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Processo Constitucional Brasileiro

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1. Pós-Positivismo e Teoria da Decisão

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1.1. Norma e pós-positivismo

De início, cumpre esclarecer a razão pela qual dedicamos extenso capítulo inicial para aspectos pertinentes à teoria do direito. Consideramos ser impossível a elaboração de dogmática ou de construções teóricas sem que haja um paradigma teórico antecedente. Ou seja, o paradigma teórico sempre antecede a dogmática. O jurista que compreende a teoria do direito consegue identificar os paradigmas de suas respectivas funcionalidades e deficiências. Por conseguinte, a compreensão da teoria do direito nos permite escolher o paradigma que julgamos mais adequado. Em sentido oposto, o jurista que desconhece a teoria do direito será arremessado em algum paradigma de pensamento, em regra defasado e inapto para o enfrentamento dos problemas contemporâneos.

Por essa razão, nos dedicamos à apresentação de um modelo contemporâneo do estudo do direito: o pós-positivismo. Nesse ponto faz-se necessário esclarecimento inicial de leitura. O paradigma pós-positivista que estruturamos não é um modelo antipositivista ou contrapositivista. Ele é além positivista.

Na realidade, o pós-positivismo apresentado busca estabelecer um common ground 1 com o positivismo contemporâneo, ou seja, uma base comum teórica imprescindível para o tratamento dos temas sensíveis do direito contemporâneo. Nosso pós-positivismo vai no sentido do além positivismo, naqueles temas acerca dos quais consideramos inadequado o tratamento positivista, por exemplo, a questão da discricionariedade.

Do mesmo modo, o pós-positivismo ora sugerido, assentado precipuamente em bases hermenêutico-estruturantes, não almeja constituir paradigma definitivo ou enclausurado em suas próprias premissas. Desde já identificamos a necessidade de incorporarmos aspectos teóricos contemporâneos para caminharmos além da normatividade e da teoria dos princípios. Não obstante o modelo hermenêutico apresentar riqueza teórica para o tratamento da decisão, existem complexidades contemporâneas em cujos tratamento e solução as visões sistêmicas, por exemplo, a questão da proceduralização, a ser trabalhada no Cap. 10. 2

Retomando às especificidades deste primeiro capítulo da obra, buscar-se-á estruturar uma nova concepção para a sentença e a norma com base na hermenêutica filosófica, cujo maior expoente é Hans-Georg Gadamer, a fim de demonstrar anacronismos teóricos que permeiam o direito processual no estudo desses conceitos tradicionais. Para atingir tal desiderato, será necessário explicitar os conceitos elementares do paradigma pós-positivista, afinal, o pós-positivismo, ora proposto, é justamente a postura teórico-jurídica que pensa o direito a partir da hermenêutica.

É de se consignar que não se trata de utilizar a filosofia para resolver os problemas jurídicos, mas, sim, para explicitá-los. 3 Da mesma forma, não se procura introduzir o discurso filosófico de maneira a colonizar o discurso jurídico, ao contrário, objetiva-se a junção de ambos, principalmente com as obras de Gadamer, no aspecto filosófico, e de Friedrich Müller, na seara jurídica. Ou seja, procura-se explorar as possibilidades de sentido projetadas pela teoria estruturante do Direito – pós-positivista por definição –, lidas pela lente da hermenêutica filosófica de cariz gadameriano.

O estudo proposto é essencial para se esclarecer a corriqueira confusão e justaposição entre dois fenômenos distintos, o neoconstitucionalismo e o pós-positivismo. Apenas o segundo representa um genuíno e novo paradigma para análise e compreensão do próprio fenômeno jurídico, perante uma perspectiva em que inexista cisão radical entre direito e realidade para a compreensão e aplicação do fenômeno jurídico, de modo que, neste modelo, a norma deixa de se confundir com o texto normativo e abandona-se o silogismo como mecanismo primordial para resolução das questões jurídicas.

Desse modo, para realizarmos a diferenciação entre neoconstitucionalismo e pós-positivismo, demonstraremos que diversos aspectos e conceitos do neoconstitucionalismo são fundamentalmente positivistas, na medida em que ainda aceitam a utilização do silogismo, bem como a utilização de conceito abstrato e semântico de norma jurídica. Vale dizer: a consagração de valores como princípios constitucionais, característica do neoconstitucionalismo, não basta para qualificar uma teoria de pós-positivista. Aliás, dizer que os princípios constitucionais valem (no sentido de conter normatividade) é, no mínimo, respeitar a própria legalidade vigente. Afirmar o contrário não consiste em paradigma teórico, mas em verdadeiro equívoco prático-teórico, porquanto rejeita a própria Constituição. Aliás, a utilização de valores na argumentação constitucional, de certo modo, já estava presente no próprio movimento da jurisprudência de valores.

