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Processo Constitucional e Democracia - Ed. 2023

Processo Constitucional e Democracia - Ed. 2023

II. A Ação em que se Argui a Inconstitucionalidade da Lei e a Ação em que se Invoca Diretamente a Constituição

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Sumário:

1. Primeiros esclarecimentos

A questão de constitucionalidade pode aparecer de diferentes formas numa ação judicial. O autor pode argumentar que tem direito apesar da lei, afirmando a sua inconstitucionalidade enquanto causa de pedir da ação, assim como o réu pode, na defesa, arguir a inconstitucionalidade da lei em que o autor se funda para pedir a tutela do direito.

Além disso, tanto o autor quanto o réu podem, conforme a situação concreta, argumentar diretamente a partir da Constituição, invocando-a como base da ação ou da defesa. Nessa última situação, deve-se demonstrar a possibilidade de se aplicar diretamente a Constituição, evidenciando-se falta de proteção legislativa .

Ademais, quando a ação ou a defesa afirmam a inconstitucionalidade da lei, exige-se saber se essa abre oportunidade para interpretação nos termos da Constituição, sendo imprescindível delinear os espaços da interpretação conforme e do controle de constitucionalidade 1 .

Estabelecer as fronteiras entre a interpretação conforme e o raciocínio próprio ao controle de constitucionalidade tem importantes consequências, como, por exemplo, a de não se admitir recurso extraordinário com base na alegação de que a decisão do Tribunal interpretou a lei em desconformidade com a Constituição. Se o Tribunal, para decidir, aplicou a lei, dando-lhe determinada interpretação, ainda se está no espaço da interpretação legal, de forma que somente é possível admitir recurso endereçado ao Superior Tribunal de Justiça, incumbido pela Constituição de definir a interpretação da lei federal. Cabe pensar em recurso extraordinário apenas quando a decisão recorrida negou aplicação à lei, declarando-a inconstitucional , ou aplicou diretamente a Constituição, interpretando-a.

É imperioso direcionar o processo em que se discute equívoco na interpretação da lei, de um lado, e erro na interpretação da Constituição e na prolação de decisão de inconstitucionalidade, de outro, às Cortes incumbidas da análise de cada uma das situações. Conferir ao Supremo Tribunal Federal oportunidade de julgar recurso em que se alega que a interpretação da lei violou a Constituição é confundi-lo com o Superior Tribunal de Justiça, negando-se ao último a função de intérprete da lei federal, inclusive nos termos da Constituição.

Aliás, outra interessante questão teórica surge quando se pensa na oportunidade de o Tribunal aplicar diretamente a Constituição. Haveria aí controle de constitucionalidade por omissão? O órgão fracionário estaria impedido de aplicar diretamente a Constituição? Essa função seria exclusivamente do plenário ou do órgão especial?

Mediante essas alusões, deseja-se deixar claro que a separação entre a interpretação da lei conforme à Constituição, a interpretação da Constituição e a declaração de inconstitucionalidade é absolutamente fundamental para a racional compreensão do controle incidental de constitucionalidade no Brasil, evitando-se desatenção aos diferentes fundamentos e justificativas para decidir interpretando a lei e decidir interpretando a Constituição e controlando a constitucionalidade, assim como o comprometimento dos sistemas endereçados à definição da interpretação da lei e da tutela do direito constitucional.

2. A interpretação da lei nos termos da Constituição diante do controle de constitucionalidade

2.1. A importância da teoria da norma no processo constitucional

Há muito tempo se deixou claro que as palavras não têm um único sentido e que o texto legal não possui significado unívoco. Não há como simplesmente descrever a norma, pois essa não está integralmente no texto legal. Inexiste relação de sinonímia entre o resultado obtido mediante a atividade interpretativa e o texto legal 2 . De modo que é equivocado pensar que a interpretação pode reproduzir a norma contida na lei.

Embora seja costume chamar o texto legal de norma e afirmar que o juiz a declara 3 , a verdade é que o juiz sempre atribui significado ao texto legal. Esse significado, portanto, não pode ser confundido com o texto 4 . O significado, e não o texto, constitui a norma 5 , compreendida como o “sentido” que o juiz atribui ao texto legal ao decidir 6 .

A necessidade de dissociar texto legal e norma é evidenciada por Giovanni Tarello e Riccardo Guastini. Tarello demonstra que a norma é o produto da interpretação e não algo que está à espera de ser descoberto pelo intérprete. A norma é o resultado da interpretação, destacando-se do texto legal em virtude de uma série de fatores que influenciam e conduzem o raciocínio interpretativo 7 . Guastini adverte que a correspondência biunívoca entre dispositivo e norma se funda em uma doutrina normativista do direito (o direito positivo como sistema de normas) e em uma doutrina formalista da interpretação (a interpretação como conhecimento e declaração da norma contida na lei) 8 .

A dissociação entre texto e norma não existe apenas quando se tem um “caso difícil”. Quando o caso é fácil, a atribuição de sentido requer menos esforço, mas também é necessária. O juiz, sempre que se depara com um enunciado das fontes, inevitavelmente lhe atribui significado ou sentido, independentemente da sua clareza. A atribuição de sentido é consequência imediata, natural e inevitável do contato de alguém com qualquer enunciado. A clareza do enunciado somente facilita a transposição da linguagem das fontes para a linguagem do emissor. De modo que não importa distinguir texto claro e texto dúbio, mas perceber a diferença entre a linguagem das fontes e a do intérprete, pois a primeira, ainda que seja clara, nunca será a linguagem do último 9 .

