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4 de Maio de 2024

Teses/X Congresso Baiano do MP

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AMPEB - ASSOCIAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DA BAHIA

DIRETORIA

Presidente - Norma Angélica Reis Cardoso Cavalcanti

Vice-Presidente - Jânio Peregrino Braga

Diretor Secretário - Ana Paula Bacellar Bittencourt

Diretor Cultural - Gilberto Costa de Amorim Júnior

Diretor Administrativo - Edmundo Reis Silva Filho

Diretor Financeiro - Solon Dias da Rocha Filho

Diretor Social - Gildásio Galrão de Oliveira Neto

CONSELHO CONSULTIVO

Antônio Sérgio dos Anjos Mendes

Lygia Jabur Abud

Sônia Maria da Silva Brito

Manoel da Costa Filho (suplente)

CONSELHO FISCAL

Alexandre Soares Cruz

Marcos Almeida Coelho

Pedro Maia Souza Marques

Beneval Santos Mutim (suplente)

José Emmanuel Araújo Lemos (suplente)

Yuri Lopes de Mello (suplente)

Rua Boulevard América, 59, Jardim Baiano, 40.050-320, Salvador, Bahia.

www.ampeb.org.br - ampeb@ampeb.org.br

SUMÁRIO

DA FALTA DE CAPACIDADE POSTULATÓRIA DA AUTORIDADE POLICIAL EM MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO CRIMINAL: POR UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL DENTRO DE UMA PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL PÓS-MODERNA

Dioneles Leone Santana Filho ............................................................................

11

A ATUAÇÃO FISCALIZATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA LEI DE MANDADO DE SEGURANÇA E SUA CONFORMIDADE CONSTITUCIONAL

João Paulo Santos Schoucair ............................................................................

20

DA FALTA DE CAPACIDADE POSTULATÓRIA DA AUTORIDADE

POLICIAL EM MEDIDAS CAUTELARES NO PROCESSO CRIMINAL:

POR UMA APROXIMAÇÃO POSSÍVEL DENTRO DE UMA

PERSPECTIVA CONSTITUCIONAL PÓS-MODERNA

Dioneles Leone Santana Filho1

Promotor de Justiça - Porto Seguro/Ba

Sumário. 1. Notas preliminares. 2. Incursão histórica. 3. Acessoriedade do processo

cauteltar. 4. Imersão na visão constitucional do processo penal. 5. Linhas conclusivas.

"A vantagem de uma memória ruim é que pode

desfrutar as mesmas coisas boas como se fosse a

primeira vez" Friedrich Nietzsche.

1. Notas preliminares

Não quero que essas considerações sejam encaradas como uma espécie de "muro das

lamentações", quanto à atuação ministerial no processo cautelar na seara criminal. O que

proponho aqui é apenas uma forma de dar eficácia ao comando constitucional que confere

legitimidade ao Ministério Público a agir como propositor privativo da ação penal pública,

buscando olhar o processo penal utilizando a lente constitucional, numa necessária

filtragem, para se enfrentar os problemas criminais pós-modernos que se colocam a nossa

apreciação.

Percebo que apesar do Ministério Público ser legitimado ativo privativamente para propor a

ação penal pública, tal como exige as disposições normativas do Art. 129 , inciso I , da Lei Suprema, esse desiderato não vem sendo desempenhado em sua inteireza, pois as

medidas cautelares pré-processuais como: busca e apreensão; sequestro; arresto;

1 Membro do Ministério Público do Estado da Bahia, mestre em direito internacional pela UPAP e professor da Unisul-BA.

interceptação telefônica; quebra de sigilo fiscal e bancário; prisão preventiva; prisão

temporária; produção de prova antecipada - ad perpertuam rei memoriam (Art. 366, caput,

CPP), dentre outras, são, quase sempre, propostas pela Autoridade Policial diretamente a

Autoridade Judiciária, até mesmo ao arrepio do Ministério Público2. Entretanto, entendo que

falta capacidade postulatória, que é um dos pressupostos processuais subjetivos de

validade do processo, aos delegados de polícia, para requererem em juízo tais medidas,

impondo-se o necessário ajuste, devendo o Ministério Público passar assumir a titularidade

de tais pedidos, ainda que tardiamente. Explico melhor.

Na essência, o preceito do art. 13 , inciso IV , da Lei Processual Penal, encontra uma barreira

intransponível na Constituição Federal - CF , que conferiu novos contornos privativos à

atuação do parquet no processo penal pátrio.

2. Incursão histórica

Compreendo que o caráter assistemático do processo penal, decorre de uma anomalia

genética em seu nascedouro, tendo em conta que sua espinha dorsal está assentada num

viés de inspiração nitidamente autoritário, oriundo do período do então Presidente da

República Getúlio Vargas, que governava o país com mão-de-ferro, sendo esta norma que

institui o Código de Processo Penal , o Decreto-lei nº. 3.688 /41 - instrumento jurídico esse

utilizado pelo Poder Executivo de forma ilegítima, uma vez que usurpara a função do

Congresso Nacional, que havia sido fechado pelo próprio Governo Vargas3, e mesmo depois

de reaberto estava completamente submisso ao Poder Executivo, não estando alinhado com

os parâmetros constitucionais erigidos pela Carta Republicana de 1988, colorido com

matizes democráticos (e de seu caráter tolerante), pluralista e de respeito à dignidade da

pessoa humana, princípios estes estampados dentre aqueles batizados como fundamentais,

que erigem a estrutura de todo o Estado brasileiro.

Essa vertente autoritária, permeada desde o núcleo embrionário do Codex Instrumental

Repressivo, redundou em conferir a Autoridade Policial, que servia de sustentáculo ao

sistema, legitimidade para abrir processo por contravenções, seja por auto de prisão em

flagrante ou por meio de portaria, tal como ainda se encontra inserto no art. 26 do Código de

2 Cabe lembrar que a lei de interceptações telefônicas, por exemplo, não prevê hipótese de manifestação do

Ministério Público ao pedido intentado pela Autoridade Policial, só devendo ser cientificado o parquet da decisão

que conceder ou denegar tal pedido, muitas vezes, muito tempo depois, dado o assoberbamento de serviços nos

cartórios criminais.

3 Em que pese entenda o autor que o Decreto-lei nº. 3.688 /41 tenha sido recepcionado pela Constituição Federal

de 1988 com status de lei ordinária, tal como exige o art. 22, inciso I, do Texto Supremo.

Processo Penal - CPP , embora não se saiba o porquê que não foi revogado expressamente

pela recente reforma processual penal.

