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Curso de Processo Civil Coletivo

Curso de Processo Civil Coletivo

Capítulo 4. A Racionalidade da Tutela Coletiva e o Papel do Julgador

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4.1. Premissas interpretativas

4.1.1. O processo contemporâneo e as instituições processuais

Como visto no capítulo inicial deste Curso, o direito processual civil contemporâneo se encontra em um movimento de expansão funcional, exigindo a utilização de novos ferramentais interpretativos. É preciso repensar a lógica da disciplina, em um arranjo no qual é essencial que as leituras estejam atentas não apenas à norma, mas ao contexto em que estão inseridas. Em outros termos, a um olhar panprocessual.

Considerando esse percurso, a efetividade do processo deve passar obrigatoriamente por uma adaptação de sua estrutura, adequando-a às alterações da jurisdição. Surge, com isso, a necessidade de uma verdadeira recomposição das instituições processuais – aqui encartadas como “regra procedimental”, “princípios processuais” e “Poder Judiciário”. É a partir desse processo inventivo que se torna possível compreender o direito processual coletivo, extraindo-se as premissas necessárias para sua efetividade.

Em relação à primeira das instituições, não restam dúvidas de que o processo possui em sua base um procedimento, como demonstra Fazzalari 1 . Para José Frederico Marques, o procedimento processual designaria “a marcha dos atos do juízo, coordenados sob formas e ritos, para que se atinjam os fins compositivos do processo” 2 , ou seja, ditaria o ritmo e os mecanismos essenciais à materialização do exercício jurisdicional.

Como afirma Calamandrei, a crença em uma possível “segurança” fez com que esse procedimento processual civil tenha sido delineado de maneira formal 3 . Essa característica é marcante no “sistema hierárquico” de Damaska, refletindo em dados como a prevalência da forma escrita sobre a forma oral, a pré-estipulação de ritos imutáveis 4 e a separação estanque entre julgadores (profissionais) e leigos 5 .

Ocorre que o próprio Calamandrei ressalta que uma forma incompatível com sua função se deturpa em mero formalismo inútil 6 . Além disso, no “modelo hierárquico”, entre a realidade do caso ou a subsunção a standarts preestabelecidos (regras) a decisão deveria privilegiar o segundo dado 7 . E essa não parece ser a postura condizente com o papel que se espera que o processo civil contemporâneo desempenhe. Realmente, muito do procedimento que temos hoje se transformou naquele indesejado formalismo e, para que o processo seja efetivo, deve ser reconsiderado 8 .

A mesma necessidade de revisão vale para os princípios e garantias processuais. Tratando-se de cargas em grande medida valorativas, seu preenchimento hermenêutico deve adaptá-las ao novo contexto.

Foi o que ocorreu com o “acesso à justiça”, que a partir das teorizações de Cappelletti e Garth ganhou novo conteúdo e relevância especial no estudo do processo civil. Com o mérito de fundirem a vivência e a experiência pessoal de países com culturas, sistemas e perspectivas diversas os autores comprovaram que o conteúdo normativo atual do “acesso à justiça” não se confunde com aquele vigente no contexto liberal-burguês, em que se encerrava na prerrogativa do indivíduo de levar seu direito ao Judiciário 9 . Atualmente, a materialização do direito impõe a adoção de medidas estatais capazes de efetivamente trazer ao sujeito a melhoria concreta decorrente do postulado da “justiça” 10 . A garantia/princípio seria o mesmo, mas seu conteúdo teria sofrido considerável mutação.

O cenário não muda quando se analisa o Poder Judiciário, terceira das instituições aqui referidas e responsável por autuar o processo. Por força de sua própria característica organizacional, a análise dessa instituição se desdobra em duas frentes. De um lado, é preciso investigar a capacidade global do Poder Judiciário de desempenhar os escopos do processo civil contemporâneo. De outro, a mesma avaliação deve ser feita em relação aos seus agentes, responsáveis por ultimar a função judicatória.

