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Feminicídio - Ed. 2022

Feminicídio - Ed. 2022

3.1. “Ele Queria que Ela Fosse Só Dele”: Dinâmicas de Controle e Coerção

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Sumário:

Na primeira etapa da pesquisa guiada pela metodologia da Grounded Theory , percebi que muitas unidades de sentido se referiam a aspectos discursivos da violência em um momento anterior ao ingresso no campo jurídico. Alguns códigos, como “agressões feminicidas simbólicas” ou “motivação do crime”, evidenciavam padrões nas dinâmicas e nos contextos da ação que não poderiam ser menosprezados.

Embora o objetivo inicial fosse analisar o feminicídio enquanto uma categoria jurídica, isto é, enquanto um fenômeno social que, após o tratamento legal, passa por um processo de inteligibilidade de um sistema de linguagem e expedientes rigidamente estruturados – como o sistema penal –, tratando-se de uma teoria fundamentada em dados, não pude ignorar as categorias de ancoragem que se mostravam evidentes e repetitivas. Assim, optei por destinar dois capítulos (3 e 4) da análise qualitativa às codificações que se referiam a aspectos discursivos do fenômeno social, suas dinâmicas e contextos, identificados especialmente nos depoimentos transcritos nos acórdãos. Na etapa de codificação axial, busquei isolar os códigos que não se relacionassem com um tratamento jurídico do feminicídio para então buscar associações entre eles, que geraram este capítulo e o seguinte.

O processo de abdução de categorias e associação entre elas evidenciou uma dinâmica em torno do controle e descontrole da ação feminicida. Essas categorias eram códigos abertos, mas, relacionando-as com as demais, identifiquei que seriam conceitos com potencial de agrupar mais de um código. Assim, o primeiro mapa construído utilizando a Análise Situacional diz respeito às dinâmicas de controle e descontrole no feminicídio.

Para o aprofundamento das categorias que surgiram na codificação das decisões, utilizei outros documentos de duas fontes: 1) do processo judicial, tais como inquéritos policiais, laudos da perícia legista, sentenças, entre muitos outros, que estiveram sempre a serviço do aprofundamento das categorias analíticas que já existiam a partir das codificações das decisões de segundo grau e 2) revisão bibliográfica, especialmente de publicações de estudos empíricos de violência feminicida, com as quais consegui estabelecer leituras mais profundas de alguns códigos como “suicídio do agressor”, “overkill ”, 1 “orfandade e feminicídio”, entre outas. Como explicado no capítulo 1, neste método, a revisão de bibliografia é feita após a codificação, servido como mais uma fonte auxiliar para saturar os dados.

Ilustração 17 – Mapa dinâmicas de controle e descontrole

Fonte: elaborado pela própria autora (2021).

A violência doméstica praticada pelo parceiro íntimo não tem uma única causa. Fatores como socialização de gênero, intergeracionalidade da violência, consumo de substâncias entorpecentes (lícitas ou não), desemprego, entre outros, são descritos na literatura como causas que podem interagir aumentando o risco de violência (WHITING et al., 2014). Os dados não permitem um aprofundamento dos fundamentos da violência misógina, mas sim como ela se apresenta: distintas formas de manter um domínio que, quando é desafiado por demandas de autonomia da vítima, expressa seus mecanismos de controle de forma ainda mais violenta e, por vezes, fatal. Para refletir sobre essas dinâmicas, o primeiro mapa foi elaborado e composto de três categoriais principais (em cor laranja): controle , tentativa de recuperar o controle e descontrole . Esses três momentos estruturam as seções deste capítulo.

A primeira seção é dedicada às dinâmicas anteriores à ação feminicida que se articulam para a manutenção do controle. Os códigos em amarelo e cinza no mapa identificam o contexto privado da violência: o ciclo de violência, sentimentos de posse e estratégias de coerção para que a mulher se mantenha sob o domínio do agressor. Os códigos em marrom identificam a dimensão pública da violência, quando a comunidade e as instituições do sistema de justiça tomam conhecimento da violência e se mantêm, em muitos casos, inertes. A hipótese aqui levantada é a de que a tolerância da violência por parte da comunidade (representada por amigos e familiares que decidem “não meter a colher”) e do Estado (diante de comunicações de agressões anteriores arquivadas) reforça os mecanismos de controle privados.

O código “se não for minha, não será de mais ninguém” marca a passagem do controle para o descontrole, quando a ação feminicida é praticada em resposta a sinais de autonomia da mulher, a partir da ameaça de fuga da esfera de domínio do agressor. Como exposto no capítulo anterior, a separação ou a percepção do fim do relacionamento são gatilhos para que a ação se concretize.

O enunciado que intitula este capítulo – e revela uma fratura a partir da qual se desenvolve a ação feminicida – não é novidade. Campbell et al. (1992), em um artigo seminal sobre o tema intitulado “If i can’t have you, no one can” (tradução literal: se eu não posso ter você, ninguém pode), destinam um tópico de sua análise ao momento em que a mulher decide ir embora. A motivação da ação se dá pelo desejo do autor de recuperar sua propriedade após o fracasso de esforços para reafirmar poder e controle.

