9 A reversão da eurocentricidade conceitual dos direitos humanos a partir da sua tropicalização com a Constituição Federal de 1988
Sandra Regina Leal
Sumário: 1. Introdução – 2. Uma viagem à eurocentricidade conceitual dos direitos humanos: primeiro eixo analítico – 3. A emergência de uma nova dimensão dogmática para os direitos humanos: o segundo eixo analítico – 4. Considerações finais – 5. Referências bibliográficas.
1. Introdução
Assim como os seres humanos, os conceitos passam por transformações essenciais ou, quem sabe, existenciais. O certo é que assim como o processo de amadurecimento do ser humano acontece, o do mundo das ideias também.
Nesse jogo de produção, reprodução e ressignificação da vida e dos significados, uma regra é fatal para o bem ou para o mal: não se pode sucumbir ao desejo de manter-se preso ao instituído. Porque se isso acontecer, perde-se o momento catártico de – por instantes – viver o revolucionário e ínfimo momento do novo.
No entanto, refundar exige um esforço intelectivo, cognitivo e volitivo de quem o deseja fazê-lo porque envolve a escolha da interdisciplinaridade e, de forma mais ideal, da transdisciplinaridade. É fácil e atrativo optar por esse caminho, mas prosseguir nele é difícil e perigoso porque exige estudo, isto é, capacidade de aprender a dialogar com outras linguagens e seus mapas conceituais complexos.
O desafio de estudar e pesquisar sobre a problemática dos direitos humanos, primeiramente sob o viés da filosofia e, posteriormente, mais centrada na perspectiva jurídica a partir do direito internacional dos direitos humanos e dos tratados internacionais, é a de que há uma cisão de abordagens.
Se por um lado os jusinternacionalistas mencionam a importância de uma concepção filosófica de sustentação dos direitos humanos, fato é que tendem a reduzi-la à recorrente discussão acerca da “convicção compartilhada” propugnada pela Declaração Universal.
Por outro lado, as intervenções filosóficas não têm a preocupação de tratar da fundamentação filosófica dos direitos humanos como um parâmetro legitimador do direito internacional e até mesmo do direito constitucional diante do avanço do processo de globalizações.
Um equívoco porque dentro desse quadro de discussão sobre o futuro da Constituição, talvez o elemento mais mobilizador, e também preocupante, seja o da globalização. As transformações geo-históricas provocadas pela globalização têm sido analisadas de forma simplista, como via de mão única, ou seja, como abertura de fronteiras e espaços econômicos.
A grande dicotomia apresentada por esse movimento, que precisa ser pensada, é a de que paralelamente à dimensão econômica e financeira global renascem com intensidade as tradições regionais, a política municipal se fortalece, pois a cidade ganha novo espaço político; as organizações da sociedade civil passam a se relacionar com outras organizações mundiais, porém com atuação local.
Se a ideia de globalização, pelo menos do capital, não é nova, parece que a novidade reside na simbiose do aspecto econômico com o político por meio do avanço do neoliberalismo, que objetiva reestruturar a sociedade material e simbolicamente. Ou seja, essa nova fase do capitalismo representa a tentativa de recuperação da sua hegemonia, a partir de um conjunto articulado de reformas políticas, econômicas, jurídicas e sociais.
Conforme explicita Ianni, 1 o capitalismo é um processo civilizatório (assim como o socialismo) que produz e reproduz as condições materiais e espirituais das sociedades, principalmente a partir do século XX. Somente para exemplificar essa qualidade de recriação do capitalismo, cabe citar um dos seus períodos de oscilação: o mesmo capitalismo que sofreu com o impacto da bem-sucedida Revolução Soviética em 1917, e posteriormente com a consolidação do “socialismo real”, passa a adquirir novas características, particularmente com o término da Segunda Guerra Mundial, quando emergem estruturas mundiais de poder, decisão e influência que passam a discutir sobre o declínio do conceito do Estado-nação. A consequência imediata dessa crise foi a intensificação do processo de mundialização do capital.
Esse processo de globalização a que hoje se assiste não é fato acabado, mas processo em andamento, que começou a acentuar-se no século XX, com o processo de internacionalização do Estado provocado pela “desterritorialização do capital”, parafraseando Ianni. Se no século XIX a prioridade do Estado era o bem-estar, nas últimas décadas tem sido a de adaptar a economia nacional à economia mundial. Nesse processo de mutação, o capitalismo alterou sua forma, seu ideário, criando sempre novas tensões e contradições.
Trabalhar-se-á neste capítulo com a tese de rompimento com essa visão segregacionista tomando como opção metodológica de sistematização para o estudo o processo de reconstrução do significado dos direitos humanos a partir de um núcleo referencial constituído por dois eixos: um epistemológico, que conduz a uma procura pela fundamentação racional dos direitos humanos,e um político-dogmático, que objetiva recontextualizar o direito internacional em tempos de globalização.
Objetiva-se, com o cruzamento desses eixos analíticos, demonstrar que toda e qualquer discussão dogmática, particularmente na esfera do Direito Internacional dos Direitos Humanos, deve principiar por uma recuperação filosófica para não incorrer no
risco de repro…