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Direito Processual Tributário Brasileiro

Direito Processual Tributário Brasileiro

Capítulo 2. Princípios Fundamentais do Direito Processual Tributário

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1. A doutrina clássica do Direito Tributário sob a óptica do processo

a. As diversas teorias a partir da Reichsabgabenordnung (relação concêntrica, conteúdo complexo, esquema gianniniano etc.). A doutrina tributária sempre se empenhou em desenhar o esquema lógico da relação tributária enquanto fenômeno jurídico. Seja qual for a articulação ou a denominação proposta para a relação tributária, converge invariavelmente a doutrina para as inegáveis particularidades dos mecanismos de atuação dessa relação obrigacional, buscando, sempre, compreender e explicar a estrutura lógica do fenômeno relacional tributário diante da complexa correlação entre suas várias facetas: obrigação principal, deveres instrumentais, fiscalização, lançamento, controle, processo, sanção administrativa, sanção penal etc.

O advento da Ordenação Tributária Alemã (Reichsabgabenordnung), em 1919, é apontado como o marco intelectual sobre o qual se assentam as lições e teorias clássicas que se apresentam como fundacionais do Direito Tributário nos moldes como foi construído no decurso do século XX. 1

As características histórico-doutrinárias mais marcantes do Direito Tributário podem ser visualizadas desde o estudo pioneiro de Blumenstein, 2 que marca com vigor o trânsito da relação de poder para a relação jurídica, de Nawiasky, austríaco das relações jurídicas concêntricas (Konzentrische Rechtsbeziehungen), 3 de Hensel, 4 na Alemanha, com sua teoria da obrigação tributária e do fato imponível, passando-se pelos italianos, com destaque para o chamado “esquema gianniniano”, em que Achille Donato 5 expõe sobre o “conteúdo complexo” da relação jurídica tributária, e para a tese dinâmica, fortemente influenciada e difundida por Gian Antonio Micheli. 6 - 7

b. Avaliação das teorias clássicas sob a óptica do Processo Tributário: influência negativa. Ao focarmos sob a lente do Processo Tributário essas diferentes teorias clássicas produzidas com o escopo de explicar o fenômeno tributário em sua multifacetada configuração 8 poderemos constatar o seguinte:

i) a doutrina clássica avançou bastante na análise do conteúdo do Direito Tributário material ou substantivo, dimensão estática da relação, construindo sólida orientação quanto aos princípios retores da incidência (garantias materiais da relação tributária);

ii) seja de modo explícito ou implícito, esta doutrina pôs em alto relevo as características que diferenciam a obrigação tributária em seu contraste com as obrigações pecuniárias do Direito Privado, civis ou comerciais, sob o ângulo de sua atuação ou formalização;

iii) avançou também no campo do Direito Tributário formal, dimensão dinâmica da relação, dissecando-o sob diversos ângulos;

iv) deixou, contudo, à margem da análise jurídica as questões econômicas, sociais, políticas etc., que fatalmente afetam o complexo fenômeno da tributação, gerando a inevitável dessubstanciação da matéria;

v) mostrou-se, também, incipiente quanto à percepção da importância da lide tributária (dimensão crítica) e de seus instrumentos de solução administrativa e judicial;

vi) não raro a doutrina clássica, assim como o fez com o direito material (Capítulo 1) reduziu a mero procedimento administrativo as questões relativas ao controle da atividade administrativa e da resistência do contribuinte às pretensões fiscais;

vii) consequentemente, é notável a ausência de percepção do valor teórico da inserção sistemática do fenômeno processual (como um subsistema de garantias) na dimensão crítica da relação jurídica tributária.

Essas construções – tidas como fundacionais para o Direito Tributário – repercutem profundamente, com suas virtudes e defeitos, na compreensão contemporânea da disciplina e provocam, em alguns aspectos, uma perigosa deformação histórica, especialmente no plano de nosso objeto de estudos que é o Processo Tributário.

Assim é que, entre nós, aquelas mesmas características são encontráveis, desde Alfredo Augusto Becker, 9 Geraldo Ataliba, 10 Paulo de Barros Carvalho 11 até Marçal Justen Filho e tantos outros.