Todavia, é ponto pacífico, que não encontra respiradouro nos ares democráticos advindos

da Lei Fundamental vigente, ante a incompatibilidade patente entre os dois diplomas, e ante

o princípio da supremacia constitucional, podendo-se afirmar que tal dispositivo não foi

recepcionado pela Constituição da República, inclusive, tendo o Supremo Tribunal Federal

já decidido diversas vezes nesse sentido.

Esse mesmo caminho era trilhado nos processos referentes a lesões corporais leves, que

podiam ser iniciados pela autoridade judicial e policial, por meio de portaria ou auto de

prisão em flagrante, consagrado como procedimento judicialiforme, prestigiando um sistema

inquisitorial, onde se confundia a figura do acusador com a do julgador, além de

investigador, algo reminiscente na reforma processual penal, uma vez que preservou a

possibilidade do juiz se imiscuir na prova, tal como se encontra a nova redação do Art. 156

do CPP .

Destarte, tais paradigmas hoje estão superados, são páginas viradas na longa história do

processo penal brasileiro, inaugurou-se uma nova quadra, optando, nitidamente, o legislador

constituinte de 1988 por um sistema acusatório, onde não se misturam a função de

investigar, acusar e julgar. Pacificamente, a função de acusar cabe ao Ministério Público

(art. 129 , I , CF).

3. A acessoriedade do processo penal cautelar

É ponto incontroverso na doutrina processual de nosso país, que o processo cautelar é

acessório, e, como, de acordo com adágio assente no mundo jurídico, o acessório segue o

destino do principal, não vejo outro rumo a seguir, senão aquele que reconhece a

capacidade privativa postulatória ao Ministério Público, inclusive no âmbito referente ao

processo cautelar.

Impende notar, que o processo cautelar penal não está devidamente regulamentado em

nosso país, daí porque o Código de Processo Penal , diferentemente do Código de Processo Civil, não traz um livro exclusivo para tratar da matéria, sendo totalmente assistemático,

estando disciplinada a matéria em diversas leis, dentre elas a Lei nº. 7.960 /89, a Lei nº. 9.034 /94 (Art. 2º, inciso III), a Lei Complementar nº. 105 /01, Lei nº. 9.296 /96, e no próprio Código de Processo Penal , como, por exemplo, a prisão preventiva.

Elenca no capítulo reservado às provas, uma típica medida cautelar, que é a busca e

apreensão, tal como prevista no Art. 240 e seguintes da Lei Instrumental Repressiva,

quando deveria abrir espaço próprio para regulamentar a matéria. Assim também o faz com

as medidas cautelares de arresto, sequestro e hipoteca legal, tratando-as simplesmente de

"medidas assecuratórias", em caráter individual, mas não conformando contornos gerais

aplicáveis a todas as espécies de ações cautelares.

Também é matéria irrefutável na doutrina, que o processo cautelar seria um terceiro

gênero,4 dentre as espécies de processo, não se confundindo com o processo de

conhecimento e o processo executório, sem prejuízo de dar frutuosidade a ambos no futuro,

ou melhor, tem em mira resguardar direito subjetivo das partes, preservando-se bens,

objetos, depoimentos, declarações, até que tais questões sejam decididas no processo de

conhecimento ou executório (instrumento do instrumento nas palavras consagrada de Piero

Calamandrei).

4. Imersão na visão constitucional do processo penal

Tendo como março inaugural o dia 05 de outubro de 1988, ganha-se novas vestes e um

novo pensar o processo penal brasileiro, apontando a mudança em direção firme rumo à

finalidade de se concretizar um processo acusatório, mas sempre encontrando a natural

resistência a mudança pelos conservadores de plantão, portadores dos mais diversos

privilégios, mas esse é um caminho irreversível, impedindo de se voltar no tempo pelo

princípio que veda a proibição do retrocesso, tal como arquitetado pelo constitucionalista

português José J. Gomes Canotilho.

Pois bem, como cabe ao parquet acusar, entendo que deve saber o membro do Ministério

Público quais são os instrumentos que deve lançar mão para lastrear uma futura pretensão

punitiva estatal acusatória segura perante o Estado-juiz, traçando uma linha de

4 Em sentido contrário, registro, ex cathedra, o pensamento de CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 9, que discorda de tal posicionamento: "o processo cautelar, como se poderá ver, é um segundo gênero de processo, colocando-se em posição oposta à ocupada, em conjunto, pelos processos cognitivo e executivo. Isto porque estes dois tipos de processo podem ser reunidos num único gênero: o dos processos satisfativos, assim entendidos aqueles processos em que o desfecho final normal é capaz de permitir a realização do direito material. Tal realização se dá pela declaração da vontade do direito (processo cognitivo), ou pela realização prática do comando do direito substancial (processo executivo)."

Tal pensamento encontra guarida na lição do mestre Barbosa Moreira, que também vê o processo cautelar como um segundo gênero. Embora compreendendo e respeitando o posicionamento e as razões dos renomados mestres, entendo que tais parâmetros não sejam adequados ao processo criminal.

planejamento, ab initio, de colheita de provas que servirão de lastro para sustentar a

provável ação penal, participando ativamente da investigação criminal5.

Assim, não pode a Autoridade Policial requerer medidas cautelares diretamente a

Autoridade Judicial, muitas vezes, sem o necessário conhecimento do Ministério Público, a

pretexto de atrasar a expedição de mandado para cumprimento da medida cautelar, ficando

o órgão acusatório absorto dos contornos da linha investigativa traçada pela Autoridade

Policial, sem prejuízo de que toda investigação deverá desaguar, necessariamente, no

futuro, no órgão acusador6. E, pior, do Ministério Público entender que os rumos tomados

pela investigação foram equivocados, e, não poder requerer a colheita das provas que

entende sejam as indispensáveis a sustentar uma boa acusação, uma vez que o estado das

coisas encontra-se modificado, sendo o processo uma marcha visando atingir seu fim último

que é a sentença, sem retrocessos a fases suplantadas pelo tempo, em decorrência do

fenômeno processual da preclusão.

É que falta capacidade postulatória a Autoridade Policial, que não é parte no processo

penal, e está terminantemente proibida de advogar, tal como vaticina a Lei nº. 8.906 /94 em

seu art. 28, inciso V, o impede de desempenhar tal papel no processo penal moderno.7 E,

como enfatiza farta doutrina, a capacidade postulatória é falta de pressuposto processual

subjetivo de validade do processo8, devendo o juiz, ab ovo, indeferir tal pedido com

5 Compartilho da mesma linha de raciocínio desenvolvida pelo STJ, que deu origem ao entendimento sumulado

234: "A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu

impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia."

