguirem o mesmo caminho de fé que consideram o melhor para suas vidas; e (iii) deve ser observado o princípio constitucional da razoabilidade, para coibir eventuais atitudes abusivas, constrangedoras, que de alguma forma resultem em desvirtuamento dos fins do espaço público ou que resultem em induzimento forçado das pessoas a se submeterem a determinada crença. XI – Desde que observados tais aspectos limitadores de ordem geral, não se entremostra qualquer impedimento de ordem constitucional que impeça a coexistência harmônica dos citados valores fundamentais. E, qualquer norma inferior, legal ou infralegal, ou qualquer conduta neste país (estatal ou particular