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17 de Maio de 2024

Neurodireitos: A tutela da mente humana e o biodireito constitucional

ano passado


O atual estado da arte neurotecnológica e o sucesso de seu contumaz propósito de compreensão do cérebro humano tornaram irrefreável o crescimento de inteligências artificiais e sua interação com seres humanos. Celebra-se, por um lado, seu potencial préstimo ao falarmos em aplicações para o desenvolvimento de próteses, órteses, emulação de funções orgânicas, controle de dores crônicas e mesmo a cura de lesões cerebrais de impacto neuromotor. Por outro prisma, o uso imponderado das possibilidades de intervenção direta e indireta no cérebro humano são objeto de temor popular e arguição no pensamento ético das maiores academias de pensamento contemporâneo.

Malgrado o termo “neurotecnologia” possua grau considerável de inteligibilidade imediata, o esforço por uma acuidade conceitual se faz sempre muito bem-vindo, assim, entende a Neurorights Foundation que “neurotecnologia” é qualquer tecnologia que registre ou interfira na atividade cerebral, assegurando destaque às de interação entre cérebro e computador. Decerto o leitor depreende que o conceito proposto goza de grande amplitude. Não por omissão ou malogro, mas em razão do discernimento de que a abrangência das aplicações neurotecnológicas não pode representar categoria hermética, ao contrário, está em um constante processo autopoiético, aprimorando e entendendo a si mesmo na dialogicidade democrática, permeando as relações homem-tecnologia entre instrumentos, técnicas, métodos, sistemas que podem apoiar, influenciar ou substituir a vontade humana.

Para muitos, existem possibilidades de inofensivo risco ético, como aplicativos que interpretam pensamentos que levariam a uma má conduta dietética e prestariam pronta intervenção mediante notificação que sugerisse frear tal impulso, levando o usuário a uma escolha mais saudável e promovendo discutível poder de influência sobre a pessoa. Muito mais controverso, por exemplo, são instituições de ensino em Ásia que monitoram o grau de concentração de crianças, coletando-lhes os dados e posteriormente os compartilhando com os responsáveis.

Para além de um sem-número de exemplos reais ou verossímeis que classificaríamos na literatura do entretenimento como terror-científico, distopia, ou como alguns diriam, “black mirror”, essa obstinação humana que nos levanta questionamentos sobre uma concepção faustiana de técnica fecundou terreno para o que podemos chamar hoje de “neurodireitos”.

Podemos entender Neurodireito, quanto ao seu campo epistemológico, como um recorte didático-pragmático do campo do debate ético-jurídico pelo qual hoje se responsabilizam o Biodireito e a Bioética. Quanto ao seu conteúdo, pretende a tutela protetiva do cérebro humano, sua incolumidade e de seus dados neurais, conservação da capacidade e autonomia cognitiva do ser humano diante da neurotecnologia. Quanto aos seus métodos, articulam princípios éticos, legais, naturais em perspectiva biológica ou jurídica de direito imanente à condição humana, sempre ligados a uma metodologia de dialeticidade peculiar às ciências antropo-sociais. Em outras palavras, articula-se na fórmula do pensamento complexo proposta por Edgar Morin, cuja síntese é:

“é preciso substituir um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo “complexus”: o que é tecido junto.” MORIN, A cabeça bem feita, 2003, p.89).

Desse modo, ressalta-se que não nutrimos pretensão de antagonizar o desenvolvimento tecnológico, científico e econômico, mas estabelecer um diálogo profícuo e contínuo entre as áreas do saber em um jogo dialético de contribuição mútua, onde ora um faça papel de tese, ora antítese.

Os principais direitos alvitrados no campo dos Neurodireitos dizem respeito a

Incolumidade ou privacidade mental: A garantia de que o conteúdo dos pensamentos coletados e processados na forma de neuro dados mediante neurotecnologias não será divulgada à revelia de consentimento de seu titular

Autodeterminação: Direito à preservação das capacidades cognitivas e faculdades mentais responsáveis pela produção de escolhas individuais e livres

Identidade pessoal: Representa proteção contra incursões indevidas no cérebro e mente humana que possam criar risco ou efetivamente alterar ou causar a perda de sua identidade pessoal, seu self, suas características de personalidade que o definem enquanto ser autobiográfico, individual e atuante no mundo.

Acesso: Direito de duplo enfoque, por um lado, associado à proteção de dados e o direito de acesso irrestrito e imediato aos dados de sua titularidade, de outro, representa missão estatal de natureza prestacional direta ou indireta, propiciando condições para um acesso equitativo à neurotecnologias com potencial medicinal e de otimizações e ou quaisquer benefícios mentais e cognitivos como forma de combate à desigualdade social.

Vedação à discriminação algorítmica: Proteção do indivíduo contra a inserção de algoritmos discriminatórios que promovam exclusão social baseada em informações obtidas através de suas atividades cerebrais.

Em uma análise escorreita dos sistemas jurídicos modernos, provavelmente todos esses direitos já encontram tutela sob a forma de direitos fundamentais ou direitos da personalidade, o que nos leva ao questionamento sobre a premente necessidade de reconhecimento de um microssistema do Biodireito. Um microssistema jurídico exige, no mínimo, uma ordem protetiva específica, um arcabouço principiológico próprio, literatura especializada e jurisprudência.

Entendemos que o Biodireito possui ordem protetiva específica, porquanto se destina à proteção de temas não esgotados pela legislação geral ou, por vezes, nem mencionados por ela. Também possui arcabouço principiológico próprio que não se limita e não se confunde aos clássicos princípios de direito e de teoria do Estado. A literatura especializada também está presente e alcançou notoriedade nas últimas quatro décadas. Quanto à jurisprudência, se enriquece constantemente, visto que é defeso ao poder judiciário deixar as demandas sem resposta até que haja regulamentação específica. Concluímos, então, que a mera interpretação constitucional do fenômeno neurotecnológico não faz jus à sua complexidade, crescente incidência e potencial ingerência na vida social, pelo que entendemos razoável reforçar seu estudo dentro do campo epistemológico do Biodireito e dos Neurodireitos.

O Chile, em 2021, reconheceu a importância dos neurodireitos, atribuindo-lhes expresso status constitucional nos seguintes termos “O desenvolvimento científico e tecnológico estará a serviço das pessoas e será realizado com respeito à vida e à integridade física e mental. A lei regulará os requisitos, condições e restrições para seu uso em pessoas, e deve proteger especialmente a atividade cerebral, bem como as suas informações”.

À guisa de conclusão, destacamos que mesmo a OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico não se furta ao posicionamento ante os neurodireitos e elenca entre princípios globais em neurotecnologia a inovação responsável, análise de segurança, inclusão, deliberação social (promovendo o espaço para a participação democrática), proteção de dados, capacitação, e promoção de culturas de administração e confiança nos setores público e privado.

Para saber mais, entre em contato conosco!


Guilherme Berger, advogado especialista em Direito Médico e Bioética, sócio do Paschoalin Berger advogados e professor universitário.

Paschoalin Berger advogados ( www.paschoalinberger.adv.br)


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