APELAÇÃO CRIME. TORTURA-CASTIGO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. TIPICIDADE. \nA Lei nº 9.455 /97 definiu o crime de tortura, na esteira do mandado de criminalização do Poder Constituinte originário (artigo 5º , inciso XLIII ; § 4º do artigo 227 , ambos da Constituição Federal ), de forma mais ampla do que o estipulado na Resolução nº 39/46 ONU (crime próprio, a priori restrito a um especial sujeito ativo, agente dotado de autoridade pública), a abranger atos de tortura praticados por particulares sob pretextos diversos. Caso dos autos, de modalidade da tortura-castigo, pela qual se submete alguém, sob guarda/poder/autoridade, com violência/grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal. \nConceito pré-típico de tortura como farol hermenêutico. Discussão de precedentes do STJ, com destaque para o REsp XXXXX/DF , 6ª Turma, DJe 14/9/2018. Descarte da posição de garante como fundamental, no caso, para a configuração da tortura-castigo.\nO substrato fático-probatório amolda-se ao inciso II do artigo 1º da Lei da Tortura , pois o apelante submeteu a vítima, a qual estava sob seu poder, com emprego de violência, a intenso sofrimento físico e mental, castigada por ciúmes, já que o réu imaginava que ela flertara com transeunte, instantes antes, quando estava na porta olhando a movimentação da rua. A ofendida sofreu sessão de espancamento, ameaças e humilhações; além de ser escalpelada (parte do couro cabeludo foi extirpada com faca) e ter dois dentes arrancados.\nHavia prévia relação entre a vítima e o réu, situada dentro da estrutura da violência doméstica e familiar e cujos atos materiais de agressão física e psicológica flagelam a mulher por razões de condição de sexo feminino. Tendo já morado juntos, sucederam-se episódios violentos de ciúmes e sentimento de posse, com a subjugação progressiva da vítima, até o paroxismo daquela tarde de 04 de abril de 2020. Trata-se, pois, de recorte do singular universo da violência doméstica contra a mulher.\nNo contexto dessas relações afetivas, em que se misturam as dinâmicas de poder e afeto e a mulher, via de regra, ocupa a posição dominada e subordinada, o Superior Tribunal de Justiça, em relação à vulnerabilidade, assentou ser desnecessária sua demonstração concreta, a qual é presumida quando existente relação familiar, de afeto ou de coabitação. Ainda que se desconsiderasse a presunção de vulnerabilidade neste âmbito relacional, o réu, no caso concreto, explicitou a assimetria situacional ? essencial à tortura ?, exercendo faticamente poder que subjugou a ofendida, pois, na data do fato, para além de todo quadro (sociológico e a priori) de violência de gênero estrutural, trancou a casa e escondeu a chave, não permitindo que a vítima saísse, de modo que ela, já reconhecidamente hipossuficiente e vulnerável na relação afetiva, ficou subjugada às suas ações durante quatro horas, vale dizer, esteve sob seu poder, à mercê de sua vontade, durante todo esse tempo. \nA intersecção, no substrato de vida em exame, entre as Leis nº 9.455 /97 e nº 11.340 /06, permite razoável interpretação sistemática no sentido afirmativo da tipicidade da tortura-castigo no quadro de violência contra a mulher, pois o réu exerceu, no período em que a vítima foi submetida à sua vontade, poder sobre a ofendida. Na interpenetração dos dois diplomas legais, vislumbra-se a tortura-subjugação de gênero cujo pleno sentido típico substancia-se no mais alto grau de dominação da mente da mulher através do seu corpo. \nFIGURA QUALIFICADA PELO RESULTADO PREVISTA NO § 3º DO ARTIGO 1º DA LEI DE TORTURA . SUBSISTE O RECONHECIMENTO DA LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE\nNão há falar em afastamento da forma qualificada da tortura pela ausência de laudo pericial, uma vez que resta comprovada, pelo prontuário médico hospitalar assinado por médico, fotos e pela prova oral, a debilidade permanente (lesão de natureza grave) consistente na perda de dois dentes pela vítima, em razão das agressões perpetradas pelo acusado. Prova que se revela suficiente a atrair a incidência da qualificadora, nos termos do artigo 12 , § 3º da Lei Maria da Penha e de precedentes dos tribunais superiores.\nRECURSO DESPROVIDO.