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Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor

Responsabilidade Civil dos Hospitais: Código Civil e Código de Defesa do Consumidor

3. Perda de Uma Chance de Cura ou Sobrevivência e Responsabilidade Civil Médico-Hospitalar

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3.1. Introdução

As transformações da responsabilidade civil se direcionam, mais e mais, para a adoção de modelo distanciado da imputação do dever de indenizar mediante aferição da culpa.

Essa tendência se verifica em todos os domínios da responsabilidade civil, sobretudo porque, na voragem mutacional do mundo moderno, novos riscos surgem a cada instante. E não se pode deixar dano sem reparação. Daí a busca de meios que garantam indenização, à outrance, ora se afastando o conceito de culpa, ora se elastecendo o nexo causal, ou se instituindo fundos que assegurem indenização a todos os lesados, máxime quando o ofensor não dispõe de recursos para responder pelo dano a que deu causa (sobretudo nas reparações de danos ex delicto).

Aponta-se a “erosão dos filtros tradicionais da reparação”, com alusão ao ocaso da culpa e ao debate em torno da amenização do rigorismo da noção de nexo causal. 1

No caso específico da responsabilidade pessoal do médico, devido à inafastável álea terapêutica, a exclusão desse fator subjetivo de imputação – a culpa – é inviável. Isso porque, para se compelir o médico a reparar dano decorrente da sua atividade, é mister verificar-se, com exatidão, a presença da culpa stricto sensu, em qualquer das suas modalidades (imperícia, negligência ou imprudência), bem como do nexo causal e do alegado dano.

Ao que se depreende das notas introdutórias da coletânea de jurisprudência acerca da responsabilidade civil médica, elaborada pelo Gabinete dos Juízes Assessores do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, a sociedade, em terras lusitanas, acorre ao Judiciário, em busca de reparação de quaisquer danos: 2

Estamos hoje perante uma sociedade particularmente sensível aos interesses dos consumidores e mais exposta aos riscos e aos danos, o que nos conduz a modelos de responsabilidade aplicáveis ao exercício de certas actividades consideradas perigosas.

Em matéria de responsabilidade civil por actos médicos, tem-se entendido que a actuação do médico, e o não cumprimento pelo mesmo dos deveres de cuidado e protecção a que está obrigado pode ser causa de responsabilidade, tanto contratual (na medida em que viola deveres laterais a que está contratualmente obrigado), como delitual (na medida em que a referida violação representa igualmente um facto ilícito extracontratual), podendo inclusive ser causa simultânea das duas apontadas modalidades de responsabilidade civil.

Passada mais de uma década sobre a proposta de Directiva Comunitária relativa à responsabilidade do prestador de serviços, impõe-se um périplo sobre a actividade decisória do Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, no que concerne à dicotomia obrigação de meios versus obrigação de resultados, com especial acuidade nos casos de cirurgia estética, à problemática da responsabilidade prevalecente e à qual deve o lesado recorrer quando a violação configure não só um ilícito contratual, mas igualmente extracontratual, à questão da prova e da repartição do seu ónus, à ligação positiva entre a lesão e o dano e ao consentimento esclarecido e âmbito do dever de informação.

A actualidade, cada vez mais presente, do tema e a riqueza da actividade decisória do Supremo Tribunal de Justiça justificam só por si, se outras razões não houvessem, a elaboração do presente caderno temático.

Isso porque há danos que advêm de causas endógenas, atribuíveis a reações do organismo do paciente, maior ou menor eficácia curativa da medicação – também decorrente de fatores idiossincrásicos, debilidades congênitas ou resultantes da própria enfermidade – e até mesmo de reações psíquicas do doente.

Tanto em Portugal, quanto no Brasil, os cidadãos têm-se tornado cada vez mais exigentes com a qualidade dos serviços médicos. 3

Compatibilizar medicina de massa, avanços tecnológicos, custo dos cuidados médicos – e, especialmente no Brasil – as gravíssimas deficiências da saúde pública, é tarefa hercúlea, que beira à impossibilidade.