Tanto o texto legal ou o dispositivo, quanto o sentido ou a norma, são enunciados. O dispositivo é enunciado do discurso das fontes, ao passo que a norma é enunciado do discurso do intérprete. Isso quer dizer que, entre dispositivo e norma, não há uma diferença ontológica, mas uma simples distinção entre duas espécies de enunciados 10 .

Guastini observa que a equiparação entre dispositivo e norma constitui uma crença que, embora difusa, é falaz. Todo dispositivo é – mais ou menos – vago e ambíguo e, por isso, tolera diversas e conflitantes atribuições de significado. Assim, a um dispositivo – ou a cada dispositivo – corresponde não apenas uma só norma 11 , mas uma multiplicidade de normas dissociadas. Um único dispositivo pode exprimir tantas normas quantas são as interpretações possíveis 12 .

Para o processo constitucional, a relevância da teoria que separa dispositivo e norma já aparece nos primeiros anos de vida da Corte constitucional italiana. Quando a Corte efetivamente começou a funcionar – depois de um atraso de quase dez anos devido às suspeitas em relação ao judicial review –, um dos primeiros problemas que teve que resolver foi o da identificação do objeto do juízo de inconstitucionalidade. Nesse momento, em que se temia confronto com o Parlamento, a Corte entendeu que o controle de constitucionalidade deveria recair sobre a norma extraível da lei. A partir daí se introduziu uma separação estrutural entre texto (dispositivo) e norma que trouxe dois benefícios significativos. Permitiu-se a declaração de inconstitucionalidade da norma (interpretação) sem a necessária declaração da inconstitucionalidade da lei, favorecendo-se, ainda, a práxis da interpretação de adequação do sentido do texto legal à Constituição 13 . Ou seja, a Corte afirmou que a lei não deve ser declarada inválida quando oferta interpretação constitucional.

Embora se tenha dito que a circunstância de um dispositivo legal oferecer oportunidade para uma única interpretação inconstitucional deveria ser suficiente para a declaração da sua inconstitucionalidade, o entendimento que se firmou na Corte e na doutrina foi o de que uma lei só pode ser considerada inconstitucional quando não abre oportunidade para interpretação constitucional. No sentido que não prevaleceu, argumentou Luigi Montesano que a Corte, quando nega a inconstitucionalidade, porém ao mesmo tempo analisa a fórmula legislativa em busca de interpretações contrárias à Constituição, não pode obrigar o legislador a melhorar a lei, nem tampouco obrigar os juízes a se absterem dessas interpretações, mas deve considerar-se impotente para defender a Constituição desse perigo ou eliminá-lo de vez, declarando inconstitucional a lei equivocadamente formulada 14 . Essa posição, antes, já havia sido refutada por Tullio Ascarelli, que igualmente contribuiu para o desenvolvimento da teoria que dissocia dispositivo e norma a partir do mesmo problema, então vivido pela Corte Constitucional. Ao lembrar que o Juiz constitucional sempre se depara com um texto equívoco a interpretar, Ascarelli afirma que a univocidade pode ser apenas das aplicações concretizadas e não pode referir-se ao texto em função do qual se quer estabelecer a norma objeto da análise. Qualquer texto pode dar lugar a interpretações divergentes e, portanto, à formulação de normas distintas. Uma dessas poderá ser inconstitucional, diversamente de outras 15 .

Um dos primeiros e principais trabalhos acerca da importância da dissociação entre dispositivo legal e norma foi escrito por Vezio Crisafulli, discípulo de Santi Romano, que se tornou um grande teórico do processo constitucional, tendo sido Juiz da Corte Constitucional italiana. O trabalho de Crisafulli 16 , publicado poucos anos depois do surgimento do problema relativo à necessidade de delimitação do objeto do juízo de inconstitucionalidade, demonstrou que a relação dispositivo-norma não é de correspondência biunívoca, ao contrário do que é sugerido pelo postulado da norma verdadeira 17 . Dessa forma não apenas evidenciou que a norma não se confunde com o texto legal, mas também que o controle de constitucionalidade pode reprovar a norma sem interferir sobre o dispositivo.

A separação entre texto e norma, por consequência, igualmente permitiria a conclusão de que a Corte pode afirmar a única norma constitucionalmente possível. Na verdade, a teoria que separa texto e norma fundamenta o argumento de que a Corte está autorizada a estabelecer a norma constitucional viável. Entretanto, o problema aí sempre esteve na possibilidade de a Corte poder impor a observância da sua interpretação constitucional aos Juízes e Tribunais.

Quando a Corte italiana passa a pensar no dispositivo legal que necessita ser reduzido, acrescido ou alterado para que se tenha uma norma compatível com a Constituição, a teoria que separa texto e norma mais uma vez assume grande importância. As decisões chamadas manipulativas ou reconstrutivas – redutivas (de inconstitucionalidade parcial), aditivas e substitutivas – surgem quando se verifica que o dispositivo não pode ser interpretado conforme à Constituição. Se a decisão de constitucionalidade firma uma interpretação ou norma que, diante do texto legal, é constitucionalmente possível, as decisões manipulativas, ao contrário, aparecem como necessárias exatamente quando se constata que a norma (interpretação) constitucional está na dependência de uma modificação lato sensu do dispositivo legal ou da norma que dele deflui.

Portanto, não há dúvida sobre a importância da …

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jusbrasil.com.br
17 de Junho de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/31-eficacia-dos-direitos-fundamentais-sobre-o-estado-e-sobre-os-particulares-3-a-invocacao-direta-da-constituicao-processo-constitucional-e-democracia-ed-2023/1823978249