Esse segundo aspecto é mais trabalhado pela moderna doutrina processual civil brasileira. O papel do julgador enquanto agente constitucional é amplamente relido, por exemplo, por Luiz Guilherme Marinoni 11 . Também são comuns os estudos referentes aos seus poderes ao longo do feito, na linha de José Roberto dos Santos Bedaque 12 . Em todos os itens, o que se vê é que o magistrado bouche de la loi existente ao tempo do Estado Liberal e das teorizações clássicas da jurisdição não possui compatibilidade com o espaço contemporâneo, e sequer seria desejável para que o processo pudesse se fazer verdadeiramente efetivo.

A observação orgânica do Poder Judiciário e de sua compatibilidade com os novos traços funcionais do processo é menos comum, mas não menos relevante. Realmente, a propagada ruptura com a postura liberal clássica impulsiona o Poder Judiciário a afiançar a roupagem de suas funções, o que depende de uma reflexão interpretativa mais complexa e detalhada, como firmado por Fiss ao fundamentar sua “reforma estrutural” 13 . Se esperamos que o magistrado atue como “agente constitucional”, é preciso assegurar condições de facticidade para que essa missão seja verdadeiramente cumprida.

4.1.2. O processo coletivo e a releitura do direito processual

Destacando os aspectos apresentados, abre-se espaço para uma constatação breve, mas imprescindível, para viabilizar que os escopos da jurisdição sejam desempenhados de maneira mais efetiva: o processo não é apenas jurídico. Em ampla harmonia ao panprocessualismo aqui defendido, surgem novas balizas interpretativas. Essa guinada é elemento sine qua non para o entendimento da processualística coletiva.

De fato, se é preciso que o direito processual civil se adapte para que possa apresentar aderência à realidade fática, no processo coletivo essa releitura é ainda mais imprescindível (apresentando conflitos diagnosticados por Hodges 14 ). Por mais que o tema não seja recente no direito brasileiro e tenha sido objeto de preciosas teorizações, ainda é comum que sua análise não tenha a devida atenção às releituras que seu entendimento pressupõe. É preciso que a reflexão esteja atenta a esse dado, constatando que, aqui, o arsenal hermenêutico e a lógica que lhe permeia não são rigorosamente os mesmos existentes no processo civil individual.

Esse problema pode ser verificado quando nos direcionamos, por exemplo, aos princípios norteadores do direito processual, indagando em que perspectiva eles são considerados. Normalmente, as garantias do processo civil são pensadas a partir dos sujeitos processuais envolvidos no litígio. Ampla defesa, contraditório, acesso à justiça e devido processo legal tomam em consideração a proteção que se deve dar às pessoas que se envolvem no processo, buscando proteger suas posições jurídicas da melhor forma possível. Todavia, quando se pensa nos interesses transindividuais, a situação é diversa. Porque aqui se tutela interesses “não subjetivos” ou interesses de massa, é natural que a situação dos sujeitos processuais (em especial daquele que representará o grupo em juízo) tenha menor relevância.

Os princípios fundamentais processuais, portanto (senão apenas no processo coletivo, ao menos nele especialmente), não podem ser pensados somente em vista dos sujeitos processuais envolvidos. Exigem consideração a partir dos interesses tutelados e, de modo mais amplo, a partir de todos aqueles que fazem parte da sociedade. Assim, as garantias não podem ser pensadas apenas do ponto de vista dos indivíduos, enquanto faculdades ou poderes de que estes são titulares. Possuem assertividade, também, para a própria comunidade – como valores ou fins. 15 É sob essa perspectiva que se deve tratar aqui dos princípios processuais.

Por outro lado, o próprio conteúdo dos direitos processuais também sofre adaptações no campo da proteção coletiva. Pensadas que foram para os processos individuais, é natural que algumas das cláusulas tradicionais que encartam garantias fundamentais exijam reformulação para sua aplicação no plano coletivo.