Mais e mais, a judicialização da Medicina exsurge como circunstância inarredável.

Pacientes lesados buscam o Judiciário – mas, como adverte Vera Lúcia Raposo, “o efeito adverso não se confunde com o erro médico e, muito menos, com a falta médica”. 4 Hoje, existem no Brasil mais de 600 mil ações relacionadas a direito de saúde em tramitação. O número de processos judiciais no Superior Tribunal de Justiça sobre o tema “erro médico” aumentou 1.600% entre 2000 e 2012. Segundo números coletados nos sites dos TJs e do STJ, entre 2000 e 2015, as demandas judiciais sobre saúde têm crescido, em média, 350% nos tribunais estaduais. 5 Estima-se que atualmente 7% dos profissionais da medicina, em atividade, respondem a processos indenizatórios 6 .

O exercício da arte médica envolve os médicos em frequentes riscos para combater as doenças. O resultado do tratamento não depende apenas de seus conhecimentos científicos e competência. Depende, igualmente, das características pessoais do doente, da eficácia dos medicamentos e de toda sorte de fatores imprevisíveis inerentes à atividade curativa. O dano resultante do ato médico não é, necessariamente, decorrente de culpa médica.

O resultado danoso ocorre, nesses casos, independentemente da participação causal do médico – e o profissional não poderá ser responsabilizado e compelido a reparar.

Mas não se pode olvidar que a saúde é bem essencial, como afirmam Maria João Estorninho e Tiago Macieirinha. Referidos autores apontam a identificação da saúde “como bem fundamental de todo ser humano, indispensável à afirmação de sua dignidade e de cuja responsabilidade a comunidade política não se pode afastar”. 7

Entretanto, mesmo no âmbito da responsabilidade estritamente subjetiva, surgem teorias – logo transpostas para a jurisprudência, que amenizam o rigorismo da aferição da conduta médica, com a finalidade de identificar eventual culpa. Exsurgem daí as presunções de culpa – e, no domínio da causalidade, o conceito de chance, cuja perda é erigida em dano autônomo.

Propusemo-nos, neste trabalho, a examinar a teoria da perda de uma chance de cura ou sobrevivência, na responsabilidade médica, em Portugal, no Brasil e em França.

François Chabas identifica a perda de uma chance como prejuízo autônomo, com causalidade e mensuração próprias, ao passo que o prejuízo final – morte, invalidez, lesões – resultaria dissociado daquele outro dano, tido como intermediário.

No momento em que o paciente perde, por exemplo, uma possibilidade de sobrevivência, o prejuízo não é a morte. É a desaparição de um simples potencial de possibilidade. (...) A culpa do médico (acaso existente) não causou a morte. Determinou a perda da chance. 8

Os bens jurídicos, portanto, são diversos – por existirem, consoante elucida Rute Teixeira Pedro,

A partir da faute do médico, duas relações causais unindo distintamente essa faute, uma à perda de chance, outra à morte ou à invalidez, quer dizer, a cada um dos dois prejuízos claramente individualizados. O primeiro prejuízo apura-se com certeza – sem o erro médico, as chances de sobrevivência ou de cura seriam superiores em x% – ainda que o segundo seja incerto – não se sabe se, sem aquele erro e com as possibilidades de sobrevivência ou cura intactas, o doente teria sobrevivido ou se se teria curado. Não há, assim, segundo essa perspectiva, quanto ao dano da perda de chance, qualquer desvio do esquema tradicional da responsabilidade civil: existe, apenas, a identificação e consideração de uma outra espécie. 9

