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Teoria da Improbidade Administrativa

Teoria da Improbidade Administrativa

Capítulo I. A Lei Geral de Improbidade Administrativa (Lgia): Natureza e Alcance

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Embora tenhamos denominado, desde o início, a Lei Federal 8.429/92 de “Lei Geral de Improbidade Administrativa (LGIA)”, posteriormente renomeada como Código Geral de Conduta, num rótulo talvez mais significativo, o certo é que devemos justificar essa assertiva, uma vez já assentadas as bases ou pilares conceituais do ilícito de improbidade.

Neste capítulo, exploraremos as razões pelas quais julgamos a LGIA um Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros. A Lei Geral aqui examinada é, em realidade, um Código Geral de Conduta, com normativa jurídica, força coercitiva cogente, alcance nacional e balizador de todo o setor público, em suas vertentes fundamentais.

1. Código Geral de Conduta dos agentes públicos brasileiros

Um Código Geral de conduta tem características marcantes e essenciais. Vejamos sua importância e traços peculiares. Observemos também vantagens e desvantagens em sua utilização, riscos, custos e resultados que podem ser alcançados, em um balanceamento equilibrado dos direitos em cena. Pode-se reparar que o sistema brasileiro movimenta projetos em sintonia com as tendências globalizadas, especialmente no trato de assuntos expostos aos processos codificatórios pontuais, assimilando influências mundiais recentes e importantes e até ostentando pretensões à originalidade.

Tomaremos a ideia de Código não no sentido tradicional/clássico da expressão, fundada no direito codificado do século XIX, no berço francês, mas em sua acepção mais atual, herdeira dos valores inspiradores dos famosos Códigos norte-americanos de direito, nos mais insuspeitos domínios sociais. Repare­se, aliás, na própria origem do direito administrativo por agências, que é a marca peculiar daquele sistema jurídico no decorrer do século XX e que projeta influências notáveis nos regimes jurídicos democráticos da Europa e da América Latina, para ficarmos com estas referências singulares e marcantes.

Em realidade, há que se atentar ao fenômeno designado por García de Enterría como a “nova codificação” do direito, processo muito recente que ganha impulsos extraordinários, nos cenários europeus, a partir de 1989, apartado dos paradigmas clássicos do direito continental-europeu, o qual carregava um pesado ideário político-normativo de certeza, unidade e segurança absolutas e, além disso, de supremacia sobre as demais normas do ordenamento. Era o ideário moderno. Sabemos todos, na esteira do que anota o jurista espanhol, que a codificação napoleônica não subsiste dentro dos paradigmas originais, porque substituída pela fragmentação do direito dos juristas. A “nova codificação”, segundo o “Maestro” espanhol, diferencia-se radicalmente do modelo napoleônico e tem múltiplas facetas, encontrando raízes mais diretas no direito norte-americano e na expansão dos Estatutos, que resultam redefinidos por influências oriundas dos modelos romano-germânicos. Tais Códigos, revitalizados, exercem função sistematizadora de regras administrativas e legais pertinentes à determinadas áreas, sem impedir avanços setoriais e integradores, sem ambições políticas desmedidas ou irreais, no plano das realidades complexas e dinâmicas, como anotou o catedrático europeu.

Não deixa de encarnar, esse novo modelo de Código, num prisma específico, um ideal de racionalização e melhor visibilidade das normas, dando contraponto ao fluxo veloz de arbitrariedades e incertezas associado ao decisionismo judicial e ao emaranhado legislativo. Esses Códigos não pretendem substituir outras normas que possam vir a ser integradas no sistema, repita-se, nem impedir os avanços legislativos ou normativos, mas apenas sinalizar soluções mais diretas aos problemas, com patamares mais adequados de certeza e segurança jurídicas, recuperando alguns valores perdidos na veloz pós­modernidade. Esse processo, de corte anglo-saxônico, ganhou corpo inclusive no direito francês, berço maior da codificação clássica, em que há Códigos temáticos, aplicáveis a conjuntos de normas homogêneas e coerentes, inconfundíveis com qualquer espécie de aglomeração ou recopilação de normas. Essa tendência tem se alastrado também ao direito comunitário europeu. Exemplo máximo dessa técnica, conclui o catedrático espanhol em seu inolvidável estudo sobre esse fenômeno, é o texto consolidado do novo Tratado de Amsterdã que, firmado em 02.10.1997, entraria em vigor a partir da ratificação dos Estados-membros, resultando em um texto enxuto e claro, tido como a nova Constituição europeia, denotando a ideia e a preocupação de recuperar um novo processo codificatório consentâneo com a dinâmica normativa integradora. 1

