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4 de Maio de 2024

Teses basais sobre o analfabeto político

Uma relação de Sócrates com Bertolt Brecht

Publicado por Matheus Mattos
há 7 anos

O Analfabeto Político

Bertolt Brecht
“O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.
O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.”

Discorrerei sobre o conceito dado para “analfabeto político” no pequeno texto do dramaturgo e poeta alemão Bertolt Brecht, estabelecendo uma relação entre esse e a árdua defesa que Sócrates, filósofo grego, faz acerca do conhecimento; ou seja, para Sócrates, que concebia seu método como “maiêutico” (arte de fazer o parto), que postulava “parir ideias”, a tarefa do filósofo seria a de fazer com que o outro indivíduo através da discussão no diálogo, da dialética, pudesse dar luz às “próprias ideias” (Marcondes, p. 48). Em um primeiro movimento textual, explicitarei um breve contexto histórico da época clássica em que Sócrates viveu de modo que seja aprofundada e amplamente entendida. Ao decorrer do texto, vislumbrarei que a conceituação apresentada pelo dramaturgo em seu texto apresenta problemas pelo motivo de negligenciar a realidade em sua argumentação breve e simplista. Ademais, correlaciono minhas ideias com filósofos tradicionais e aprofundo suas teses de modo que se abranja a problematização e a discussão em torno do “analfabetismo político” vigente no contexto atual.

As colônias gregas do Mediterrâneo oriental eram marcadas pela convivência entre diferentes culturas, por serem essas locais de constantes trocas comerciais. Tal contexto foi propício para o início da relativização dos mitos gregos e da pragmatização da realidade, fato que diminui a influência das tradições míticas e religiosas. É, pois, o início da filosofia caracterizada como científica, a qual teve como precursor Tales de Mileto. Os filósofos pré-socráticos começaram a relativizar a realidade em que viviam ao buscar entendê-la de modo racional. Tinham um amplo interesse em explicar a physis – em especial a escola jônica –, com base em um elemento primordial para o surgimento de tudo – arché. Outras escolas e suas ramificações foram, ao decorrer do tempo, surgindo, como por exemplo, a escola italiana.

Nessa perspectiva, nota-se que surge nessa época um enorme valor à racionalidade, e mais tarde com os sofistas, o amor à retórica e à oratória. Esses eram mestres nos debates orais, os quais eram muito frequentes na Assembleia. No entanto, é imposta por Sócrates uma árdua crítica aos sofistas, na medida em que mostrava que o ensinamento sofísitico limitava-se “a uma mera técnica ou habilidade argumentativa que visa a convencer o oponente daquilo que diz, mas não leva ao verdadeiro conhecimento”, assim explica Danilo Marcondes.

Desse modo, é com o pensamento socrático que se inicia um verdadeiro amor pelo conhecimento, haja vista que o seu método filosófico consistia em buscar definições para certas palavras que eram impregnadas pelo senso comum e pelo sistema axiológico próprio de quem as usava. Para ele, é por meio do diálogo que seria possível fazer com que as pessoas entendessem de fato o que certas coisas significavam, a fim de “parir ideias”, exatamente o que o seu método consagrado com o nome de maiêutica significa.

O pragmático texto do dramaturgo e poeta alemão, Bertold Brecht, mostra-nos que não buscar conexão intelectual com a política é algo execrável, uma vez que dessa tudo depende. A política é, a priori, uma ferramenta de conciliação entre nações e um mecanismo que busca o bem do povo. Contudo, a posteriori, o tempo vislumbrou que essa é usada para a guerra e para bem próprio de quem governa. Torna-se nítido, pois, a necessidade de se manter ativo dentro do sistema político para, então, lutar pelos interesses da camada popular e dos cidadãos no geral. Ao se desvirtuar desse âmbito, prejudicamos não só a nós mesmos, mas toda a sociedade. O homem é um animal político por natureza, como evidenciou Aristóteles.

Com isso em mente, buscar o conhecimento, por meio do diálogo – defendido por Sócrates -, pela fiscalização constante dos meios de notícias locais e internacionais, e pelo estudo teórico, é essencial para a vida em sociedade, pois “conhecer é em si só um poder”, assim postulou Francis Bacon.

O contexto do século XXI vai defronte com a ideia da essencialidade do conhecimento político para emancipação individual e coletiva. Digo isso, pois, mesmo com a filosofia socrática e iluminista de valorização da racionalidade e do diálogo, vemos um aumento vertiginoso de “analfabetos políticos” que explanam suas ideias descontextualizadas em um debate, e como agravante, não argumentam, mas impõem suas axiologias desprovidas de base teórica. Assim, tais debates deixam de parir ideias, e começam a produzir o ódio. Tal situação tornou-se comum nas redes sociais – o ódio é dial.