É facilmente perceptível a noção de chance, como valor autônomo, destacado do conceito de prejuízo ou vantagem final. O exemplo que diversos autores lembram, para clarificar a distinção, é o famoso caso do fundista brasileiro Vanderley Cordeiro de Lima, nascido em Cruzeiro do Oeste, Paraná, nas Olimpíadas de Atenas, em 2004. Vanderley liderava a prova, com quase 30 segundos de vantagem sobre o segundo colocado. Faltando cerca de 7 km para o final, um louco, o ex-padre irlandês Cornelius Horan, invade a pista, arranca Vanderley do percurso, empurra o brasileiro para a calçada e quase o derruba, impedindo-o de prosseguir. Um espectador grego ajuda o maratonista a se desvencilhar e voltar para a corrida. Após aquela inesperada paralisação, que durou cerca de 20 segundos, Vanderley termina a prova em terceiro lugar. A medalha de ouro ficou para o italiano, e a de prata, para o corredor norte-americano. O brasileiro terminou 1’16” atrás do italiano e 42” de conquistar a prata. Não se pode afirmar, em sã consciência, que nosso representante venceria a maratona, sobretudo porque os adversários vinham ganhando terreno, antes do incidente. Mas ninguém poderá negar que a brusca interrupção, além da perda de tempo, provocou abalo psicológico, desconcentração, prejuízo ao ritmo de corrida – ou seja, fizeram com que Vanderley perdesse, sem dúvida, uma chance de chegar em primeiro lugar.

Sobre o tema, elucida Daniel Amaral Carnaúba:

(...) A vítima tinha uma expectativa, incerta, de obter uma determinada vantagem ou de evitar um mal maior. E essa expectativa foi frustrada ou dificultada em razão do fato imputável ao réu. (...) é impossível determinar qual é ‘a situação em que vítima estaria sem o ato imputado ao réu’. Como o interesse em questão é aleatório, o litígio comporta uma dúvida irredutível sobre a sorte da vítima. Não fosse pelo incidente, teria ela alcançado o resultado desejado? O paciente estaria curado? (...) Ao invés constituir uma espécie de prejuízo ou uma nova teoria sobre o nexo casal, a perda de uma chance seria mais bem definida como uma técnica decisória, criada pela jurisprudência francesa para superar as insuficiências da responsabilidade civil diante das lesões a interesses aleatórios. Essa técnica consiste no deslocamento da reparação: a responsabilidade deixa de se preocupar com a intangível vantagem aleatória desejada, e passa a considerar a chance como objeto a ser reparado. 10

Exemplo mais prosaico da existência dessa chance, enquanto possibilidade, oportunidade de se obter uma vantagem (ou se evitar prejuízo), é aquele da rifa. São 100 números, de 1 a 100. No momento de se colocar os papeizinhos com os 100 números num recipiente, para depois alguém retirar de lá o número sorteado, falta um número (o 22, por exemplo). É claro que o comprador desse número, que detinha 1 chance em 100, de ser o sorteado, jamais ganhará a rifa – pois a chance lhe foi subtraída.

Evidentemente, como veremos adiante, se houver vínculo causal certo e direto entre a ação culposa do médico e o dano, afastar-se-á a incidência da teoria da perda de uma chance, com a prevalência da imputação direta de responsabilidade, sem se cogitar, apenas, de uma chance perdida.

3.2. Características da obrigação contraída pelo médico: obrigações de meio e de resultado

A obrigação contraída pelo médico é espécie do gênero obrigação de fazer, em regra infungível, que pressupõe atividade do devedor, energia de trabalho, material ou intelectual, em favor do paciente (credor). Implica diagnóstico, prognóstico e tratamento: examinar, prescrever, intervir, aconselhar. A prestação devida pelo médico é sua própria atividade, consciente, cuidadosa, valendo-se dos conhecimentos científicos consagrados – em busca da cura. Por isso, André Tunc sugere a denominação “obrigações de diligência”. 11 O caráter intuitu personae, muitas vezes, é relativizado pela urgência.