6 Outro problema grave que aponto, refere-se à falta de previsão legal de comunicação da prisão flagrante ao

Ministério Público. Embora tenha previsão na Lei Complementar Estadual nº. 11 , de 18 de dezembro de 1996,

que institui o Ministério Público do Estado da Bahia, entendo que tal previsão embora não seja inconstitucional,

dado a competência do Estado Federado para legislar sobre procedimento, tal como se encontra disposto no Art. 23, inciso XI, CF , é de todo inócua, pois a quase unanimidade os delegados de polícia desconhecem essa regra,

e, segundo, porque não existe nenhuma punição quanto ao seu descumprimento, sugerindo-se que ao Ministério

Público, por meio da sua Associação Nacional, que encaminhe anteprojeto de lei no sentido de incluir o

Ministério Público dentre aqueles órgão que devem ser comunicados da prisão em flagrante, servindo-se do

Senador Demóstenes Torres, DEM-GO, que é promotor de justiça licenciado naquele Estado, até mesmo porque

recentemente foi promulgada a Lei nº. 11.449 , de 16 de janeiro de 2007, acrescentando o § 1º ao Art. 306 , CPP ,

incluindo a necessária comunicação a Defensoria Pública, caso o flagranteado não decline o nome de seu

defensor. Nesse ponto, o promotor de justiça parece marido traído, é sempre o último a saber do ocorrido.

Registro aqui que trabalho com uma Juíza de Direito que ao receber os autos de comunicação da prisão em

flagrante, determina ao cartório que seja autuado, e imediatamente, concede vista ao Ministério Público, porém,

como defensor da ordem jurídica e do regime democrático, o Ministério Público não pode ficar a mercê da boa

vontade dos juízes.

7 Esclarece de forma profícua o tema Fredie Didier Jr.: "A capacidade postulacional abrange a capacidade de

pedir e responder. Têm-na os advogados regularmente inscritos na Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério

Público e, em alguns casos, as próprias pessoas não advogadas, como nas hipóteses do art. 36 do CPC , dos

Juizados Especiais Cíveis (causas inferiores a vinte salários mínimos), das causas trabalhistas e no habeas

corpus" in. Curso de direito processual civil. Teoria geral e processo de conhecimento. 6 ed. Salvador: Podivm,

2006, p. 208.

8 Por todos, trago a lume as palavras do precursor da matéria BÜLLOW, Oskar Von. Teoria das exceções e dos pressupostos processuais. Campinas: LZN, 2003, p. 58, com suas profícuas palavras: "O representante processual, segundo a fórmula, atua uma pretensão que embora na verdade originariamente pertencia a seu principal, na atualidade corresponde a ele mesmo; uma pretensão que, por meio do mandatum actionis, isto é, a transferência do direito de demandar, e pela listiscontestação foi transmitida do principal ao procurador. Quando o demandado, mediante uma exceptio procuratória -" ei non mandatum esse, ut debitum exigeret "[que não lhe

foi dado mandato que exija a dívida], questionava aquele transpasse da pretensão jurídica em litígio ao atual

fundamento no Art. 395, inciso II, da Cártula Adjetiva de Iras, que se aplica ao processo

cautelar em caráter subsidiário, dado o vácuo normativo nesse sentido.

E tanto a Autoridade Policial não possui capacidade postulatória, que se o Juiz indeferir tal

pedido, por exemplo, de uma decretação da prisão preventiva, não pode a Autoridade

Policial recorrer amparada no Art. 581, inciso V, CPP , utilizando a fórmula do recurso em

sentido estrito, pois caso se admitisse tal manejo pela Autoridade Policial estaria se

instituindo, para se usar a expressão criada pelo Presidente do Supremo Tribunal Federal

Gilmar Ferreira Mendes, e tão em voga ultimamente, um verdadeiro" Estado policialesco ".

Em tal caso, somente quem poderia recorrer é o Ministério Público, que é parte legítima no

processo penal cautelar, visando se desincumbir do encargo consignado no Art. 127, caput,

do texto constitucional , de defesa da ordem jurídica, exercendo uma necessária fiscalização

sobre os atos praticados pelo Estado-juiz, visando a pôr limites ao poder conferido ao

mesmo (sistema de freios e contrapesos - checks e balances).

É preciso inverter o ângulo que é analisado o processo penal brasileiro, sendo necessário,

em qualquer caso concreto, proceder-se à filtragem constitucional. Ante o princípio da

supremacia da Constituição , devemos filtrar a letra do Código de Processo Penal ao que

dispõe a nossa Lei Maior, e existindo incompatibilidade o intérprete não deve ter dúvida de

aplicar com prevalência os preceitos constitucionais, dado sua envergadura hierárquica.

Nesse segmento, invoco o escólio de Paulo Ricardo Scheir, que assim sedimenta a matéria:

"Com a filtragem constitucional fala-se da proeminência normativa da Constituição ,

pressupondo uma teoria da norma constitucional que compreenda a sua dimensão

normativa-linguística e também material"9.

Assevera ainda o ilustre autor:"Constituição enquanto sistema aberto de regras e princípios,

que permitirá pensar o Direito Constitucional em sua perspectiva jurídico-normativa em

diálogo com as realidades sociais, política e econômica".10

Dentro da perspectiva até aqui traçada, pode-se afirmar que a Constituição passa a ser o

filtro por onde passa a ser relida toda a ordem normativa infraconstitucional, incluindo a

processual penal, sem embargo de não existir hierarquia entre regras e princípios, e

lembrando que com a nova interpretação constitucional não significa abandono do método

subsuntivo, pois todo sistema de ponderação parte de uma base normativa, norma essa que

admite uma multiplicidade de interpretações, inclusive, a subsunção.

demandante; sua exceção era puramente uma de legitimação substancial". Em relação ao processo penal, o

Delegado de Polícia estaria a articular mera pretensão material e não processual.

9 SCHEIR, Paulo Ricardo. Filtragem constitucional. Construindo uma nova dogmática jurídica. Porto Alegre:

Sérgio Antônio Fabris Editor, 1999, p. 106.