Stuart e Campbell (1998) identificaram a exteriorização dessa frase pelo homem como fatores de risco de feminicídio. Há, na literatura, diversas referências à presença deste enunciado em estudos sobre feminicídio. 2 O item 6 do Formulário Nacional de Avaliação de Risco de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do CNJ está assim expresso: “O (A) agressor (a) já teve algum destes comportamentos? () disse algo parecido com a frase: “se não for minha, não será de mais ninguém” (CNJ, 2020). 3

A segunda sessão deste capítulo se destina à análise das consequências do descontrole observado nas ações feminicidas. A partir de algumas narrativas dos acusados acerca do “perder a cabeça”, foi possível investigar características e reações ao ato praticado com foco na perspectiva do agressor: o apagamento do episódio, especialmente da parte mais violenta, o remorso que leva à confissão (e o desejo de “justiça” para “pagar” pelo crime cometido), as tentativas de suicídio e as alegações de “insanidade mental”.

3.1. “Ele queria que ela fosse só dele” : dinâmicas de controle e coerção

O controle pode ser entendido como o exercício de uma série de ações que instauram e mantêm um determinado domínio por meio de diferentes estratégias. A violência física talvez seja a mais evidente, punida com maior severidade pela lei, mas, observando as dinâmicas descritas por autores, vítimas e testemunhas, é possível perceber diferentes matizes de manutenção e afirmação desse domínio. Ou, ainda, utilizando-se do arcabouço conceitual de Segato (2003, p. 107), entendo o controle como o conjunto de “mecanismos de preservação de sistemas de status [que] operam também no controle e na hierarquia de outras ordens, como a racial, étnica, de classe, regional e nacional” (tradução minha).

Ao descrever a ordem simbólica de uma cultura patriarcal, a autora identifica o feminino como a figura materna, “aquilo que se subtrai, a falta, o outro, aquilo que se submerge no inconsciente, formando-o” (SEGATO, 2003, p. 72). O outro lado do dualismo é formado pelo masculino, associado à “figura paterna, fálica e poderosa porque captou uma parte do desejo materno, permite a satisfação, mas também sabe cortá-la, interditá-la, em nome da lei que ela institui” (SEGATO, 2003, p. 72). Nesse jogo de opostos, cabe ao masculino o papel de definição, de legislar e nomear pessoas e coisas, imputando-lhes, nas palavras da autora, “valor e significado”.

E, dessa leitura lacaniana da ordem simbólica patriarcal e da cena originária, a abstração que funda o domínio das coisas e pessoas, que atribui valor e significado é masculina.

Aqui, cabe uma observação adiantada, mas ilustrativa: em muitos esquemas de lesões, anexados aos laudos de exame de corpo de delito de necropsia, o modelo sobre o qual o perito inscrevia as lesões que observava no cadáver era um modelo masculino. Esse é um pequeno exemplo de como a ordem que instaura e mantém o patriarcado identifica os valores masculinos como universais, algo afirmado por inúmeras autoras.

As pesquisas feministas sobre violência doméstica contribuíram para a compreensão de dinâmicas de violência intrafamiliar que até então eram invisibilizadas pela generalização de produções científicas sobre “violência familiar”. Os aportes feministas incluem, sobretudo, o argumento de que a violência doméstica de gênero é assimétrica. Na ordem patriarcal, os homens são mais propensos a serem controladores, além de violentos. Estudos feministas sugerem que elementos estruturais do patriarcado na sociedade tornam aceitável que os homens sejam dominadores e agressivos (DOBASH et al., 1981; BROWNE, 1987).

Johnson (2008) sugeriu um modelo com três formas de violência doméstica: “terrorismo íntimo”, “resistência violenta” e “violência situacional do casal”. Para o autor, grande parte das pesquisas sobre violência intrafamiliar se dedica à “violência situacional do casal”, enquanto as produções feministas abordam a violência denominada por ele de “terrorismo íntimo”. 4 Ao descrever o primeiro tipo, afirma que tanto mulheres quanto homens praticam a violência situacional, embora mulheres sofram mais lesões do que homens. Ainda segundo a tipologia sugerida, essa violência não vem acompanhada de dinâmicas de controle. Já o “terrorismo íntimo” é descrito como comportamentos com altos níveis de controle coercitivos, quase sempre do parceiro do sexo masculino para a vítima do sexo feminino e é mais grave em termos de risco de ferimentos ou morte. 5 A utilização da violência, nesses casos, objetiva influenciar o comportamento atual ou futuro da parceira (JOHNSON, 2008, 1995).

O controle aparece como uma categoria de análise empírica em Whiting et al. (2014, p. 277) e é descrito como um “padrão de comportamentos abusivos que pode incluir agressão física, sexual e psicológica” (tradução minha). Manipulação, abuso verbal, emocional e físico, mentiras e intimidação foram algumas das práticas descritas pelos agressores para controlar a parceira (WHITING et al., 2014).