Apenas uma parcela autorizada da doutrina, pouco difundida, porém, tem o mérito de inserir o processo no contexto da relação tributária, buscando identificar os caracteres diferenciais desta disciplina em face da lide tributária. Esta parcela doutrinária está representada pelos aportes de Carnelutti em 1932 (teoria da diferenciação) e Allorio em 1942 (teoria unitarista) na Itália, Rubens Gomes de Sousa em 1943 (teoria da harmonização) no Brasil, Sainz de Bujanda em 1985 (teoria da substantividade) na Espanha, e Valdés Costa em 1992 no Uruguai (teoria da garantia jurisdicional), em alentados estudos que por apresentarem nuclear importância para o Direito Processual Tributário serão examinados mais adiante com maior detença.

2. A percepção do fenômeno processual tributário e a doutrina contemporânea: aspectos pontuais

Embora se afigure inegável que a limitada abordagem que a doutrina tributária clássica concedeu aos problemas de processo influenciou negativamente a inserção das garantias processuais no plano da relação jurídica tributária, começa a surgir, sem embargo, na doutrina contemporânea, a percepção da importância do fenômeno processual e sua influência no campo da relação jurídica tributária.

Cumpre-nos destacar, de berço argentino, os aportes de Fonrouge e Navarrine, Villegas, Jarach e, mais recentemente, Beltrán, Rodolfo Spisso e José Osvaldo Casás. 12 Ainda assim, peca esta parcela da doutrina pelo teor ora excessivamente pontual de sua abordagem, ora excessivamente pragmático, “manualizado”, com raras exceções.

Veja-se, ilustrativamente, o realce atribuído por Héctor Villegas, 13 com a intenção de por a lume os contrastes teóricos que a matéria suscita, à observação de Carlos Palao Taboada em seu prólogo à edição espanhola do vol. III dos Principios de Derecho Tributário, de Berliri: “Comienza, en efecto, a difundirse la convicción de que la justicia en este importante sector de la vida social no depende sólo de una correcta formulación de las leyes tributarias substantivas, sino tambíen, de manera decisiva, de una regulación de la actividad administrativa y de los recursos contra su ejercicio ilegal que armonice los derechos de la hacienda y de los contribuyentes”. 14

Não se pretende, como adverte Villegas, conceber o Direito Tributário reduzido a “função administrativa”; “procedimento realizador do poder tributário”; “exercício de poder através de atos arrecadadores”; “mecanismo técnico de imposição”; “conjunto de regras técnicas econômico-tributárias” ou ainda simples “normatividade processual”, 15 mas sim encetar o aprofundamento dessa faceta cada vez mais presente na vida do Direito Tributário que é a lide entre a Administração e o contribuinte.

É facilmente verificável que a acuidade da visão de alguns dos maiores cultores de nosso Direito, processualistas ou tributaristas, empresta ao tema a projeção que lhe é devida. Com muita frequência as preocupações mais candentes são encontradas nos escritos de tributaristas. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Jorge Beltrán, denominado de “El Principio Constitucional de Adecuada Tutela Jurisdiccional en Materia Tributária”, no qual o ilustre tributarista argentino debate-se com os inumeráveis empecilhos, presentes na legislação tributária argentina, opostos à plena cognição dos atos administrativos tributários (inclusive a vetusta regra do solve et repete), barreiras estas que, se não superadas, se constituem em agressões à garantia constitucional do devido controle jurisdicional que é imanente ao próprio direito de defesa.

Diante das gravíssimas restrições presentes na legislação argentina conclui o autor, asseverando: “Toda la legislación tributária que, de alguna manera, impida un debate jurisdiccional administrativo amplio, respecto de toda clase de actos, de alcance particular o general, debe ser asimismo revisada y acomodada a una época atual, en que los derechos humanos se han firmado contundentemente frente a un exagerado interés público”. 16

Lembra oportunamente Beltrán 17 que o Direito Tributário regula “las relaciones más rispidas que se generan entre los seres humanos”, uma vez que, enquanto nas relações contratuais e patrimoniais entre particulares registra-se, via de regra, o elemento volitivo, isto é, a manifestação de vontade com relação às condições avençadas, na relação tributária, diversamente, esta expressão volitiva se opera, de modo relativo, através de seus representantes legislativos.