A LGIA, em nosso entender, encaixa-se nesse conceito de “Código”, por suas características fundamentais, tendo por objeto central regular a “conduta” de todos os agentes públicos brasileiros, com a cominação de sanções jurídicas às posturas transgressoras. Nesse passo, há uma aproximação a determinados modelos regulatórios que, vigentes em outros cenários, buscam primordialmente a implementação de valores éticos. Não obstante essa aproximação, diante da variedade das espécies codificatórias em jogo, a LGIA assume suas feições peculiares e sua própria identidade no sistema constitucional pátrio, reclamando o reconhecimento de seu regime jurídico e sua singularidade nos cenários de direito comparado.

Deve-se atribuir à LGIA um papel inovador e rompedor de paradigmas não apenas no sistema brasileiro, como também no direito comparado, consoante já tivemos oportunidade de aduzir por ocasião da tradução da Lei 8.429/92 ao idioma espanhol, oportunidade em que denominamos a LGIA de Código geral de conduta dos agentes públicos brasileiros. 2

1.1. Natureza e alcance dos Códigos Gerais de Conduta

O movimento dos Códigos de Ética nasceu nos Estados Unidos da América, embora as raízes históricas do ideal de codificação de normas se percam no tempo, tendo, induvidosamente, na Revolução Francesa seu marco mais direto. Os novos Códigos têm, de qualquer sorte, nos modelos norte-americanos suas principais referências de inspiração, ainda que o ideário básico possa ser reconduzido à bases comuns nos processos civilizatórios, calcados em valores como segurança, coerência, racionalidade e centralidade mínima das normas, ainda que setoriais. 3

É possível pontuar, portanto, como o fizemos, que uma postura neocodificatória tem origens e berço no direito norte-americano. Já com os vetustos Códigos do século XIX superados e o positivismo em franca crise, a legalidade, enquanto ideal inquestionável, entra em colapso. É nesse contexto que percebemos a ascensão de um movimento codificatório no campo ético, que irá servir de parâmetro e impulso para iniciativas similares em distintos campos, desde a proteção ao consumidor até a proteção ambiental. 4

O Foreign Corrupt Pratique Act estadunidense de 1977 (FCPA) seguiu-se ao escândalo Watergate e outros muitos que se sucederam nos anos 70 do século XX, tempos de revigoração da ética pública naquela nação, com reflexos globais. Um fato político, de transcendência universal, envolvendo transgressão ética grave protagonizada pelo chefe da nação norte-americana e suas estruturas, enseja uma onda de movimentos que repercutem no direito comparado. De um lado, essa lei, fruto do escândalo mencionado, trata da transparência nos negócios, mas cuida também de disposições penais contra a corrupção. Ao Ministério de Justiça competia aplicar as respectivas sanções. Tratava-se de um Código, no sentido de dispositivos gerais ordenados de forma sistemática e racional, aplicáveis a um universo amplo de sujeitos e situações, regulando, inclusive, a produção de outras normas. 5

Finocchi também assinala que o fenômeno da expansão dos Códigos de Conduta, no mundo inteiro, tem a ver com a influência norte-americana. Trata-se de um fenômeno recente, da Segunda Guerra Mundial, a raiz de escândalos políticos como Watergate e outros que se seguiram, como já anotado. Houve uma multiplicação veloz dos Códigos de Conduta nos Estados Unidos da América. Já não bastavam a honestidade e a imparcialidade dos agentes públicos, no manejo de suas funções, mas tornou­se também necessária a aparência desses atributos. Distintos conceitos, assim, passam a definir os campos da ética pública e privada. A prevenção dos conflitos de interesse é o maior desafio. A legislação federal norte-americana vem, então, em uma linha evolutiva, mas crescentemente intensa, em busca de rigor e imperativo cumprimento dos deveres éticos.

Dos Estados Unidos da América partem influências decisivas para o universo europeu e latino-americano, sobretudo na Nova Ordem Mundial, cujos alicerces vinham sendo montados. Em uma perspectiva cultural, normativa e econômica, seria natural que a doutrina dos Códigos de Conduta se expandisse para além das fronteiras estadunidenses, tratando-se do chamado “poder imperial”, cujas peculiares características pós-modernas lhe dão feições mais intensas e agressivas do que nunca, se tomarmos como ponto de referência o grande Império Romano, talvez o maior até então existente. 6

A diversidade dos Códigos de Conduta, nos cenários estadunidenses, já evidencia, por si só, a dificuldade em obter uma teorização geral sobre esse assunto. Não obstante, como referimos, o feixe de valores imanentes a esses Códigos encontra pontos comuns na busca de segurança, estabilidade, visibilidade, racionalidade e também na abertura à dinâmica normativa dos novos tempos, com receptividade às intervenções regulatórias, normativas ou legais complementares, respeitando-se a lógica do sistema. Também são pontos comuns aos novos Códigos as preocupações tanto com os deveres de diligência quanto com os deveres de resultado, abrigando, a um só tempo, foco na honestidade e também na eficiência funcional dos agentes públicos.