10 Idem.

Especificamente, o Código de Processo Penal deve ser interpretado sempre em

consonância com os ditames constitucionais, sendo inaplicável naquilo que for colidente

com os mesmos. In casu, entendo que o dispositivo do art. 13, inciso IV, CPP , que confere

legitimidade aos Delegados de Polícia fazerem tais requerimentos de medidas cautelares,

não foi recepcionado pela Constituição de 1988, bem como vislumbro que as outras

previsões normativas que consignam tal legitimidade, acima citados em leis esparsas,

posteriores a Constituição padecem do vício de inconstitucionalidade, sob o aspecto

material, pois incompatível com o substrato que confere a legitimidade da ação penal ao

Ministério Público, não possuindo a Autoridade Policial o necessário jus postulandi,

devendo-se adequar o mundo do direito a realidade social e cultural que a ele permeia e o

condiciona.

5. Linhas conclusivas

O processo penal democrático brasileiro ainda se encontra em fase embrionária, existindo

um amplo espectro a avançar neste percurso, concluindo que seria um bom começo a

assunção da legitimidade postulatória ativa privativa nos processos cautelares criminais, por

parte do Ministério Público, nos crimes de ação penal pública. Todavia, devido ao fato que a

grande maioria da clientela criminal tem pouca visibilidade social, por circunstâncias óbvias,

não se tem percebido o necessário interesse por parte da política criminal pátria no sentido

de progredir para se intentar uma solução legislativa nesse sentido, que certamente urge.

Eventualmente, na hipótese de desídia ou inércia do membro do Ministério Público, tal

função caberia a vítima, porém, sempre secundado com o conhecimento do órgão

ministerial, que agiria como custus legis, assim como se verifica da ação penal privada

subsidiária, numa espécie de controle dos atos praticados pelos membros do Ministério

Público, podendo o parquet assumir seu desiderato posteriormente em caso de abandono

ou morte por parte da vítima.

Coerente com a linha de raciocínio aqui desenvolvida, entendo propícias as seguintes

proposições, tentando superar as mazelas e distorções de antanho, apontadas no corpo

deste trabalho, passando a se visualizar raízes que sedimentam um processo penal mais

consentâneo com um sistema acusatório:

1. Como o Procurador-Geral da República é um dos co-legitimados para propor a Ação de

Descumprimento de Preceito Fundamental - ADPF, que se refere à norma anterior a vigência da Constituição Federal em confronto com a mesma, disciplinado o procedimento

pela Lei nº. 9.882 /99, e dizendo respeito a um processo objetivo, manejando um dos

instrumentos do controle abstrato de constitucionalidade, deve-se perquirir a

incompatibilidade da vigência do art. 13, inciso IV, CPP , com o Art. 129, inciso I, CF ,

chegando-se a fatal conclusão da não recepção pelo texto constitucional de tal regra,

atribuindo a tal decisão eficácia erga omnes e efeito vinculante, podendo se atribuir um

efeito pro futuro, visando obtemperar os operadores do direito com o novo entendimento;

2. Enquanto isso, que seja formulado de um requerimento administrativo ao Conselho

Nacional de Justiça pelo órgão de classe do Ministério Público - CONAMP, para que

recomende aos Juízes de Direito que indefiram os requerimentos formulados por Delegado

de Polícia de pedido cautelares criminais, considerando a patente falta de capacidade

postulatória, que é pressuposto processual de validade do processo, com o intuito que seja

dado um passo efetivo na maturação de um processo penal acusatório;

3. Que seja elaborado pelo órgão de classe - CONAMP, um anteprojeto visando a se alterar

a legislação processual penal, no sentido de incluir o Ministério Público entre os órgãos que

a Autoridade Policial deve comunicar a prisão em flagrante, sob pena de crime de

desobediência, além da imposição de multa diária por dia da falta de comunicação ao

Ministério Público, a ser arbitrada pela Autoridade Judiciária, de forma motivada;

4. Elaboração de um anteprojeto de lei, visando a se conferir nova redação ao Art. 26 , CPP ,

aduzindo expressamente que a Autoridade Policial não possui legitimidade para a

propositura de qualquer pedido judicial, inclusive, os referentes a pedidos de medidas

cautelares penais afetos as suas atribuições;

5. Que os promotores de justiça no caso concreto, sempre que se manifestarem em

processos cautelares submetidos à sua apreciação, cujos pedidos tenham sido formulados

por Delegados de Polícia, requeiram o reconhecimento da falta de capacidade postulatória a

Autoridade Policial, pedindo que seja indeferido tal pedido cautelar em função da falta de

pressuposto processual subjetivo, necessário a formação válida do processo cautelar, na

forma do Art. 395, II, CPP , usado no processo cautelar de forma subsidiária. Ou para quem

entenda que o Ministério Público seja o dono da lide, ou seja, titular do direito da relação de

direito material discutida, já que é parte necessária e criada pelo legislador para se evitar a

vingança privada, pode requerer que seja reconhecida a ilegitimidade de parte, a

impertinência subjetiva da ação, parafraseando Alfredo Buzaid, que é condição da ação

penal, merecendo o mesmo destino, sendo indeferida a petição inicial cautelar, nos termos

do Art. 395, II, CPP , e, ainda que recebida, pode ser posteriormente contestado tal vício ante a ilegitimidade ativa da causa, que é motivo ensejador da nulidade prevista no Art. 564 ,

inciso II, CPP .

6. Todas as solicitações entendidas pela Autoridade Policial como fundamentais e

indispensáveis a elucidação da investigação, serão dirigidas fundamentadamente, e com

lastro probatório suficiente, ao Ministério Público, que entendendo pertinente, postulará tais

pretensões perante o juízo competente.

Por fim, os problemas que são apresentados diaadia para nós promotores de justiça por

esta sociedade de consumo pós-moderna, permeada por organizações criminosas em

número crescente e cada vez mais organizadas, merece uma resposta articulada do

aparelho estatal repressivo, devendo o Ministério Público assumir seu papel de requerer

provas cautelares na fase investigatória, muitas vezes em caráter indispensável, de forma

privativa, para uma melhor consecução dos objetivos traçados dentro de um planejamento

estratégico institucional e até mesmo de investigação. E, essa resposta, segundo penso, só

será conquistada quando o parquet conseguir agregar a colheita de provas que subsidiarão

a futura ação penal a ser proposta com o acompanhamento por completo da fase préprocessual

das medidas tomadas pela Autoridade Policial, direcionando as investigações

para resultados mais profícuos na fase processual, quando se dará o contraditório.