É exemplificativa aqui a garantia do devido processo, prevista no art. 5º, inc. LIV, da Constituição Federal brasileira, 16 e que, especialmente no plano coletivo, exige em sua leitura atual uma postura que transcende os seus elementos clássicos. 17 O aspecto vem sendo insistentemente salientado pela doutrina, que percebe as necessidades peculiares do litígio coletivo e procura oferecer uma visão adaptada da garantia do devido processo legal e de seus elementos. 18

De fato, no campo coletivo, dificilmente se conseguirá dar a mesma expressão à garantia do devido processo legal que se oferece no plano individual. Isso não significa dizer que o princípio, no campo coletivo, deva ser mutilado ou sacrificado. Apenas se torna necessário revisitar o seu conteúdo à luz das necessidades da proteção coletiva, adaptando-o às peculiaridades e às exigências inerentes a essa forma de tutela.

Tome-se o singelo exemplo da legitimidade para a causa e não será árduo notar que sua aplicação no processo coletivo e no processo individual exige a adoção de parâmetros diversos. O mesmo se diga em relação a temas como a coisa julgada ou os efeitos da sentença. Os limites comumente postos a esses institutos têm outra dimensão no plano coletivo, já que isso é inerente à própria lógica ali existente. Essa ampliação desses conceitos, por óbvio, não traduz o sacrifício à noção do devido processo legal, mas apenas uma releitura da baliza a partir das necessidades e das particularidades desse tipo de litígio. 19

Essa compreensão é necessária tendo em conta que o entrave central para a eficiência da coletivização no direito brasileiro não é apenas normativo. Pelo contrário, identificamos em sua base um dado cultural anterior à legislação e responsável por condicionar o seu conteúdo: o pensamento individualista liberal, levando à crença de que o processo não pode tocar o sujeito sem a sua manifestação de vontade.

A lógica da coisa julgada secundum eventum litis, a ser futuramente apresentada, é emblemática dessa mentalidade, pois sua origem e sua função possuem como elemento implícito (mas de obviedade patente) a tentativa de inviabilizar que o sujeito tenha seu interesse material atingido sem a sua participação pessoal no litígio. Levantam-se dados como o “direito de ação” e o “devido processo legal”, com conteúdo tradicional, para indicar que um sistema de imutabilidade individual e coletiva pro et contra conflitaria com “direitos processuais individuais”.

De outro lado, será igualmente percebido que o mesmo argumento é utilizado por alguns para inviabilizar até mesmo a tutela de um interesse individual sem que seu titular manifeste explicitamente a vontade na proteção, culminando na defesa do modelo de “sentença condenatória genérica/liquidação e execução individual”. Essa mentalidade, lendo o processo coletivo com lentes flagrantemente individualistas, também condiciona aspectos procedimentais como a suspensão das demandas individuais durante o curso da ação coletiva e a interrupção, pelo feito coletivo, do prazo prescricional das pretensões individuais – sugerindo boa dose de cautela.

4.1.3. O processo coletivo e a adequada representação de interesses

Sabe-se que os elementos suscitados no item anterior poderiam ensejar uma série de dúvidas e questionamentos, já que se afastam de alguns dos dogmas inerentes ao nosso pensamento. Dessa forma, a matéria recomenda algumas considerações adicionais, demonstrando como esse rearranjo interpretativo pode desempenhar um importante papel na estruturação de um sistema efetivo de processo coletivo.

Para elucidar essa questão, tomemos como parâmetro a ideia de “direito de ação”, observando as adaptações necessárias em sua compreensão para viabilizar a construção de um sistema efetivo de tutela coletiva. Isso, em especial, por se tratar de uma das construções mais arraigadas em nossa doutrina, assumindo papel de destaque no desenvolvimento de nossa mentalidade jurídica.

Realmente, não há no Brasil manual de “teoria geral do processo” que não dedique um considerável número de páginas ao estudo da “ação”, colocando-a ao lado da “jurisdição” e da “defesa” como instituto central da matéria.

Considerando essa preocupação, é notório em nossa doutrina que durante um vasto período de tempo predominou noção sobre o tema. Também são conhecidas as separações entre actio e Klage (Windscheid 20 ) e entre direito violado e direito de reparação, (Muther 21 ), os estudos de Plósz e de Wach 22 e a aproximação entre “direito de ação” e “direito de petição” (Couture 23 ). A “ação” como poder de fazer declarar a vontade da lei em razão do adversário, ideia de Chiovenda, é igualmente analisada 24 . Por fim, recebe primazia a “teoria eclética” de Liebman e as suas “condições de ação” 25 .