Também em tempos muito próximos, uma das mais notáveis expressões do Direito Tributário espanhol, Ferreiro Lapatza oferece estimulante aporte doutrinário ao Direito Processual Tributário. 18 Principia seu marcante estudo da análise por nós tão conhecida, mas pouquíssimas vezes admitida: o Direito Tributário ainda padece, em sua construção e atuação, da tradicional presença do elemento “poder político”, influência insuportável nas relações jurídicas nascidas como sucesso do Estado de Direito. 19

Tais quadrantes vazios de direito 20 soem localizar-se, com indesejada frequência, nos domínios dos ingressos públicos, de forma muito particular no setor dos ingressos tributários que “não são apenas a mais clara manifestação do poder senão que constituem conditio sine qua non para a existência mesmo do poder”, razão pela qual o poder político, conclui o autor, que reiteradamente busca, no seio das democracias, libertar-se das “ataduras” do Direito, e “manifesta com especial virulência esta tendência no âmbito do poder tributário”.

Especificamente no Brasil, em que pese a preocupação processual tributária presente em alguns estudos de Arruda Alvim 21 e Ataliba, 22 e ainda o laborioso trabalho de Gilberto Ulhôa Canto em seu Anteprojeto e, muito especialmente, a tese de Rubens Gomes de Sousa 23 (à qual já nos referimos e será examinada mais adiante), remanescemos dominados por construções episódicas (fracionadas), senão essencialmente pragmáticas ou ainda excessivamente unilaterais (v.g., vislumbrando o fenômeno pelo ângulo parcial do Processo Civil), que não logram, dessarte, visualizar o fenômeno processual tributário em sua complexa inteireza.

Entre os trabalhos monográficos de mais destaque desse período estão aqueles desenvolvidos por Cleide Cais, 24 dedicado ao exame do Processo Judicial Tributário unicamente à luz dos fundamentos do Processo Civil, e Hugo de Brito Machado, voltado para o exame da principal ação judicial tributária, o mandado de segurança. 25 Mais recentemente, veio à luz a obra magistral de Eduardo Arruda Alvim, também destinada ao mandado de segurança enquanto instrumento de tutela judicial dos contribuintes. 26

Sem embargo de não se tratar de trabalho especificamente processual tributário, mas de autêntico tratado sobre o lançamento, o trabalho de Alberto Xavier, denominado Do lançamento – Teoria geral do ato, do procedimento e do processo tributário, revela-se obra de leitura obrigatória, não apenas pela reconhecida envergadura do autor, como pela abrangência na abordagem de temas processuais tributários, tanto de caráter administrativo como judicial. 27

Infelizmente, o Processo Tributário caminha vagarosamente no Brasil. De fato, à exceção, talvez, da renovada criação da Justiça Federal, em 1946, com seu Tribunal Federal de Recursos, transformado em STJ e virtualmente substituído pelos Tribunais Regionais Federais instalados em cinco regiões do País por expressa previsão da Constituição de 1988, pouco evoluiu nosso sistema em termos orgânicos e fundamentais, especialmente em face da notável falta de apetite legislativo para esses assuntos processuais, marca comum de quase todos os governos, sempre mais dedicados a realizar modificações de ordem material.

Apreciamos, sem embargo, da metade para o final do século XX, mais especialmente na última década, grande evolução jurisprudencial em matéria de tutela dos contribuintes, em particular com o sensível alargamento das hipóteses de cabimento do mandado de segurança preventivo em matéria tributária. Assistimos então, não temos dúvidas, a um claro evolucionar das garantias formais dos contribuintes, mais por força criativa jurisprudencial que legislativa. 28 Ainda assim, cremos, os esforços de nossos juristas e tribunais voltam-se, historicamente, para o asseguramento de garantias materiais, buscando a cristalização de princípios materiais condicionantes da atividade fiscal do Estado.