A divisão das obrigações “de meios” e “de resultados” é atribuída a Demogue. Antes, na Alemanha (Bernhoff e Fischer), na própria França (Domat e Planiol) e no direito romano, já se encontravam menções a esses conceitos. Na jurisprudência francesa, a distinção foi admitida pela primeira vez em famosa decisão da Corte de Cassação, de 20.05.1936.

René Demogue, em seu Traité des obligations en général, editado em 1931, afirma:

O médico contrata uma obrigação de meio, não de resultado. Ele não deve ser responsável se o cliente não sse cura. Ele promete somente cuidados atenciosos e o cliente deve provar a culpa do médico e a relação causal entre a culpa e o ato danoso (morte etc.).

Por exceção, se o médico que se compromete a prestar serviço ao doente não o faz, ele se torna plenamente responsável pelo dano. 12

Na verdade, Demogue nunca definiu ou conceituou a obrigação de meio e de resultado. Apenas mencionou exemplos de cada uma delas. Por outro lado, não obstante largamente difundidas na doutrina e na jurisprudência, tal classificação nunca foi objeto de normatização, daí não figurar em nenhuma codificação ou regramento.

Ainda assim, há 80 anos se repetem as formulações de Demogue: quanto ao diagnóstico, por ser a medicina, mais que as outras, uma ciência incerta e conjectural, o erro não há de ser, necessariamente, culposo. Em tal caso, exige-se culpa grave; tomar-se-á como paradigma o estádio da ciência no momento do ato. Adverte o civilista francês haver domínios da ciência médica nos quais seria temerário o juiz imiscuir-se. Vedar-se-ia a discussão puramente científica – embora os médicos estejam submetidos ao direito comum.

Na infração a um dever “de meios”, há culpa a ser provada pelo autor (paciente ou familiares). Incidem as regras da responsabilidade subjetiva. O médico, nesses casos, defende-se sob a alegação de cumprimento rigoroso das regras da medicina – e da inexistência de nexo causal entre sua conduta e o dano.

Na prova da culpa médica, parte-se quase sempre de uma premissa que assume visos de axioma: a obrigação assumida pelo médico é de meios, não de resultado.

As consequências dessa afirmativa são as seguintes:

a) o médico não se responsabiliza pelo insucesso da terapia, caso tenha utilizado todos os meios disponíveis e, ainda assim, a cura não tenha ocorrido;

b) a prova da culpa do médico é atribuída àquele que busca a indenização (a própria vítima ou seus familiares);

c) exatamente por se vincular a uma obrigação de meios, quase sempre milita em favor do médico uma presunção de que o dano teria ocorrido de qualquer modo, desencadeado por uma causa inteiramente alheia à vontade do profissional e superior às forças deste, para tentar evitá-la.

Vazques Ferreyra, após inventariar posicionamentos doutrinários acerca do tema, aponta as principais características da obrigação assumida pelo médico, perante o paciente:

a) trata-se de uma prestação de atividade, na qual a finalidade última é a cura do enfermo; b) a atividade consiste na aplicação de conhecimentos e práticas científicas; c) essa finalidade não resulta previamente assegurada ou garantida, pois a obrigação é satisfeita apenas com o desdobramento da atividade técnica ou cientificamente diligente. 13

Em abono, reproduz julgados das cortes argentinas, que afirmam consistir a obrigação do médico, em princípio, na aplicação de conhecimentos atualizados, proporcionados pela ciência, com a finalidade de obter a cura, agindo com máximo cuidado e diligência – tanto no diagnóstico como no tratamento em geral. O médico não se compromete a curar, mas se obriga a utilizar técnicas e métodos corretos e a empregar acurada diligência no exercício de suas atividades profissionais.