A ATUAÇÃO FISCALIZATÓRIA DO MINISTÉRIO PÚBLICO NA LEI DE MANDADO DE SEGURANÇA E SUA CONFORMIDADE

CONSTITUCIONAL

João Paulo Santos Schoucair11

Promotor de Justiça - Olindina/BA

"Quando as águas da enchente derrubam as casas,

e o rio transborda arrasando tudo, quer dizer que há

muitos dias começou a chover na serra, ainda que

não déssemos conta." Eraclio Zepeda

Síntese Dogmática: A presente tese, inserida na Área da Política Institucional e

Administrativa Interação corporativa e responsabilidade funcional como condições de

fortalecimento institucional, fulcra seu objetivo na demonstração da desnecessidade de

manifestação ministerial meritória em sede de mandado de segurança que não discuta

interesse social relevante ou individual indisponível, compatibilizando, assim, a Lei nº 1.533/51 com o novo perfil do Parquet, inaugurado pela Constituição Federal de 1988, o

que, frise-se, por oportuno, em momento algum, inviabiliza a vista pessoal dos autos, bem

como a deflagração de investigação para apuração de eventual improbidade administrativa.

I. Introdução

Como é cediço, o Ministério Público brasileiro, ao cumprir, com fidelidade, seu mister

constitucional de defender os pilares do Estado Democrático e de Direito, ganha, cada vez

mais, credibilidade e respeito do povo brasileiro. Ademais, aumenta também a

responsabilidade de prestar com eficiência e presteza a sua missão, de modo que o

11 Promotor de Justiça de Olindina/BA. Ex-Analista Judiciário do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Professor

de Direito Processual Penal da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais AGES. Pós-graduado em Ciências

Criminais pela Fundação Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Membro do Grupo Nacional de

Promotores de Justiça - GNPJ. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCrim e ao

Movimento Ministério Público Democrático. Endereço: Praça 14 de Agosto, s/nº, Fórum Des. Walter Brandão,

Centro, Olindina - Bahia. CEP.: 48.470-000. Tel.: 75 3436-1894 e 71 9972-5945. E-mail: jpsantos@mp.ba.gov.br e jongasantos@hotmail.com

redimensionamento de suas atribuições é temática que se coloca na pauta do dia, para a

garantia do crescimento da Instituição.

Ocorre, todavia, que tal debate, rotulado como a racionalização das atribuições ministeriais,

a qual se manifesta com mais efervescência na esfera cível, além de despertar uma mistura

do sentimento de paixão e do ódio, verso e reverso da mesma moeda, assim como o

choque de setores mais modernos com outros mais conservadores da Instituição,

entrincheira seus defensores na alça de mira dos órgãos correcionais e administrações

superiores ao redor do Brasil.

Dentro deste espectro de turbulência jurídico-institucional, exsurge a releitura constitucional

da atuação do Ministério Público em sede de mandado de segurança, que não envolva

direito social relevante ou individual indisponível, como uma das vias da mencionada

racionalização, razão essencial deste trabalho, o qual não tem o propósito de firmar

qualquer tipo de axioma, mas apenas de catalisar, humildemente, o qualificado embate

intelectual, a fim de flexibilizar velhos paradigmas, consolidando o fortalecimento de uma

Instituição que se almeja robusta e aguerrida.

II. Da leitura pré-constitucional das atribuições ministeriais em sede de Mandado de

Segurança

O Mandado de Segurança, à luz dos ensinamentos do mestre Hely Lopes, é o meio

constitucional, criado pela Lei nº 1.533 /51, posto à disposição de toda pessoa física ou

jurídica, órgão com capacidade processual, ou universalidade reconhecida por lei, para a

proteção de direito individual ou coletivo, líquido e certo, não amparado por habeas corpus

ou habeas data, lesado ou ameaçado de lesão, por ato de autoridade, seja de que categoria

for e sejam quais forem as funções que exerça12.

Outrossim, antes de restabelecer a ordem jurídica, supostamente violada, determina o

aludido Diploma Legal que o magistrado, franqueie vista dos autos ao presentante do

Ministério Público, a fim de que este se manifeste sobre a matéria, no prazo de 05 (cinco)

dias, in verbis:

Art. 10 - Findo o prazo a que se refere o item I do artigo 7º e ouvido o representante

do Ministério Público dentro em cinco dias, os autos serão conclusos ao juiz,

12 MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de Segurança. 31. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2008, p. 25-26.

independente de solicitação da parte, para a decisão, a qual deverá ser proferida em

cinco dias, tenham sido ou não prestadas as informações pela autoridade coatora.

O momento histórico que circundava a promulgação da Lei nº 1.533 /51, como assevera

Marcelo Zenkner, à época, a Constituição de 194613 , outorgava ao Ministério Público a

representação da União em juízo, podendo a lei cometer esse encargo, nas comarcas do

interior, ao Ministério Público local, situação que, repetida na Constituição de 1967, perdurou

até 1988.14

Neste contexto, percebe-se que o membro do Ministério Público, sob a ótica do modelo

constitucional vigente no período da criação da Lei do Mandado de Segurança , ao cumprir

sua tarefa de defensor dos interesses da Fazenda Pública, deveria exarar parecer

analisando o mérito de todos os mandados de segurança, como destaca Carlos Jatahy:

Com a promulgação da Constituição de 1946, o Ministério Público retornou ao texto constitucional em título próprio, após a organização das Justiças dos Estados (arts.

125 e 128), prevendo-se a Instituição tanto no âmbito federal como no estadual e sua

atuação nas Justiças Comum, Militar, Eleitoral e do Trabalho. Foram asseguradas

aos seus membros a estabilidade e inamovibilidade, além de ser outorgada, nessa

ocasião, a representação da União aos Procuradores da República, que podiam

delegar tais funções, nas comarcas do interior, aos Promotores de Justiça, numa

atuação de índole fazendária que somente foi afastada em 1988.15

III. Da evolução do mister ministerial com o advento da Magna Carta de 1988 e seu

descompasso com a Lei do Mandado de Segurança

É com a Carta Magna de 1988, que o Parquet ganha o status constitucional de Instituição

permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem

jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Nesta senda, contemplando a Lex Fundamentalis os anseios populares que eclodiam nas

ruas, foram guindados, como seus fundamentos, a soberania, a cidadania, a dignidade da

pessoa humana, o pluralismo político e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

13 Art. 126 , parágrafo único , da Constituição Federal de 1946.

14 ZENKNER, Marcelo. Ministério público e efetividade do processo civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006,

p. 174.

15 JATAHY, Carlos Roberto de C. O ministério público e o estado democrático de direito: perspectivas

constitucionais de atuação institucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 22.

Foram eleitos, ademais, como objetivos fundamentais, pela Carta de Outubro a construção de

uma sociedade livre, justa e solidária; a garantia do desenvolvimento nacional; a erradicação

da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais; e a promoção do bem de todos,

sem qualquer tipo de discriminação, na expectativa de tornar o Brasil do futuro uma potência

do presente.

