DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. HOMICÍDIO QUALIFICADO POR MOTIVO FÚTIL E PELO USO DE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU OU DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA (ART. 121 , § 2º , INCISOS II E IV DO CP ). SENTENÇA DE PRONÚNCIA PROLATADA EM DESFAVOR DO RECORRENTE. PEDIDO ÚNICO DE DECOTE DA QUALIFICADORA DE MOTIVO FÚTIL. ACOLHIDO. AUSÊNCIA DE ELEMENTOS PROBATÓRIOS MÍNIMOS ACERCA DA CIRCUNSTÂNCIA AGRAVANTE. INEXISTÊNCIA DE PROVA DA SUPOSTA DISCUSSÃO, ENTRE O RÉU E A VÍTIMA, NO DIA ANTERIOR AO DELITO. MERA CONJECTURA A PARTIR DE DEPOIMENTOS DE TESTEMUNHAS BASEADAS EM ¿OUVIR DIZER¿, QUE NEM PRESENCIARAM O FATO NEM PUDERAM AFIRMAR A CERTEZA DE SUA OCORRÊNCIA. INEXISTÊNCIA DE QUALQUER ELEMENTO PROBATÓRIO QUANTO AO MOTIVO DO CRIME. MANUTENÇÃO DA QUALIFICADORA DE MOTIVO FÚTIL QUE NÃO ENCONTRA AMPARO NO CONJUNTO PROBATÓRIO DOS AUTOS. QUALIFICADORA QUE SOMENTE PODE SER AFASTADA QUANDO MANIFESTAMENTE IMPROCEDENTE OU DESCABIDA, QUE É O CASO DOS AUTOS. INTELIGÊNCIA DA SÚMULA N. 3 DO TJCE. AUSÊNCIA DE DÚVIDA RAZOÁVEL À DETERMINAR A INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DO IN DUBIO PRO SOCIETATE. EXCLUSÃO DA QUALIFICADORA QUE SE IMPÕE. DECISÃO DE PRONÚNCIA REFORMADA APENAS PARA DECOTAR A QUALIFICADORA DO MOTIVO FÚTIL, MANTIDA A PRONÚNCIA DO RÉU, POR HOMICÍDIO QUALIFICADO, PELO USO DE RECURSO QUE IMPOSSIBILITOU OU DIFICULTOU A DEFESA DA VÍTIMA (ART. 121 , § 2º , INCISOS IV DO CP ). RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Do pedido de decote da qualificadora de cometimento do crime por motivo fútil. Postula o recorrente, unicamente, a reforma da decisão recorrida no sentido de ser afastada, especificamente, a qualificadora do motivo fútil, por se verificar manifestamente improcedente, haja vista o desconhecimento do motivo do crime, alegando não prevalecer a fundamentação do juízo de que a motivação se daria por uma discussão no dia anterior, não se tendo produzido qualquer prova para fundamentar a existência de tal circunstância. Ademais, alega que o órgão de acusação não apresentou, em juízo, qualquer elemento que pudesse confirmar a motivação do crime, impondo-se a exclusão da referida qualificadora, haja vista prevalecer o entendimento jurisprudencial no STJ no sentido que a ausência de motivo ou o desconhecimento deste não permite qualificar o delito subjetivamente. 2. Acerca da decisão de pronúncia do acusado, dispõe o art. 413 do Código de Processo Penal que tal decisão deverá ser fundamentada na prova de materialidade do fato e nos indícios suficientes de autoria, limitando-se o Magistrado em indicar a configuração de tais requisitos com a devida indicação do dispositivo legal em que julgar incurso o réu, além de especificar eventuais circunstâncias qualificadoras e causas de aumento de pena. Desse modo, é cediço que a sentença de pronúncia constitui mero juízo de admissibilidade da acusação, tratando-se de decisão interlocutória não terminativa, razão pela qual, inclusive, face a sua própria natureza jurídica, não demanda arcabouço probatório robusto e prova incontroversa quanto às qualificadoras incidentes, elementos essenciais à condenação criminal, mas que não sejam aquelas manifestamente improcedentes ou descabidas. 3. De modo geral, a pronúncia do acusado, em relação às qualificadoras, não demanda a produção de elementos que tornem inequívocas suas circunstâncias fáticas ensejadoras, vez que, neste instante processual, não se permite ao juízo a apreciação aprofundada das provas ou mesmo a prolação de decisão com análise subjetiva acerca da configuração ou não das qualificadoras, restando ao magistrado apenas a indicação dos elementos indiciários que autorizam concluir pela incidência daquelas, cabendo ao Conselho de Sentença, no âmbito do Tribunal do Júri, decidir se a qualificadora aludida estaria configurada a partir dos elementos de provas constantes dos autos. 