A regulação da função pública italiana, nessa linha, dentro dos paradigmas da Nova Gestão Pública, cujo berço também reside nos Estados Unidos da América, não se preocupa somente com o dever de imparcialidade, mas também com o da boa administração pública. Assim, o gestor deve atuar com eficiência e honestidade, eis uma premissa que se espalha rapidamente em todas as democracias ocidentais, rompendo-se o rígido modelo francês de direito administrativo clássico, o que influencia os novos Códigos.

Mattarella assinala que os Códigos de Conduta têm a ver com as ideias de disciplina e honra dos funcionários públicos, além dos valores de imparcialidade e bom andamento da Administração Pública. Pode dizer-se que o Código tem uma função de fixar pautas gerais de conduta, viabilizando maior coerência normativa, com segurança e eficácia. 7

Alpa trata do fenômeno dos Códigos de Conduta na perspectiva da autodisciplina, o que põe um acento moral no tema e posiciona seu eixo central em termos de uso concreto das potencialidades mais evidentes na esfera disciplinar e ética. É no campo disciplinar que os Códigos de Conduta têm assumido espaços notáveis. 8

Necessário dizer que os Códigos de Conduta carecem de uma dimensão ética ou jurídica, e isso depende do tipo de Código em jogo. É certo que os Códigos Éticos se inserem no marco da autodisciplina institucional, uma modalidade de responsabilidade de tipo ético. Por outra parte, essa espécie de responsabilidade não exclui a responsabilidade jurídica, por meio da legalização de certos tipos sancionadores. Os Códigos Jurídicos, mediante Leis Gerais, inserem-se nesse universo.

Pode-se perguntar até que ponto o modelo de legalização dos Códigos de Conduta produz ou está apto a produzir efeitos contrários aos pretendidos, no âmbito de certas profissões, como a classe de advogados. 9 Entretanto, a realidade, no marco do setor público, é distinta, não sendo possível incorporar essa espécie de crítica. O controle do setor público, com um Código Jurídico, é imperativo constitucional nos ordenamentos democráticos.

Os Códigos Éticos trazem à colação a autorregulação e a autovinculação. Aposta­se na vertente da autorresponsabilidade e do compromisso pessoal. Não obstante, a ideia de Código não deve significar Código de Ética. Há Códigos jurídicos, e o certo é que o direito carece de codificações pontuais para fins de aumentar os níveis de segurança jurídica dos cidadãos. Vale trazer à baila não apenas o direito comparado, como estamos fazendo, mas também o próprio direito internacional, dado que as normas daí derivadas culminam em processos de persuasão crescente junto aos Estados, em moldes de legitimação no cenário internacional.

É necessário recordar, uma vez mais, que as Nações Unidas editaram um Código Internacional de Conduta dos Funcionários Públicos, a partir da Resolução 51/59, em 12.12.1996, contemplando uma série de deveres públicos, tanto ligados à honestidade quanto à eficiência. 10

A desordem normativa, mediante a profusão de normas de responsabilidade ou simplesmente de atuação dos agentes públicos, é, conforme respeitada conclusão da Comissão de Estudos para a prevenção da corrupção, na Itália, uma das causas dessa enfermidade social ou, acrescentamos, da má gestão pública.

A desordem pode ocorrer diante de numerosas causas. A proliferação de leis, normas administrativas, regulamentos e atos administrativos complementares, em um marco excessivamente descentralizado de regulação de condutas, pode ensejar dificuldades notáveis na implementação de metas anticorrupção ou de controle repressivo da improbidade.

De modo que os Códigos Gerais de Conduta, ou as Leis Gerais, trazem à tona os ideais de sistema, coerência e segurança jurídicas, 11 sem que tal ideário implique na adesão à teses simplificadoras da realidade normativa, com repercussões no campo hermenêutico. A existência dos Códigos não implica, automaticamente, na vinculação a postulados centralizadores de produção jurídica, menos ainda formalistas ou engessadores da atividade regulada.