Em um enfoque mais funcional, percebe-se que o desenvolvimento da garantia teve como fim conferir ao cidadão o direito de ir aos Tribunais exigir do Estado a resolução de um litígio (com Plósz) ou o poder de impulsioná-lo a essa tarefa (à la Chiovenda). Tratava-se de uma contrapartida ao monopólio jurisdicional, assegurando que a vedação da autotutela não importaria na ausência de instrumentos disponíveis aos jurisdicionados para a proteção de seus interesses materiais 26 .

Recentemente, concluiu-se que, por mais que cada posicionamento a respeito do mecanismo de exercício dessa garantia tenha sido compatível com seu momento histórico, as modificações econômicas e estruturais tornaram sua manutenção para o presente contexto falha. Para assegurar a funcionalidade do processo a partir do redimensionamento do espaço público seria preciso reler a garantia de ação, em moldura análoga aquela construída por parte da doutrina brasileira 27 (reaproximando-o processo e direito material ao conceber o “direito de ação” como “direito à tutela jurisdicional adequada” 28 ).

Diante dessa construção, nota-se que o direito de ação se estruturou a partir de baliza similar àquela que alicerçou no âmbito comparado garantias materialmente análogas, como o chamado “direito a um dia no Tribunal” 29 . Esse elemento foi central ao desenvolvimento do direito processual civil nos Estados Unidos, por exemplo, dialogando com a própria ideia de “devido processo”. Como, porém, foi possível o desenvolvimento das class actions em um espaço marcado por esse desenho?

Essa resposta nos é em grande medida trazida por Owen Fiss ao analisar o caso Martin v. Wilkins (cuja matéria de mérito foi a possível implementação pelo Corpo de Bombeiros da cidade de Birmingham de medidas internas voltadas a beneficiar a ascensão profissional dos servidores negros) 30 . A contribuição é rica, acreditando-se que pode exercer papel decisivo na composição interpretativa de nosso processo coletivo.

Observando o caso, constata-se que a principal discussão travada pela Suprema Corte em sua análise não se deu no entorno do acerto da medida ou de seu impacto sobre os bombeiros beneficiados, mas do prejuízo concreto que ela poderia trazer aos bombeiros brancos e (tendo em vista esse dano em potencial) da legalidade de sua adoção sem que lhes fosse garantido o “dia no Tribunal” 31 .

Criou-se, com isso, uma oportunidade para o reexame da garantia. Por mais que o conteúdo da decisão tenha sido contrário à posição de Fiss, o debate ensejou uma nova preocupação e deu causa a alterações legislativas que de algum modo romperam com o próprio entendimento então exposto pelo órgão julgador.

Assim, a tese de que não haveria possibilidade de vincular o indivíduo a uma decisão sem que lhe tivesse sido oportunizado participar de sua construção se sagrou vencedora por maioria, decidindo-se pela impossibilidade de o Corpo de Bombeiro adotar a medida sem a participação dos prejudicados em potencial 32 . De acordo com Fiss, a Suprema Corte concluiu que o “devido processo” acarretaria a proteção constitucional de um “direito individual de participação”, restringindo as hipóteses de extensão subjetiva da coisa julgada ou do collateral estoppel 33 .

Para o autor, porém, o direito assegurado pela cláusula due process para proteção do interesse material não seria de participação, mas de representação – tornando incorreta a afirmação de que uma decisão não poderia vincular indivíduos que não tivessem participado processualmente do debate 34 . A conclusão adequada a ser extraída da axiologia processual seria que “nenhum indivíduo poderia ser vinculado por uma decisão a não ser que tivesse tido seu interesse adequadamente representado” em juízo 35 , leitura partilhada por Kevin Clermont 36 .

Assim, a constatação geral de Fiss é que a melhor apreciação do caso (de índole claramente coletiva) impediria que em seu âmbito fosse conferido ao “dia no Tribunal” conteúdo similar àquele classicamente talhado. Essa preocupação deveria ter seu foco deslocado para a representação de interesses 37 .

Indo além, vemos que essa inversão de lógica (legislada para casos de …

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26 de Maio de 2024
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