Yagüez refere julgado do Tribunal Supremo espanhol, sobre a obrigação contraída pelo médico:

(...) no es la suya una obligación de resultado, sino una obligación de medios, es decir, está obligado, no a curar al enfermo sino a proporcionarle todos los cuidados que requiera según el estado de la Ciencia; además, en la conducta de los profesionales sanitarios queda, en general, descartada toda clase de responsabilidad más o menos objetiva, sin que opere la inversión de la carga de la prueba, admitida por esta Sala para los daños de otro origen, estando, por tanto, a cargo del paciente la prueba de la relación o nexo de causalidad y de la culpa, ya que a la relación material o física ha de sumarse el reproche culpabilístico (...). 14

A distinção, todavia, não encontra nenhuma receptividade normativa, no Brasil ou algures.

Mosset Iturraspe critica tal classificação – recriada, não inventada, por Demogue – principalmente pela consequência que dela resulta no campo da prova. Tal qualificação, ademais, não seria feliz, na medida em que parece desvincular o devedor da obrigação de obter um resultado benéfico, de interesse do credor, juridicamente protegido. 15

Por isso, já se propôs alterar a denominação de obrigações de meios para obrigações de simples comportamento ou obrigações de atividade, nas quais o objetivo seria, também, a produção de um resultado.

O médico não satisfaz sua obrigação simplesmente atendendo, receitando, intervindo cirurgicamente, diagnosticando etc., mas sim deve demonstrar – e tal prova ficará a seu cargo – que tais atos constituem a atividade diligente devida, idônea à obtenção do resultado pretendido: curar o enfermo.

A consequência de se adotar essa distinção é a seguinte: se o médico demonstra a efetiva realização de atos tendentes a conseguir a cura, considera-se, por isso, haver cumprido a obrigação a seu cargo.

A prova de que esse cumprimento não constitui atividade diligente, na forma devida, é dever do paciente.

Equipara-se, portanto, o serviço devido ao resultado devido. Se o paciente morre, não se imputa responsabilidade ao médico pelo fatal desenlace, mas sim pela inidoneidade da terapia dispensada, má qualidade ou deficiência do trabalho médico, em relação à enfermidade tratada.

Se o tratamento foi idôneo, a morte do enfermo há de ser atribuída à impossibilidade de se obter a cura.

Entretanto, para Iturraspe, com o propósito de se proporcionar adequada tutela ao credor do serviço profissional, essa prova da impossibilidade de se curar o paciente incumbirá ao médico. Não poderá haver uma alegação de que se empregou extrema diligência, toda perícia e grande esforço: o ônus da prova da aleatoriedade ou da impossibilidade material de se atingir o fim colimado transferir-se-á ao médico. 16

A tese segundo a qual a obrigação contraída pelo médico centra-se apenas nos meios por ele empregados encontra-se amplamente superada. Os meios referem-se somente ao núcleo obrigacional. Deveres secundários de conduta, como os deveres de informação e de seguridade, adquirem grande relevância para a aferição da responsabilidade. O núcleo não pode ser seccionado dos deveres acessórios e secundários. O vínculo obrigacional torna-se complexo e dinâmico. A culpa surge quando se omite a diligência devida, considerado esse complexo de elementos. 17

O famoso caso do Dr. Helie, ocorrido no ano de 1825, primeiro a ser julgado por uma corte judicial, em França, em 1832, 18 inaugurou a fase que os médicos relutam em admitir: julgadores leigos examinam a conduta profissional, especializada, dos profissionais da saúde e, não raro, emitem juízos condenatórios. Não obstante a advertência do Procurador-Geral Dupin, junto à Corte de Cassação de Paris – “Que os médicos se confortem: o exercício de sua arte não está em perigo; a glória e a reputação de quem a exerce com tantas vantagens para a Humanidade não serão comprometidas pela culpa de um homem que falhasse sob o título de Doutor” –, ainda hoje, os médicos temem que a exacerbação da responsabilidade que lhes é cobrada termine por inviabilizar o exercício da medicina.