Eduardo García de Enterría, vale repetir, em seu célebre trabalho sobre “Justicia y seguridad jurídica en un mundo de leyes desbocadas”, defende, contundentemente, o uso dos Códigos como ferramentas de produção jurídica. Salienta o autor que não se trata de reproduzir modelos ultrapassados, mas de incorporar esses novos modelos, oriundos especialmente dos Estados Unidos da América, para fins de consagrar novos métodos. O papel exercido pelos vetustos Códigos napoleônicos é, hoje, desempenhado, em parte, pelas Constituições, referências centrais máximas do ordenamento jurídico. Sem embargo, é possível avançar na regulação das relações sociais a partir dos Códigos, porque trazem, ainda, o germe da segurança e de uma referência geral ao intérprete. 12

O Código Geral não nos diz nada, ademais, sobre sua centralização ou descentralização. Pode haver múltiplos Códigos Gerais para regular inúmeros setores em marcos territoriais distintos. Assim, também pode haver um Código Geral centralizado, regulando todo um setor em território global, sem recortes territoriais ou categoriais. Os níveis maiores ou menores de centralização dependerão do setor afetado pelo Código e pelo modelo político de Estado em vigor, v.g., federativo, autonômico, unitário, com suas incessantes variantes.

1.1.1. Modelos de Códigos descentralizados

O modelo normativo que deve ser tomado como referência geral para os modelos descentralizados é o adotado em boa parte dos sistemas europeus, como na Inglaterra, Espanha, França ou Finlândia, mas também é o adotado nos Estados Unidos da América. Concerne-se ao modelo descentralizado que preconiza tantos Códigos quantas forem as classes de agentes públicos, tratando-os desigualmente, com modelos de condutas proibidas diferenciadas e com sanções distintas. Esse tipo de modelo normativo é casuísta, disciplinando os múltiplos setores que existem no interior do setor público. Desnecessário seria dizer que esse modelo ostenta vantagens e desvantagens, como qualquer outro, carecendo de uma adequada ponderação a respeito dos méritos e dos inconvenientes de sua utilização. 13

O modelo sub examen trata desigualmente os desiguais, na medida das desigualdades, o que pode ser um fator favorável. A multiplicação de Códigos distintos, leis esparsas, para apanhar classes muito diversas de funcionários públicos, acarreta a vantagem de acompanhar a realidade de perto, tutelando servidores e suas peculiaridades, aproximando­se das carências sociais.

Paradoxalmente, ao mesmo tempo, existem distorções nos Códigos fragmentários, porque tal modelo estimula a impunidade e nichos de imunidades, criando castas de servidores para os quais não existem sanções, nem tipos sancionadores, ou Códigos funcionalmente esvaziados.

Além disso, dependendo do grau de descentralização, seria arriscado fomentar o corporativismo e técnicas ou estratégias defensivas baseadas na ausência de codificação de condutas, a partir de atuações preventivas junto às autoridades locais competentes. A pressão sobre a autoridade competente aumenta, criando-se maiores riscos de vazios normativos. Amplia-se o espaço para atuação dos grupos de pressão no sentido de evitar a tipificação de condutas socialmente nocivas.

Em última instância, esse modelo pode ostentar, paradoxalmente, como vantagem, a igualdade, e como desvantagem, os elevados riscos de desigualdades, diante dos nichos de impunidade que pode proporcionar.

1.1.2. Modelos de Códigos centralizadores

Um modelo central é aquele que consagra um Código unitário a todos os agentes públicos. Pode dizer-se que esse modelo apresenta suas vantagens e seus problemas, da mesma forma que qualquer outro modelo normativo. O modelo centralizador, no qual se destaca o modelo brasileiro – tanto na via penal quanto do direito administrativo sancionador aqui referido –, apresenta a vantagem de uniformizar sanções e tipos abstratos, dando diretrizes iguais e racionalmente perceptíveis como republicanas, sob ótica isonômica.

A exteriorização da vontade política corporificada no Código é isonômica em suas origens, o que não garante que assim o seja na prática. As distorções derivadas de um Código central não são desprezíveis, caso se aplique indevidamente o modelo, porque tratar igualmente os desiguais pode configurar desigualdades e injustiças, desconhecendo-se as peculiaridades que recomendam fatores de diferenciação.

Um modelo centralizador que desconheça as distinções necessárias entre os múltiplos espectros da função pública e dos agentes públicos é um modelo condenado ao fracasso, não apenas em razão das …

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1 de Junho de 2024
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