Não se limitando, contudo, a anunciar metas para a construção de um novo Brasil, confiou a

Norma Maior ao Ministério Público a missão de pautar sua atuação em busca de tais ideais,

utilizando o Direito como instrumento de transformação social. Tratado de forma mais

sistemática e adequada, estava o Parquet posto para participar, na definição de Marcelo

Goulart, "efetivamente do processo democrático, alinhando-se com os demais órgãos do

movimento social comprometidos com a concretização dos direitos já previstos e a

positivação de situações novas que permitam o resgate da cidadania para a maioria

excluída desse processo"16.

O Ministério Público passou a estar, a partir de então, dissociado de qualquer dos três

Poderes, sendo-lhe concedida a iniciativa legislativa de criação e extinção de cargos e a

fixação de vencimentos. Deferida, ainda, foi a capacidade de se auto-organizar, por meio de

estatuto próprio, bem como de elaborar seu projeto orçamentário e de participar, ativamente,

com a formulação de lista tríplice, da escolha de sua liderança, nos Estados e Distrito

Federal, pelo Chefe do Poder Executivo.

Assim, criados estavam os mecanismos idôneos a amparar o Ministério Público a assumir o

papel mais importante de sua história, como assevera Celso Bastos:

Nenhuma das Constituições pretéritas deu ao Ministério Público o tratamento

extensivo de que goza na Constituição de 1988. E não é de minúcias de que se trata.

Mas sim de revesti-lo de prerrogativas e competências inéditas no passado.

O Ministério Público tem sua razão de ser na necessidade de ativar o Poder

Judiciário, em pontos em que este remanesceria inerte porque o interesse agredido

não diz respeito a pessoas determinadas, mas a toda coletividade.17

No mesmo sentido, pontifica Afonso da Silva:

O Ministério Público vem ocupando lugar cada vez mais destacado na organização

do Estado, dado o alargamento de suas funções de proteção de direitos

indisponíveis e de interesses coletivos. A constituição de 1891 não o mencionou,

16 GOULART, Marcelo Pedrosa. Ministério público e democracia - teoria e práxis. São Paulo: Editora de direito,

1998, p. 141-142.

17 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 14. ed. São Paulo, 1992, p.339.

senão para dizer que um dos membros do Supremo Tribunal Federal seria

designado Procurador-Geral da República, mas uma lei de 1890 (de n. 1030) já o

organizava como instituição. A Constituição de 1934 o considerou como órgão de

cooperação nas atividades governamentais. A de 1946 reservou-lhe um título

autônomo, enquanto a de 1967 o incluiu numa seção do Poder Judiciário e a sua

Emenda 1 /69 o situou entre os órgãos do Poder Executivo. Agora, a Constituição lhe

dá relevo de instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado,

incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses

sociais e individuais indisponíveis. 18

Habilitado pela Constituição Cidadã a atuar nos mais variados ramos do direito, deixou o

Parquet de carregar apenas as marcas das emblemáticas figuras do Promotor do Júri, na

esfera criminal, e do Promotor Fiscal da Lei, na área Cível, como carta de apresentação. A Constituição Federal , de forma exemplificativa, nos nove incisos do art. 129 , abriu o leque

de atuação do Ministério Público, sendo seguida por farta legislação infraconstitucional que

regulamentou outras atribuições19.

Os ventos democráticos consolidaram, destarte, o Ministério Público como defensor da

sociedade, credenciando-o a agir em prol do meio ambiente, dos direitos constitucionais do

cidadão, do consumidor, das pessoas portadoras de deficiência, da criança e do

adolescente, do idoso, da defesa da moralidade e do patrimônio público, dentre outros.

Verdadeiro agente de transformação social, o Órgão Ministerial dialoga com os demais

Poderes e parcelas da sociedade nas audiências públicas, ajusta as condutas tidas como

incompatíveis com a ordem jurídica, por meio da celebração de termos de ajustamento, e

instaura procedimentos administrativos para subsidiar o eventual ajuizamento de ação civil

pública, na defesa dos interesses sociais relevantes. Na luta pelo meio ambiente

equilibrado, por uma educação de qualidade, por uma prestação satisfatória dos serviços de

saúde, por um sistema de segurança pública que proteja o cidadão, velando pela dignidade

dos encarcerados; pela implementação de políticas públicas que, efetivamente, tutelem a

criança e o adolescente, em síntese, na esperança de construir de um país melhor reside a

razão de ser do Ministério Público.

Tendo que se colocar, muitas vezes, contra os interesses dos demais Poderes

Republicanos, no incessante controle pelo correto gerenciamento da coisa pública, aduz

18 SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 24. ed., São Paulo: Malheiros, 2005, p. 597-598. 19 Lei nº 7.853 /89; Lei nº 7.913 /89; Lei nº 8.625 /93; LC nº 75 /93; Lei nº 8.078 /90; Lei nº 8.069 /90; Lei nº 8.864 /94 entre outras.

Antônio Ferraz que o Ministério Público "assume o papel de verdadeiro ombudsman"20,

manejando as medidas judiciais e extrajudiciais a fim de zelar pelo efetivo respeito dos

Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública.

O Ministério Público brasileiro vira, desta forma, a página de sua história, deixando para trás

um passado de subserviência aos interesses do Estado, de mero apêndice dos governos

militares, para, hoje, assumir um papel fundamental na defesa do Estado de Direito

Concretizador.

Desse modo, vislumbra-se, de forma cristalina, que a obrigatória manifestação ministerial

sobre o mérito do mandado de segurança, em qualquer tipo de interesse jurídico violado,

não se compatibiliza com o novo modelo de Ministério Público inaugurado pelo Manto

Constitucional de 1988.21 IV. Da releitura constitucional da função do custos legis descrita na Lei nº 1.533 /51

Não se deve olvidar que todo exercício hermenêutico reclama uma atividade contínua de

superação de entendimentos que se contrapõem com o passar do tempo. A interpretação do

direito não é mera dedução lógica dele, "mas sim processo de contínua adaptação de seus textos

normativos à realidade e seus conflitos"22, por conta disso há de se reler toda a atuação do

Ministério Público como custos iuris, a lume do seu perfil constitucional hodierno.23

Sendo assim, impõe-se seja realizada uma filtragem constitucional acerca da necessidade

da intervenção ministerial sobre o mérito arremessado no mandado de segurança, ex vi do

disposto no art. 10 da Lei nº 1.533 /51, compatibilizando-a com o paradigma constitucional

outorgado à Instituição, sob pena de recolocá-la numa realidade que não deixou saudades,

como destila Luís Barroso:

20 FERRAZ, Antônio Augusto Mello de Camargo (Coord.) Ministério público: instituição e processo. São Paulo:

Atlas, 1997, p. 21.