Mas, principalmente no Brasil, é inegável que os tribunais sempre trataram os médicos com elevada compreensão. Entende-se que os galenos, em quase todas as especialidades, assumem essa obrigação de meios (de prudência, diligência ou atividade). Somente se obriga a aportar os meios conducentes à obtenção da cura ou da prestação prometida ao credor (paciente). 19 Admite-se que interferem na atuação do médico fatores aleatórios, que o impedem de assegurar, previamente, o atingimento do objetivo colimado.

Ao contrário, nas obrigações de resultado, o imponderável está ausente – ou deve ser desconsiderado. O exemplo mais constantemente lembrado de especialidade médica que obriga ao atingimento do resultado previsto é o da cirurgia plástica, com finalidade exclusivamente embelezadora. Nela, ainda que não se prove a culpa do profissional – em nenhuma das suas modalidades –, a simples frustração do resultado esperado conduz, inelutavelmente, ao dever de indenizar. 20 Nesse caso, o ônus probatório é atribuído ao médico, que só se eximirá de responsabilidade caso prove, cumpridamente, culpa exclusiva da vítima ou caso fortuito.

A circunstância de se considerar a obrigação contraída pelo médico como sendo de meios resulta, sem dúvida, no abrandamento da sua responsabilização.

Isso porque, no contexto da obrigação de meios, o ônus da prova da existência do ato culposo do médico incumbe ao paciente.

Frequentemente, a verificação do dano não envolve maiores perquirições. Houve morte ou a vítima sofreu lesões corporais de maior ou menor gravidade, às vezes incapacitantes, teve afetado seu patrimônio moral ou material, enfim, experimentou qualquer forma de abalo à sua integridade física ou mental.

Se, durante a demanda judicial, não se consegue provar em que consistiu a conduta culposa do médico, o resultado é a improcedência do pedido condenatório formulado pelo autor.

Em suma, a enorme importância dessa distinção sempre se relacionou, essencialmente, ao ônus da prova.

Agora, novas teorias, como a da carga dinâmica das provas, alteram a distribuição do encargo probatório no processo. Qual o futuro, portanto, dessa distinção?

lorenzetti aponta no sentido da relativização desse conceito, pela abertura do binário, provocada pela força centrípeta da realidade. 21

Há um princípio imutável, radicado na realidade das coisas: o médico não pode curar sempre, os seres humanos são finitos. Portanto, é intuitiva – e sabe ao óbvio – a afirmação de que o médico não pode atingir um resultado ideal em todas as intervenções a que se propõe.

Partindo-se dessa realidade imutável, passa-se à análise do insucesso. Por que o paciente morreu, ou resultou agravado seu estado físico? O médico, por seu atuar imperito, negligente ou imprudente, ocasionou esse agravamento? Pode-se atribuir a ruína da saúde do paciente a causas endógenas, desencadeadas pelo seu próprio organismo, sem interferência da atuação médica?

A resposta a essas questões determina a procedência ou improcedência da demanda indenizatória. Irrelevante saber se a obrigação era de meio ou de resultado. O dano existiu. Basta, apenas, identificar quem o causou – se o profissional, que poderia ter agido diferentemente, e não o fez – ou causa diversa, absolutamente fora do alcance da atuação (boa ou má) do médico.

Razão assiste a lorenzetti, quando afirma que, na situação atual, os benefícios para os médicos, provenientes do enquadramento nas obrigações de meios, transformaram-se em adversidade, pois tem-se agravado e intensificado a identificação da culpa, na atuação do profissional da medicina. 22

Diz mais, o referido autor:

A doutrina se preocupou em encontrar critérios conceptuais classificadores. Podemos identificar alguns que podem ser chamados objetivos. Entre eles, o mais difundido e antigo é o que se fundamenta no conteúdo da obrigação de meios. Neste sentido, Demogue utilizou a noção de álea para assinalar que, em alguns casos, não se pode garantir um resultado. Na atividade médica, a álea é a reação orgânica do paciente. 23

Sendo assim, não há como deixar de se admitir a existência de álea em qualquer intervenção cirúrgica, mesmo aquelas que visam ao melhoramento do padrão de beleza. A rigor, portanto, não haveria obrigação de resultados, no domínio médico.