O emprego da violência é compreendido como uma forma de controle do comportamento da vítima, especialmente em relações íntimas de afeto quando homens atacam suas parceiras (FELSON, 2000; DUTTON, 1995; ARCHER, 1994; FAGAN; BROWNE, 1994; KOSS et al., 1994). Nesses casos, as ameaças têm um papel determinante na tentativa de controlar o comportamento do outro e são perpetradas pela parte que detém maior poder na relação (FELSON, 2000). A ameaça praticada na inversão dessa dinâmica (a parte menos poderosa ameaçar a que detém maior poder) não é eficaz, pois carece de credibilidade e pode ocasionar retaliações. Por esse motivo, é necessário que haja um determinado poder de coerção para que a ameaça surta efeito (FELSON, 2000).

Weldon (2015) associa o desejo de se manter no controle como representativo das visões patriarcais e misóginas das construções sociais e familiares, em que homens desejam ter domínio das relações íntimas. Segundo a pesquisa, a narrativa sobre a necessidade de estar no controle relacionada ao desempenho de um papel socialmente construído do “homem de verdade” foi generalizada entre os participantes.

A manutenção do domínio é exercida de diferentes formas, através de distintos meios afirmados pela repetição. O feminicídio, como descrito por Russell e Caputi (1992) é o ponto final em um continuum de violência. Trata-se da forma mais extrema e fatal, mais visível e contundente, mas que participa de um regime simbólico que se utiliza de estratégias cotidianas de regulação.

Black et al. (2011, p. 10) definem o controle coercitivo como “comportamentos direcionados ao monitoramento e controle do parceiro íntimo, tais como ameaças, interferência na família e amigos e acesso limitado ao dinheiro” (tradução minha). Essa definição permite afirmar que 41% das mulheres norte-americanas já experenciaram o controle coercitivo (BLACK et al., 2011).

Ameaça e agressões são expressões mais evidentes do exercício do controle. No entanto, outros comportamentos cumprem uma função de manutenção do domínio cotidianamente. Johnson (2017) aborda a complexidade do tema a partir de uma pergunta de difícil resposta que é feita a muitas vítimas: “Por que você simplesmente não foi embora?”. A armadilha é somente olhar para os comportamentos graves – que envolvem lesões físicas, agressões e ameaças – e ignorar “o controle coercitivo na ausência de agressões” (JOHNSON et al., 2017, p. 18 – tradução minha).

Não há uma visão holística ou contextual da violência quando ela é inteligida pelo sistema de justiça, que funciona de forma incidental. A intervenção judicial, começando pela polícia judiciária, “responde apenas ao incidente específico de agressão criminosa que desencadeou o pedido de ajuda e desconecta-o dos padrões de comportamento que controlam, intimidam e isolam a mulher” (JOHNSON et al., 2017, p. 9 – tradução minha). 6

O aspecto da repetitividade que legitima um domínio também é abordado por Segato (2003, p. 107) quando, ao refletir sobre a violência moral, afirma que “a manutenção dessa lei [patriarcal] dependerá da repetição diária, velada ou manifesta, de doses homeopáticas, mas reconhecíveis da violência instauradora” (tradução minha).

Identificamos, a partir da codificação dos dados, dois aspectos da vigência dessas leis que contribuem para sua renovação diariamente. Pequenos gestos, às vezes omissões, ou trajetórias que são evidenciados após o ponto final do feminicídio, quando a mulher finalmente exerce sua autonomia para tentar se libertar de uma relação vivida sob violência.

As dinâmicas de controle são sustentadas por omissões de atores sociais que tomam conhecimento da violência sofrida e permanecem inertes: familiares e amigos que sempre souberam da violência, e não “meteram a colher” ou comunicações de violências arquivadas devido à prescrição e inércia das instituições que compõem o sistema de justiça. Entendo que abordar a naturalização da violência pela comunidade e das instituições ajuda a compor um quadro semântico do feminicídio, já que a tolerância da violência pelo ciclo de relacionamentos contribui para a legitimação da ordem simbólica patriarcal. O mapeamento da análise situacional permite evidenciar os sujeitos implicados, os silêncios e as omissões que contribuem diretamente para a situação.

3.1.1. “Estava dançando como se não tivesse dono” : estratégias misóginas de manutenção do controle

A leitura dos depoimentos, colacionados em parte nas decisões, fez emergir os códigos “violência doméstica prévia”, “ameaças anteriores”, “histórico de violência”, “violência doméstica em outros relacionamentos”, “violência física”, violência psicológica” e “sentimento de posse”. O histórico de violência é citado na literatura como um dos mais importantes precursores do homicídio conjugal (CAMPBELL et al., 2007; JOHNSON, 2017) e foi um elemento comum à maioria dos processos da amostra.

Um estudo referência no tema, realizado por Dobash et al. (2009) com homens com condenações anteriores e outros sem nenhum registro criminal, revelou que em ambos os grupos o histórico de violência estava presente, embora no grupo de não condenados a violência anterior não tenha sido capturada pelo sistema de justiça e transformada em um histórico formal de antecedente criminal. De acordo com Block (2003), nos casos de morte por parceiro íntimo em que não foi possível observar …

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30 de Maio de 2024
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