4. Assim, o conjunto probatório dos autos precisa fornecer apenas indícios suficientes acerca das qualificadoras apontadas na denúncia, merecendo destacar, ainda, que, neste momento processual, vige o princípio do in dubio pro societate, devendo eventuais dúvidas acerca da autoria delitiva serem dirimidas em sede de julgamento pelo Tribunal do Júri. Entretanto, esta compreensão não afasta a necessidade de uma produção mínima de elementos nos autos que permitam concluir pela ocorrência de circunstância qualificadora, não se permitindo a pronúncia do acusado com amparo em mera conjectura ou presunção acerca de fatos não comprovados minimamente nos autos. A exclusão de qualificadora na pronúncia somente é possível quando manifestamente improcedente e descabida e, não possuindo os autos indícios suficientes para submissão ao júri de respectiva qualificadora, afastá-la neste instante processual é medida que se impõe. 5. No caso concreto, a materialidade do delito restou justificada em sentença de pronúncia (fls. 177/180), pelo juízo de origem, a partir da prova inequívoca extraída do Laudo Cadavérico de fls. 57/61, o qual atesta de forma incontroversa que a vítima foi morta em decorrência das lesões causadas por disparo de arma de fogo, bem como evidenciou o magistrado a presença dos indícios de autoria a partir das declarações das testemunhas constantes nos autos (fls. 140, 150 e 159), que apontam o acusado/recorrente como sendo o autor do delito, inclusive uma testemunha ocular do fato (fl. 159), que presenciou o momento em que o acusado teria efetuado os disparos em desfavor da vítima. 6. Quanto às qualificadoras apontadas na peça acusatória (motivo fútil e uso de recurso que impossibilite ou dificulte a defesa da vítima), concluiu o juízo a quo por acolhê-las considerando ter o acusado agido em decorrência de uma discussão banal ocorrida no dia anterior e por ter usado de recurso que impossibilitou a defesa da vítima, em razão desta estar desarmada, sendo pega de surpresa e sem esperar o ataque repentino, fundamentando deste modo que as qualificadoras deveriam ser mantidas para que sejam julgadas pelo Conselho de Sentença, por não se mostrarem abusivas ou equivocadas. 7. A partir das alegações recursais e da fundamentação do juízo de origem para a manutenção das qualificadoras, vislumbra-se merecer acolhimento a insurgência recursal, que ora rebate, exclusivamente, a manutenção da qualificadora do motivo fútil. Em apreço da decisão de pronúncia, vê-se que o juízo a quo não fundamentou devidamente a manutenção da qualificadora do motivo fútil, apenas afirmando ter o acusado agido em decorrência de uma discussão no dia anterior, sem amparar-se em qualquer elemento mínimo de prova. Além disso, merece destacar que na decisão de pronúncia o próprio magistrado afirma ter se dado a instrução processual apenas com a coleta de depoimentos das testemunhas, encerrando a produção de provas logo em seguida, após o interrogatório do réu, o que se confirma a partir do termo de audiência de fl. 159. 8. Da análise dos depoimentos prestados em juízo, pelas testemunhas Germano Carlo Alves de Sousa (fls. 140) e Fátima Daiane da Silva Barros (fls. 150), verifica-se que nenhuma delas informou diretamente a motivação do delito, apenas fazendo menção de terem tomado conhecimento de uma suposta discussão ocorrida entre a vítima e o recorrente, no dia anterior, o que não constitui elemento mínimo para fins de evidenciar tal circunstância qualificadora. Além disso, a Testemunha ¿x¿ (fls. 159), cujos dados pessoais foram protegidos em feito apartado, embora tenha afirmado em procedimento policial (fl. 29) que a vítima e o recorrente haviam discutido anteriormente, não ratificou tal alegação em depoimento judicial, afirmando não saber o motivo do delito, mas apenas achar que ambos não se entendiam bem, havendo uma certa rixa entre os dois, sem saber o motivo disso ou se teria sido essa a motivação do crime 9. Desse modo, não há, por parte de nenhuma testemunha a afirmação concreta de ter o crime ocorrido em razão da suposta discussão, sequer afirmando-se qualquer delas a certeza da ocorrência de tal desentendimento ou mesmo terem presenciado tal fato. Pode-se, portanto, concluir que a pronúncia do réu, quanto a qualificadora do motivo fútil, decorreu de mera conjectura ou presunção, não se podendo afirmar, pelos elementos dos autos, qualquer motivação plausível ou minimamente comprovada. 