No entanto, existem pessoas as quais não possuem legítimo acesso aos recursos intelectuais que possibilitem uma melhor compreensão teórica e, por isso, possuem precárias noções de política e, portanto, não conseguem estabelecer diálogos racionais produtivos. Essa condição, de modo infeliz, é notável no cenário brasileiro, o qual apresenta uma vasta desigualdade social, situação amplamente divulgada e pesquisada pelo recente relatório da Oxfam, no qual foi comprovado por métodos sociológicos, que seis brasileiros têm a mesma riqueza que os cem milhões mais pobres. Assim, ao deter poderio monetário, acaba-se por deter um acesso maior ao conteúdo intelectual e, por conseguinte, na linha de raciocínio de Bacon, um poder generalizado, sendo evidente o motivo pelo qual o pobre é, de modo indireto, escravizado no contexto atual.

Vislumbra-se, pois, dois cenários com relação ao termo de “analfabeto político”, aqueles que mesmo conseguindo um acesso intelectual o negligenciam e não buscam o diálogo pleno, e outros que não possuem esse acesso e, por esse motivo, não detêm a mesma vontade de praticar a política e não possuem frutos para um diálogo sincero. Convenhamos que quem trabalha e mora em situações extremamente precárias não costuma possuir uma vontade de se inserir na política ou de dialogar de modo eficaz, mesmo por que não possuirá tempo para isso – o capitalismo não a concede isso. É nesse sentido que busco evidenciar que a categorização e a generalização da noção de analfabeto político feita por Brecht são em si só ignorantes por não levarem em conta particularidades, se mostrando, então, tangentes às ideais de generalizações do evolucionismo antropológico. É posto a beira do precipício a noção aristotélica do homem como animal político, por esse, às vezes, não possuir vontade, disposição, tempo ou capacidade de se inserir nesse contexto de diálogos e formulações de conhecimentos novos em torno da política.

Ainda, é importante trazer para essa discussão a perspectiva de Descartes apresentada em sua primeira meditação, a qual foi relevante para a relativização da realidade. Nesse texto, ele discorre, entre outras coisas, que as opiniões costumeiras ocupam, de modo constante, a credulidade dos homens, e que essas são submetidas quase contra a vontade por um “demorado trato e um direito de familiaridade”. Sendo, portanto, “muito mais consentâneo com a razão nelas acreditar do que negá-las”. É nesse caminho que se torna viável a argumentação de que os homens, por força do hábito, internalizam certos preconceitos e conceitos, e ao levá-los para um diálogo, os dogmatiza, fato que acaba por inviabilizar o ato de parir ideias, pois esses não estão dispostos de negar essas opiniões por meio da racionalidade. E, ademais, não buscam uma mudança desses preceitos dogmatizados ao decorrer do tempo por ser muito mais fácil aceitá-los do que contestá-los. Isso, com toda certeza, prejudica o processo de conhecimento.

Portanto, é nítido a necessidade de participação na política e o conhecimento, a fim de lutarmos por nossos direitos, mas o capitalismo é perverso. Ao retirar os privilégios sociais – acesso à matérias intelectuais, etc. – os pobres permanecem encarcerados espiritualmente, pelo motivo de não possuírem, em grande maioria das vezes, apoio intelectual para participar de modo eficaz na política, assim, não conseguem lutar por seus direitos, mantendo-se reféns do sistema. Essa é a perversidade do capitalismo. Ademais, existe uma outra face da ignorância política, a voluntária, esses que mesmo tendo acesso a materiais intelectuais e sabendo da essencialidade do diálogo e da participação societária, ignoram-na. Não buscam o processo de autocrítica de suas convicções, muito menos diálogos produtivos, o que rende o ódio. Desse modo, enquanto o método de análise conceitual de Sócrates, a argumentação lógica e os diversos outros métodos de conhecimento existentes são desprezados – seja voluntariamente ou involuntariamente – e os discursos de ódios valorizados por uma parcela da sociedade, novas vítimas do sistema social serão formadas, pois tudo provêm de decisões políticas.

https://cartasubversiva.wordpress.com/2017/10/03/teses-sobreoanalfabeto-politico/

www.cartasubversiva.wordpress.com

Bibliografia:

DESCARTES, René. Meditações Sobre Filosofia Primeira. Tradução de Fausto Castilho.

MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia. 17ª Reimpressão. Zahar, 2017.

Oxfam Brasil. A distância que nos une: um retrato das desigualdades brasileiras.

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8 Comentários

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O asco de Brecht ao analfabetismo político advém de seu credo marxista. Sendo um dos poucos alemães a morar em Berlim Oriental por vontade própria, acreditava vigorosamente que era a função da política definir o preço do arroz, do feijão, proteger o menor, impossibilitar a prostituição.