21 Interessante destacar que tramita, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 72 /2003, de autoria do Deputado

Federal Dimas Ramalho, propondo a modificação do art. 10 da Lei nº 1.533 /51: "Findo o prazo a que se refere o

inciso I do caput do art. 7º, será aberta vista dos autos ao representante do Ministério Público, que, no prazo de 5

(cinco) dias, entendendo presente o interesse público, coletivo, difuso ou individual indisponível, proferirá seu

parecer, após o que, independente de solicitação da parte, os autos serão conclusos ao juiz para sentença, a qual

deverá ser proferida em 5 (cinco) dias, tenham sido ou não prestadas as informações pela autoridade coatora."

22 GRAU, Eros. Ensaio e discurso sobre a interpretação e aplicação do direito. 4. ed. São Paulo: Malheiros

Editores, 2006, p. 132.

23 MOURA, Millen Castro Medeiros de. A adequação do custos iuris ao novo perfil ministerial. Jus Navigandi,

Teresina, ano 12, n. 1767, 3 maio 2008. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=11242.Acesso em 09/03/2009.

É preciso atentar, aqui, que, embora o texto da norma recepcionada permaneça o

mesmo, poderá ela merecer leitura e interpretação diversas, quando o novo

ordenamento esteja pautado por princípios e fins distintos do anterior. Retomando

lição de Kelsen, também Norberto Bobbio doutrinou a respeito: "O fato de o novo

ordenamento ser constituído em parte por normas do velho não ofende em nada o

seu caráter de novidade: as normas comuns ao velho e ao novo ordenamento

pertencem apenas materialmente ao primeiro; formalmente, são todas normas do

novo, no sentido de que elas são válidas não mais com base na norma fundamental

do velho ordenamento, mas com base na norma fundamental do novo. Nesse

sentido falamos de recepção, e não pura e simplesmente de permanência do velho

no novo. A recepção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e torna

suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem

materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com repito à forma".24

Com autoridade na matéria, assim sustenta Lênio Streck:

Sendo o texto constitucional , em seu todo, dirigente e vinculativo, é imprescindível ter

em conta o fato de que todas as normas (textos) infraconstitucionais, para terem

validade, devem passar, necessariamente, pelo processo de contaminação

constitucional (banho de imersão, se se quiser usar a expressão de Liebman, ou

filtragem constitucional, no dizer de Clève). O juiz (e o operador jurídico lato sensu)

somente estará sujeito à lei enquanto válida, quer fizer, coerente com o conteúdo

material da Constituição . Não se deve olvidar com Ferrajoli, que é relativamente fácil

delinear um modelo garantista em abstrato e traduzir seus princípios em normas

constitucionais dotadas de claridade e capazes de deslegitimar, com relativa certeza,

as normas inferiores que se apartem dele. Mais difícil, acrescenta, é modelar

técnicas legislativas e judiciais adequadas para assegurar a efetividade dos

princípios constitucionais e os Direitos Fundamentais consagrados por eles.25

Com efeito, o parecer abordando o mérito do mandamus somente se evidencia cabível

quando postos em discussão interesses sociais e individuais indisponíveis, moldura

constitucional que norteia a atuação do Parquet. Dessa maneira, evita-se o entrave

institucional que seria causado com a manifestação meritória em milhares de casos sem

alcance social, tão-somente por terem sido manejados pela via mandamental, subvertendo a

ordem jurídica vigente, como reforça Emerson Garcia:

24 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da constituição : fundamentos de uma dogmática

constitucional transformadora. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 126.

25 STRECK, Lênio Luiz. Hermenêutica jurídica e (m) crise. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.254.

Nessa linha, a única forma de defender a recepção do art. 10 da Lei nº 1.533 /1951

pela Constituição de 1988 é reconhecendo que (1) em face da especial qualidade do

autor do ato ilícito impugnado, qual seja, o Poder Público (lato sensu), o Ministério

Público deve ser intimado em todos os processos de mandado de segurança, e (2)

uma vez intimado, deve avaliar a presença de interesse específico que justifique a

sua intervenção e, eventualmente, permita a responsabilização pessoal do infrator.

De cogente, tem-se a necessidade de intimação, não a imperativa atuação.

Parece evidente que a mera ilegalidade do ato não é suficiente para justificar a

intervenção do Ministério Público, isto sob pena de a Instituição ser obrigada a atuar

em todo e qualquer processo judicial. Não bastante isto, seria de todo incoerente

defender que, após o decurso do lapso decadencial de 120 (cento e vinte) dias para

a impetração do mandado de segurança, o mesmo direito, acaso defendido pelas

vias ordinárias, dispensaria a intervenção do Ministério Público. Afinal, o que define a

necessidade de intervenção do Ministério Público? O rito seguido ou a natureza do

interesse que se pretende tutelar?26

No mesmo trilhar, caminha Hugo Mazzilli:

É indispensável ter em conta o atual perfil constitucional do Ministério Público e

recusar sua intervenção em hipóteses em que, embora exigidas pelo ordenamento

jurídico anterior, tal intervenção não mais se justifique, como no processo para

avaliação de renda e prejuízos decorrentes de autorização para pesquisa mineral

(Dec-lei n. 227 /67), ou em mandados de segurança ou procedimentos de jurisdição

voluntária que não envolvam questões de efetivo interesse social. [...] a

jurisprudência e a doutrina têm entendido necessário que, nessas hipóteses, o

Ministério Público concilie sua atuação com a efetiva defesa de interesses sociais.

Assim, deve o Ministério Público intervir nos procedimentos de jurisdição voluntária

quando haja incapazes ou questão de estado; deve defender interesses individuais

homogêneos quando tenham suficiente expressão para a coletividade. [...] Tomemos

outro exemplo. Menciona a lei a necessidade de intervenção do Ministério Público

nas ações de usucapião de bem imóvel; entretanto, visando a adequar a atuação à

sua destinação institucional, tem-se entendido que ele só deva oficiar neste tipo de

ação quando estiverem em jogo interesses sociais ou individuais indisponíveis. Em

face da nova gama de atribuições do Ministério Público, a ele conferidas na

26 GARCIA, Emerson. Ministério público: organização, atribuições e regime Jurídico. 3. ed. Rio de Janeiro, 2008,p.336. Constituição de 1988, é necessário, pois, repensar sua atuação na esfera civil, dando

enfoque à expressão social do interesse controvertido.27

Numa leitura com os olhos voltados para a Carta Política , infere-se que o Órgão de Execução

deve tomar conhecimento do pedido de Segurança para, numa análise inicial, verificar se há

necessidade de algum pronunciamento de mérito e, em sendo tal juízo positivo, manifestar-se

apenas sobre os interesses sociais ou individuais indisponíveis em discussão.