10. Acerca da validade ou não do depoimento testemunhal baseado em ¿ouvir dizer¿, como elemento probatório mínimo, sedimentou a jurisprudência do C. Superior Tribunal de Justiça inexistir força probante suficiente, razão pela qual sequer pode ser pronunciado o réu quando amparado neste tipo de prova, podendo-se concluir que muito menos razoável seria a manutenção da qualificadora nestes mesmos termos. Neste sentido, afirmam os recentes precedentes da Corte Superior de Justiça que: ¿A compreensão de ambas as Turmas criminais do STJ tem se alinhado ao ponto de vista do STF - externado, especialmente, no julgamento do HC n. 180.144/GO - de que a pronúncia do acusado está condicionada a prova mínima, judicializada, na qual haja sido garantido o devido processo legal, com o contraditório e a ampla defesa que lhe são inerentes. [...] as instâncias ordinárias pronunciaram o réu baseadas em depoimentos colhidos no inquérito e em testemunho judicial de "ouvir dizer". Embora a referida testemunha indireta haja indicado seus informantes, conclui-se que o Ministério Público não se desincumbiu do ônus de comprovar as notícias trazidas por ela, pois a ele caberia diligenciar para que os referidos informantes fossem escutados pelo Juiz de Direito, sob o crivo do contraditório, a fim de confirmar a narrativa da testemunha judicial. [...] Importante rememorar que a primeira fase do procedimento bifásico do Tribunal do Júri tem o objetivo de avaliar a suficiência ou não de razões (justa causa) para levar o acusado ao seu juízo natural. O juízo da acusação (judicium accusationis) funciona como um filtro pelo qual apenas passam as acusações fundadas, viáveis, plausíveis e idôneas a serem objeto de decisão pelo juízo da causa (judicium causae), máxime porque, como sabido, os jurados decidem pelo sistema da íntima convicção, com base na interpretação e na apreciação das provas que entendam verossímeis.[...]¿ ( AgRg no AREsp n. 2.223.457/GO , relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 11/4/2023, DJe de 19/4/2023.) 11. Quanto à possibilidade de exclusão de qualificadoras em decisão de pronúncia, tem a jurisprudência emanada deste e. TJCE afirmado, pacificamente, que somente seria possível tal afastamento quando evidenciada a manifesta improcedência ou descabimento daquelas, o que ocorre quando os autos não fornecem elementos probatórios mínimos quanto às circunstâncias qualificadoras do delito. 12. Verificando-se, portanto, que a qualificadora do motivo fútil restou fundamentada, pelo juízo de origem, apenas no suposto cometimento do crime em decorrência de uma alegada discussão banal ocorrida no dia anterior ao delito, não encontrando tal fato amparo em lastro probatório mínimo no feito, vez que as únicas testemunhas ouvidas relatam apenas que ouviram dizer ter ocorrido tal discussão, sem afirmarem com certeza, sem terem presenciado tal fato ou mesmo informarem qualquer motivação para o crime, resta concluir que, neste caso específico, não se tem, minimamente, substrato probatório para se inferir, nem mesmo a título de dúvida razoável, a motivação do delito, não sendo possível a manutenção da qualificadora com amparo em mera conjectura. Não se tem elementos hábeis a se afirmar sequer que houve a prefalada discussão, muito menos razoável, portanto, considerar tal fato para fins de ocorrência da circunstância qualificadora. 13. Recurso conhecido e provido. Decisão de pronúncia reformada para excluir a qualificadora do motivo fútil. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acorda a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, por unanimidade, em conhecer do recurso e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Relatora. Fortaleza, 26 de maio de 2023 MÁRIO PARENTE TEÓFILO NETO Presidente do Órgão Julgador DESEMBARGADORA LIRA RAMOS DE OLIVEIRA Relatora