É preciso ter um governo genuinamente parasita para que o preço do feijão, do arroz, dos remédios, seja definido por política de estado.

Pior que o analfabetismo político é a política como profissão de fé. Brecht comungava de um credo milenarista que conseguiu a proeza de assassinar 100 milhões de pessoas, e escravizar 1/4 da humanidade (e a julgar pela tônica do texto, o autor também).

Não chegamos a este ponto, mas temos também um regime parasitário, que se nutre de nosso esforço, mata a produtividade e a eficiência, e esmaga cada impulso criativo.

Sonho com o dia em que eu puder acordar sem jamais saber o nome do presidente. Com o dia em que não fará literalmente nenhuma diferença saber quem está no governo. Com o dia em que o governo não puder destruir minha vida, liberdade e propriedade em questão de horas.

Este é o poder que o governo tem hoje, e é a razão pela qual ser analfabeto político não é uma opção.

O povo, aos poucos, vem adquirindo consciência. Começa a desconfiar que o idolatrado Leviatã é a causa primordial de suas desgraças. Que o estado e Deus não são o mesmo ser. O passo seguinte é colocar o ídolo abaixo. continuar lendo

Esse dia só será possível na monarquia parlamentarista, países nos quais os índices de saúde, educação, estabilidade, riqueza, orgulho nacional, democracia, simbologias políticas, tecnologia e justiça social estão em bons patamares, como bem mostram a ONU, Transparência Internacional e Jornalistas Sem Fronteiras. Lamentável sua crítica vil ao autor do texto, decerto não devemos buscar um Estado autoritário, tal qual o seu exemplo dado, mas muito menos queremos o mundo nas mãos de grupos de magnatas bilionários - a cada dia mais seletos - cujo prazer é beber vinho em Nova York, enquanto o grupão da decadência humana agoniza mundo a fora. Sim, o preço do feijão inclui impostos, e impostos são decisões políticas sim, no capitalismo ou no ateu socialismo. Temos que dizer não à alienação, seja da direita ou da esquerda, é para a frente que se anda, e como diziam os gregos: "A felicidade reside no equilíbrio". continuar lendo

Muito bom! continuar lendo

Gostei também, embora o autor tenha dado pouca opinião própria, o que, no geral, enriqueceria mais o texto. continuar lendo

Apenas a título de esclarecimento ao colega, a preocupação de ter na filosofia e nas demais humanidades a mesma rigorosidade aplicada às ciências exatas surgiu com Comte no século XIX; certamente não é feito dos pré-socráticos.

Quanto ao texto posto sob debate, como todo discurso simplista que o é, sem dúvida, diz mais a respeito de quem se manifestou do que quem era objetivado por ele. Uma espécie de paparazzi primitivo, à guisa de outros que o sucederam.

É impossível, ainda mais à luz da pós-modernidade, não assumir que se trata de prosa exarada por quem não tem a mínima noção de o que se colocou a falar.

Mas tudo bem. O sentimento de superioridade em relação aos demais sempre foi tendência entre pretensiosos críticos que manifestam este tipo de discurso. E quem lê, estando nas mesmas condições que o escritor, perpetua palavras inócuas de uma ideologia pouco esclarecedora.

Estranho é este tipo de discurso, confortabilíssimo ao leitor, ter se perpetuado meio ao cenário em que desenvolvido.

Parabéns ao autor pelo senso crítico. continuar lendo

Augusto Comte, criador da Igreja Ateia Positivista Republicana Francesa, a mesma seita que originou o lema da nossa bandeirola nacional. Há em Porto Alegre uma seita dessa igreja, hoje totalmente abandonada, pois que a história mostrou que a razão jamais deverá ser colocada em pedestal como os lacaios do Brasil, na maior atitude de babação, fazem tão facilmente de forma vira-lata. continuar lendo

Matheus,

Repristino o elogio, por sua lucidez. Nesses tempos, em que todos parecem não só deixarem de se instruir, mas fazerem questão de passar por todos os processos de idiotização possíveis, esses relâmpagos extemporâneos de legitimidade científica, ao exemplo de seu texto, têm de ser reconhecidos.

Abraços de São Paulo. continuar lendo

Gostei muito do artigo. Só achei descabida a crítica comparativa de um texto de um gênio da poesia e da dramaturgia com teorias de grandes filósofos. Obviamente o pequeno texto para teatro de Bertold Brecht não pretendia se fazer uma teoria, mas baseia-se em teorias e no cotidiano de sua época, como todo bom poeta e dramaturgo faz. Certamente numa intepretação teatral, com o cenário, o figurino, a expressividade, a música, a iluminação, a maquiagem, se dá um sentido mais amplo ao texto e se coloca a subjetividade de tudo o que não está explicitamente escrito à mostra. Então uma coisa não invalida e nem diminui a outra. Se completam. continuar lendo