Essa evolução necessita ganhar constância e robustecimento. Propõe o eminente Prof. Arruda Alvim que, na análise do tema, se lancem olhos ao passado, de modo a que se encete abordagem comparativa em face dos regimes mais antigos, como forma de conferir o necessário realce às conquistas hodiernas. 29 De fato, garantias tornadas hoje quotidianas, prosaicas, já foram, outrora, poderosos motores de sangrentas revoluções que traziam, por escopo, o anseio pelo assentamento de limites à soberania interna, inicialmente monárquica e imperial e, a posteriori, soberania estatal, em busca do regime republicano – estribado no que chamamos Estado de Direito – que até hoje esforçamo-nos por aperfeiçoar.

É de constatações de tal natureza que emerge com cristalina clareza a importância do Processo Judicial Tributário, na medida em que, estando o Estado de Direito caracterizado, fundamentalmente, pela inegociável adstrição do Estado – administrador do interesse público – à lei e à fiscalização do Poder Judiciário; e se, no poder tributário reside historicamente a mais poderosa influência do Estado na vida privada dos cidadãos; a mais elevada expressão do estágio de desenvolvimento de nossas instituições jurídicas manifesta-se através da construção de aparato processual em que efetivamente o Poder Judiciário – guardião das liberdades individuais – atue como instrumento útil para a proteção das garantias materiais dos cidadãos-contribuintes nesse seu íntimo relacionamento com o ente estatal.

Reconhece Arruda Alvim a necessidade de que o Estado receba apropriado instrumental para sua atuação, de modo que, ao funcionar como aglutinador da soma dos interesses individuais, disponha, ainda que no contexto do Estado de Direito, de instrumental jurídico-material “mais agressivo do que aquele que dispõem os particulares”. Por tal razão, os atos administrativos são dotados da chamada autoexecutoriedade, atributo presente em diversas espécies de comandos administrativos, que se presta para pôr em relevo a predominância do interesse público sobre o privado, assim ocorrendo, exemplifica o autor, em situações rotineiras como o fechamento de uma casa que esteja vendendo produtos estragados, a cassação de uma licença etc., restando apenas ao administrado, caso tenha se julgado lesado, recorrer à tutela judicial em busca do desfazimento do ato administrativo.

O problema do Processo Tributário sempre pode ser enfocado sob prismas distintos, ora sob o prisma judicial ora sob o foco administrativo, mas raramente de modo integral ou abrangente. Quanto ao Processo Administrativo Tributário, Geraldo Ataliba expressava sua constante preocupação, em lição vintenária que merece ser relembrada em sua integralidade: “Estabelece-se conflito entre o fisco (órgão fazendário do Estado) e o contribuinte, sempre que aquele manifesta uma pretensão resistida por este. Ao exigir o fisco um tributo, uma multa ou um dever acessório, pode o sujeito passivo dessas exigências a ela resistir, por entendê-las infundadas ou excessivas. A divergência – ensejadora do litígio, contenda, dissídio – sempre se fundará em diversa interpretação da norma jurídica aplicável ou na diferente apreciação ou qualificação jurídica dos fatos relevantes para os efeitos de aplicação da norma. Como a Constituição protege o patrimônio e a liberdade contra a ação estatal – somente consentindo que esses bens sofram diminuição ou detrimento mediante lei –, dessa divergência surge o direito de o contribuinte pedir ao Poder Judiciário a declaração da correta aplicação da lei ao caso concreto. Diversas razões recomendam que se crie um sistema de eliminação célere e eficaz desses conflitos, tendo em vista a harmonia fisco-contribuinte e os interesses públicos em jogo. Se todas as divergências forem submetidas ao Poder Judiciário, este submergirá sob o peso de um acúmulo insuportável de questões para julgar. Além disso – e por isso – tardarão muito as soluções, em detrimento das partes envolvidas. Daí a razão pela qual, em quase todos os países, se criaram organismos e sistemas para reduzir o número de causas instauradas perante o Poder Judicial”. 30

Paulo de Barros Carvalho, em valioso exame, identificou a característica primacial que implica a diferente óptica com que pode ser …

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24 de Maio de 2024
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