Por conseguinte, não havendo qualquer tipo de interesse social ou individual indisponível em

jogo, a justificar a efetiva intervenção ministerial, deve o representante do Ministério Público,

desempenhando verdadeiro dever ético-funcional, abster-se, fundamentadamente, de opinar

nesses feitos, como sobreleva Sérgio Ferraz:

Lemos, recentemente, parecer (ao que saibamos, inédito), lançado em 14.3.2003

pelo Promotor de Justiça em Mogi da Cruzes, Dr. Fernando Oliveira de Castro (no

MS 02 /03, da 2ª Vara Cível de Mogi das Cruzes), preconizando que o Ministério

Público só deva intervir em mandado de segurança, após a constituição de 1988, em

caráter excepcional, quando se vislumbrar, na discussão, relevante interesse social,

meta-individual. A observação, de lege ferenda, parece-nos impecável. E merece ser

levada em conta numa eventual reformulação das leis pertinentes ao tema.28

Outro não é posicionamento de Jairo Moreira:

Antes da Constituição Federal de 1988, a jurisprudência sempre direcionava para a

obrigatória intervenção do Ministério Público no mandado de segurança, sob pena de

nulidade. Atualmente, tal cenário apresenta-se modificado.

[...]

Conclui-se, portanto, que o Ministério Público somente deverá intervir no tocante ao

mérito, analisado caso a caso, se o mandado de segurança envolver algum dos

fundamentos que justificam o agir institucional consoante sua função

constitucionalmente prevista.29

Neste diapasão, têm se manifestado os Tribunais e o Conselho Nacional do Ministério

Público:

27 MAZZILLI, Hugo Nigro Mazzili. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo. 16 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p.

79-80.

28 FERRAZ, Sérgio. Mandado de segurança. São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 304.

29 MOREIRA, Jairo Cruz. A intervenção do Ministério Público no Processo Civil à luz da Constituição . Belo Horizonte: Del Rey, 2009, p. 176-179.

AGRAVO DE INSTRUMENTO. MANDADO DE SEGURANÇA. INTERVENÇÃO DO

MINISTÉRIO PÚBLICO. AUSÊNCIA DE INTERESSE PÚBLICO.

DESNECESSIDADE DE EXAME DO MÉRITO. 1. Nas ações de mandado de

segurança, é obrigatória a intimação do Ministério Público, forte no que dispõe o art. 10 da Lei 1.533 /51, sob pena de nulidade do processo. 2. O representante do

Ministério Público, entretanto, não está obrigado a opinar sobre o mérito da causa,

naquelas ações em que não se evidencie a presença de interesse público a justificar

a intervenção do parquet30.

Essa matéria é extremamente controvertida, pois tanto a doutrina como a

jurisprudência atual, admitem a necessidade que realize uma nova interpretação do

art. 10 da Lei n. 1533 /51, que prevê, indiscriminadamente, a participação do

Ministério Público em todos os processos de Mandado de Segurança, adequando-a

a Constituição Federal de 1988 que, nos seus artigos 127 e 129 , condicionou a

atribuição ministerial, tanto no âmbito judicial como extrajudicial, à existência de

interesses sociais ou individuais indisponíveis.31

Por fim, não se deve perder de vista que impera, a divergência de posicionamento entre os

Ministérios Públicos dos Estados32 e o da União33, predominando o entendimento de que é

obrigatória a efetiva manifestação de mérito dos membros do Ministério Público nas ações

de mandado de segurança, sob pena de processo administrativo disciplinar34, postura

desconectada, data maxima venia, do modelo ministerial formatado pela nova ordem

constitucional.

Adotando-se tal entendimento, chegar-se-ia, permissa venia, a inusitada situação em que,

optando a parte pela via mandamental para defender seu direito, haveria exigência do

pronunciamento do Promotor de Justiça, ao passo que, preferindo o procedimento ordinário

para o mesmo objeto, a manifestação ministerial tornar-se-ia dispensável, como se o

interesse público dependesse do rito procedimental escolhido.

30 TRF 4ª Região, 1ª T., Agr. de Inst. nº 1999.04.01.128755-6/SC, rel. Juíza Federal Lucina Amaral Corrêa, j. em

13.12.01.

31 CNMP, Proc. Nº 0.00.000.000022/2005-92, rel. Conselheiro Osmar Machado Fernandes, DJ 21.10.05, p. 574.

32 Aquilatando entendimento conforme a Constituição , o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios

garante que cada o Órgão de Execução avalie, caso a caso, a existência ou não da pertinência da intervenção

ministerial no mandado de segurança, nos termos da Resolução nº 087 /2008 do seu respectivo Conselho

Superior.

33 Com pensamento de vanguarda, o então Procurador-Geral da República, o Dr. Cláudio Fonteles, posicionouse,

no Proc. PGR nº 6599/2003-91, da seguinte forma: "Ementa: 1. O Ministério Público na ação mandamental

não tem o dever de, sempre, enfrentar o mérito da controvérsia: considerações. 2. Deve, sim, manifestar-se

sempre, e motivadamente, em juízo necessariamente prévio, sobre se a demanda posta significa controvérsia

sobre interesse social, ou individual, indisponível, ou não. Negada a presença do interesse indisponível, o feito

segue sem a sua intervenção, restringindo-se a res in iudicium deducta a litígio estrito entre os que postulam."

34 Este é o entendimento sufragado na Resolução nº 010 /2003 do Egrégio Colégio de Procuradores de Justiça do Estado da Bahia.

V. Conclusões

Diante do exposto, com lastro nos fundamentos arremessados, conclui-se, numa

interpretação sintonizada com o atual perfil constitucional do Ministério Público, que:

1. É desnecessária a manifestação ministerial meritória em sede de mandado de segurança

que não discuta interesse social relevante ou individual indisponível;

2. Intocada fica a vista pessoal dos autos, a fim de que o Órgão de Execução possa avaliar,

em cada caso concreto, a pertinência ou não de sua intervenção;

3. Constada eventual violação à Lei de Improbidade Administrativa , quando da análise

pessoal dos autos pelo Ministério Público, deverão ser adotadas as providências cabíveis

para a competente apuração.

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