Prefácio

As técnicas de reprodução assistida no Brasil há muito deixaram de ser um procedimento médico conhecido por poucas pessoas. Ao contrário, as técnicas chegaram ao grande púbico por meio de veículos de comunicação de massa de toda natureza, inclusive novelas de televisão, não raro delas se valendo integrantes do meio artístico na realidade. A Constituição da Republica assegura o direito ao planejamento familiar, que compreende o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal. Dentro de uma visão de atendimento global e integral à saúde, o planejamento familiar orienta-se por ações preventivas e educativas e pela garantia de acesso igualitário a informações, meios, métodos e técnicas disponíveis para a regulação da fecundidade. As técnicas de reprodução assistida se inserem nesse contexto e sua prática no Sistema Único de Saúde – SUS já está regulamentada por Portaria do Ministério da Saúde. Os custos ainda elevados desses procedimentos aliados à indigência crônica da Saúde Pública no Brasil impedem a maior utilização das técnicas por parte da população brasileira que delas necessita. Observe-se que, ao contrário do que se imagina, em decorrência de causas diversas, a infertilidade em nosso país cresceu e atinge mesmo as camadas de mais baixa renda, como revelam dados estatísticos. As técnicas de reprodução assistida, além de realizarem o “sonho de ter um filho”, mesmo em situações impossíveis por razões biológicas ou de esterilidade/ infertilidade, ensejam o surgimento de arranjos familiares, com prole, não imaginados, de que são exemplo as famílias monoparentais e as constituídas por pessoas do mesmo sexo. Na verdade, trata-se de reprodução humana que dispensa o contato sexual, que acaba por desvincular a filiação do necessário liame de consanguinidade com os pais, tornando nítida a distinção entre genitor – pai – e gestante – mãe. Os doadores de gametas e a mãe substituta, presenças por vezes indispensáveis no procedimento reprodutivo, não terão/manterão, em regra, vínculo de parentesco com a criança que geraram ou gestaram. Altera-se a parentalidade e emerge a identidade biológica ou genética, com o inerente direito de conhecê-la, sem que se criem relações de parentesco. O destino dos embriões excedentários, resultantes da técnica de fertilização in vitro, é questão em aberto que aguarda solução melhor do que descarte ou mesmo sua utilização para fins de pesquisa, hipótese já admitida em nosso Direito. As breves referências anteriormente feitas sobre alguns dos efeitos jurídicos das técnicas de reprodução assistida são necessárias para demonstrar sua complexidade, importância e o alcance, provavelmente não todos ainda divulgados. Contudo, não há, no Brasil, legislação sobre o assunto, exceção feita a três acanhados incisos inseridos pelo Código Civil de 2002, em um dos artigos que trata da filiação. Tal fato se deve à forte resistência de natureza político-religiosa a tais práticas por parte do legislador brasileiro. Em consequência, há cerca de vinte e cinco anos, a regulamentação sobre a matéria se limita praticamente às subsequentes Resoluções do Conselho Federal de Medicina, que edita normas de natureza ética para a utilização das técnicas de reprodução assistida. Deve-se destacar que os mencionados dispositivos do Código Civil trouxeram, por sua inadequação, mais problemas do que soluções para as situações inéditas que deveriam contemplar. Entre tais situações não imaginadas se encontra a possibilidade do nascimento de filhos após a morte do marido, e que inclui os concebidos após seu falecimento. As disposições legais são lacônicas e não estabelecem qualquer prazo para que ocorra a concepção e/ou o nascimento do filho, fato que vem atormentando seus intérpretes, em virtude do amplo campo de efeitos jurídicos, de natureza existencial e patrimonial, decorrentes do surgimento de uma nova pessoa na família. Esse é o cenário em que se elaborou a presente obra, dedicada aos efeitos sucessórios que atingem o filho havido pelo autor da herança por meio de técnica de reprodução assistida post mortem. O estudo abrange aspectos relacionados ao Direito das Sucessões, ao Direito de Família e aos Direitos Reais. Embora seja dada ênfase à sucessão legítima, há incursões na sucessão testamentária, que demonstram sua insuficiência como solução, bem como interessante investigação sobre a propriedade temporária (ou ad tempus), que avalia a viabilidade de sua aplicação aos demais herdeiros legítimos, de modo profundo e ponderado. Na verdade, a Herança legítima ad tempus constitui mais um dos profícuos resultados obtidos pelo incessante trabalho de pesquisa de seu autor, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, professor e magistrado que tem se empenhado na realização teórica e prática do Bom Direito. Merece destaque o fato de ser um dos mais respeitáveis estudiosos das questões jurídicas relativas às técnicas de reprodução assistida. Pode-se afirmar que se encontra aqui uma solução concreta e eficaz, se não de todas, mas de importantes questões relativas ao filho póstumo, feliz denominação adotada pelo autor, que concilia a proteção de seus direitos com os dos demais sucessores e atende às normas existentes e aos princípios de Justiça. Outubro de 2017. Heloisa Helena Barboza

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