CONSTITUCIONAL. APELAÇÕES. DEMARCAÇÃO DE TERRA INDÍGENA. PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO-DEMARCATÓRIO. INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS. OBSERVÂNCIA DO ART. 231 DA CONSTITUIÇÃO DA REPUBLICA E DA LEI Nº 6.001 /73. CONSTITUCIONALIDADE E LEGALIDADE DA PORTARIA EXPEDIDA PELO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA EM 22/06/1992. RECONHECIMENTO DA TRADICIONAL OCUPAÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA. ESBULHO RENITENTE CARACTERIZADO. PROVA PERICIAL E DEMAIS ELEMENTOS PROBATÓRIOS SUFICIENTES. RECURSOS NÃO PROVIDOS. 1. A demarcação de terras indígenas decorre do reconhecimento constitucional do direito originário dos índios à posse permanente e ao usufruto exclusivo sobre as terras tradicionalmente ocupadas, cuja propriedade é da União (art. 20 , XI , da Constituição da Republica ), tratando-se, portanto, de ato declaratório de uma situação jurídica preexistente. 2. O constituinte estabeleceu um comando expresso de nulidade e extinção de pretensos direitos adquiridos por não índios sobre terras indígenas, cujos efeitos se estendem sobre vínculos jurídicos de origem pré-constitucional. 3. Os parâmetros para a efetiva delimitação das circunstâncias que se subsumem ao conceito de "terras tradicionalmente ocupadas pelos índios" e "por eles habitadas em caráter permanente" (art. 231 , § 1º , da Constituição da Republica ) só vieram a ser precisamente estabelecidas pela jurisprudência quando do julgamento, pelo STF, em 19/03/2009, da Pet. 3.388/DF (Rel. Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 19/03/2009). 4. Uma vez constatado o denominado fato indígena, resta suplantado qualquer direito de cunho privado, que não poderá prevalecer sobre os direitos dos índios. Consideram-se terras indígenas aquelas que, na data da promulgação da Constituição da Republica , eram ocupadas por indígenas, adotando-se, assim, o marco temporal de 5 de outubro de 1988 como referencial para o dado da ocupação do espaço geográfico. 5. A interpretação atribuída ao art. 20 , XI , da Constituição da Republica , no caso Raposa Serra do Sol - segundo a qual, para se aferir a tradicionalidade da ocupação, deve ser demonstrada a presença dos índios em determinada área em 05/10/1988 -, foi expressamente ressalvada em relação às hipóteses em que restar caracterizado o esbulho renitente. Portanto, caso demonstrado que a ausência de ocupação indígena no marco temporal estabelecido pelo STF tenha se dado por força de atos de extrusão e remoção compulsória, promovidos por parte de não índios, não se afasta o reconhecimento da ocupação tradicional. 6. Nos casos "Terra Guyrároka" ( RMS nº 29.087 , DJe 14/10/2014) e "Terra Indígena Limão Verde" ( ARE nº 803.462 -Agr-MS, DJe 12/02/2015) sedimentou-se a concepção do esbulho renitente em sentido estrito, de acordo com a qual o reconhecimento da expulsão de comunidades indígenas exige a verificação de, ao menos, um dos seguintes fatores: circunstâncias de fato que demonstrem a existência de controvérsia possessória judicializada; ou, ainda, a presença de efetivo conflito possessório que perdure até a data da promulgação da Constituição da Republica de 1988. 7. No caso, a pretensão dos Autores recai sobre a propriedade da denominada Fazenda "Sant'Ana e São João Mirim", correspondente a uma área de 4.270,5 hectares. Em junho de 1992, foi expedida portaria pelo Ministério da Justiça (Portaria MJ 289, de 19/06/1992), e Decreto Presidencial s/nº, em 01/10/1993, em razão da identificação, pela União Federal e pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI), de gleba da área relativa à referida Fazenda como terra tradicionalmente ocupada por indígenas (antigo tekohá Guarani), havendo sido promovida a demarcação de uma área de 2.475 hectares de extensão, denominada região Takuaraty-Ivykuarussu. 8. Produzido laudo pericial judicial - que se encontra embasado em amplos elementos probatórios, mormente fontes históricas e antropológicas, além de informações coligidas a partir de entrevistas com índios pertencentes à comunidade afetada e precisa análise da área examinada -, concluiu-se pela existência de tradicional ocupação indígena (Guarani-Kaiowá) sobre a área submetida ao processo administrativo de demarcação da terra Takuaraty-Ivykuarussu, bem como apontou-se a ocorrência de atos de extrusão e remoção compulsória contra os índios, caracterizando-se o renitente esbulho. 9. Não comporta acolhimento a alegação de impedimento do perito responsável pelo laudo judicial, em razão da realização de anterior trabalho científico, com motivação estritamente acadêmica, em local parcialmente coincidente com a área examinada. 10. A demarcação de terra indígena é ato formal, de natureza declaratória, que tem por escopo o reconhecimento de um direito pré-existente (originário), tratando-se de ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e veracidade. Trata-se de presunção juris tantum, cabendo à parte contrária impugná-la, mediante a apresentação de provas inequívocas, aptas a infirmá-la, o que não se verificou no caso. Precedentes. 11. Constata-se a existência de provas robustas a embasar a regularidade do ato declaratório de demarcação da Terra Indígena Takuarity-Yvikuarusu, o qual não se mostra eivado de qualquer nulidade, inexistindo fundamentos hábeis a afastar a presunção de legitimidade do ato administrativo analisado. O fato de as terras terem sido esbulhadas dos indígenas pelo próprio Estado - que, posteriormente, as titulou a particulares - não elide o direito originário dos índios sobre suas terras, nos termos da Constituição da Republica . 12. Em 30/07/1986, verificou-se a renúncia, em cartório, ao domínio de uma área que tangencia, parcialmente e em pequena proporção, a Terra Indígena Takuarity-Yvikuarusu, a qual fora então reservada à posse e ocupação pelos índios, na forma do art. 26 , da Lei 6.001 /73. Tal ato, porém, não se confunde com a demarcação de terra indígena, realizada mediante procedimento específico, e que, no caso, somente foi efetuada através da Portaria do Ministério da Justiça de 22/06/1992 e do Decreto Presidencial s/nº de 01/10/1993, razão pela qual não há que se falar em ampliação de terra indígena anteriormente demarcada. 13. Inexistindo fundamentos hábeis a infirmar os fundamentos da sentença recorrida, nega-se provimento aos recursos de apelação.