Em síntese, a antiga distinção já produziu seus resultados – e ao que tudo indica encontrou espaço amplo apenas no âmbito da responsabilidade profissional médica.

Genival Veloso de França, em artigo sobre a caracterização da cirurgia plástica como obrigação de meios ou de resultado, externa as seguintes conclusões:

Qualquer que seja a forma de obrigação de meios ou de resultado, diante do dano, o que se vai apurar é a responsabilidade, levando em conta principalmente o grau da culpa, o nexo de causalidade e a dimensão do dano, ainda mais diante de indenizações por perdas e danos. Aquelas formas de obrigação apenas definem o ônus da prova. No ato médico, a discutida questão entre a culpa contratual e a culpa aquiliana, e, em consequência, a existência de uma obrigação de meio ou uma obrigação de resultado, parece-nos, em determinados instantes, apenas um detalhe. Na prática, o que vai prevalecer mesmo é a relação entre a culpa e o dano, pois até mesmo a evidência do onus probandi já tem remédio para a inversão do ônus da prova, qualquer que seja a modalidade de contrato. Hoje, mesmo em especialidades consideradas obrigadas a um resultado de maneira absoluta, como na cirurgia plástica puramente estética, já se olha com reservas esse conceito tão radical de êxito sempre, pois o correto é decidir pelas circunstâncias de cada caso. 24

3.3. A doutrina da perda de uma chance de cura ou sobrevivência (perte d’une chance de survie ou guérison)

Na jurisprudência clássica, a perda de uma chance possibilita à vítima obter uma indenização junto a quem, por culpa, prive-a de alguma chance de obter determinada vantagem.

Mazeaud e Mazeaud, em suas Lições de direito civil, dissertam sobre a perda de uma chance, nessa visão tradicional – antes de o conceito migrar também para a responsabilidade médica:

São numerosos os casos em que uma pessoa se queixa de haver perdido uma chance (probabilidade) por culpa de outra. Encarregado de conduzir ao hipódromo um cavalo de corridas ou a seu jóquei, o transportador se atrasa, fazendo com que cheguem depois do início da corrida; por isso, o proprietário perde a chance de ganhar o prêmio. Notário, negligente no cumprimento do mandato que lhe havia sido conferido pelo cliente, faz com que este perca a probabilidade de adquirir uma propriedade. Auxiliar de escritório de advocacia, encarregado de protocolar apelação, ou advogado, que deveria recorrer, perdem os prazos; seus clientes perdem a chance de que se modifique a decisão contrária. (...) Todas essas espécies e muitas outras surgem na jurisprudência. Os tribunais não têm vacilado em conceder reparação.

Sem dúvida, não era certo que o cavalo ganharia a corrida, ou que o recurso seria provido (...). Mas é inegável que havia uma chance. E esta chance se perdeu. Existe aí um prejuízo, que não é hipotético (...). 25

A perda de uma chance situa-se numa zona cinzenta ou limítrofe, entre o certo e o incerto, o hipotético e o seguro, tratando-se de situação intermediária, entre um comportamento antijurídico que interfere no curso normal dos acontecimentos, de forma tal, que não se poderá saber se a vítima teria ou não obtido um ganho ou evitado o prejuízo, caso aquele comportamento não tivesse ocorrido. 26

Observa Luis Medina Alcoz:

A teoria da chance permite indenização quando, não sendo possível identificar-se o nexo causal, mostravam-se sérias e consideráveis as probabilidades de que, caso não ocorresse o ato ilícito, a vítima teria obtido um benefício, utilidade ou vantagem (...). 27

Sophie Hocquet-Berg e Bruno …

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jusbrasil.com.br
25 de Maio de 2024
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