É necessário advertir, preliminarmente, que nossa exposição do pós-positivismo é circular. Introduzimos determinado conceito em um tópico para revisitá-lo nos tópicos seguintes. A cada volta, nos aprofundamos no mesmo tema em uma perspectiva diferente. Por isso, para melhor compreensão do assunto, é aconselhável uma leitura integral deste capítulo.

1.2. Elementos fundamentais para a compreensão do paradigma pós-positivista

De início, cumpre esclarecer que o pós-positivismo constitui paradigma cuja formulação teve início há décadas. Na realidade, deve-se a Friedrich Müller a elaboração do próprio termo – pós-positivismo – que remonta à sua metódica estruturante do direito, constando o termo já na primeira edição de seu Juristische Methodik 4 em 1971. 5

A formulação do paradigma pós-positivista na acepção da metódica estruturante não tem por escopo construir um paradigma antipositivista, mas, sim, um modelo de se pensar o direito que supere as deficiências do positivismo, adequando-o aos avanços da filosofia da linguagem e da própria hermenêutica. 6

Do mesmo modo, apresentamos o paradigma pós-positivista mediante debate e diálogo com o positivismo, mais precisamente com diversos positivismos. Não se trata de estabelecer um modelo que seja, necessariamente, inimigo epistemológico do positivismo. Pelo contrário, em vários aspectos, o pós-positivismo apresentado permite conciliações teóricas com o positivismo em sua faceta contemporânea, por exemplo: combate ao ativismo, redução do protagonismo judicial e conferência de dignidade à legislação.

O paradigma pós-positivista, tal qual seu antecessor, o positivismo, possibilita diversas abordagens e teorizações. O positivismo, quando o mencionamos, designa um movimento com teorizações diversas. Para fins didáticos, agruparemos os diversos positivismos em três grandes grupos: positivismo legalista, normativista e o contemporâneo. Além da finalidade didática, essa classificação busca estruturar o mais rico diálogo possível com o positivismo, que é altamente complexo e heterogêneo em termos teóricos.

O que efetivamente se almeja é a apresentação de um modelo teórico apto a apresentar a teoria da decisão judicial para o estabelecimento de uma criteriologia no enfrentamento da discricionariedade. Desde já, é possível registrar que diversas facetas do positivismo contemporâneo se preocupam com a discricionariedade, combatendo, inclusive, diversas manifestações dela. O pós-positivismo, ora proposto, entre diversos aspectos, busca a edificação do paradigma cuja finalidade é a própria eliminação da discricionariedade nas decisões judiciais.

Nessa senda, apresentamos o pós-positivismo como paradigma teórico assentado em proposições fundamentais, quais sejam: 1) há distinção entre texto e norma; 2) a interpretação é ato produtivo condicionado pela historicidade; 3) a decisão é sempre interpretativa e não silogística; 4) a teoria do direito tem função normativa; e 5) não existe discricionariedade judicial na solução das questões jurídicas.

Nesse aspecto, o paradigma pós-positivista tem por função principal estabelecer intrínseca relação entre a teoria do direito e a teoria da decisão. 7 Esse ponto será detalhado nos itens subsequentes do presente capítulo. Antes, porém, faz-se imprescindível realizarmos explanação sobre as diversas facetas do positivismo.

1.3. O positivismo: aspectos introdutórios

De modo geral, no que tange ao objeto, o positivismo jurídico exclui de sua esfera de análise qualquer conteúdo transcendente ao direito positivo (daí sua principal divergência com relação ao jusnaturalismo), limitando-se a descrever e organizar apenas o direito produzido pelo convívio humano, o chamado direito positivo. Na etimologia da palavra positivus (termo latino para positivo) está a junção de positus (posto) e tivos (que designa uma relação ativa ou passiva). 8 Por positivus se compreende aquilo que existe explicitamente, que é posto, estabelecido ou aceito convencionalmente. 9

Na precisa lição de Leslie Green, na visão positivista o conteúdo do direito não influencia na sua existência: “legal positivism is the thesis that the existence and content of law depend on social facts and not on its merits”. 10

De acordo com Lenio Streck, o “positivo” a que se reporta o termo “positivismo” – postura científica que se estabelece no século XIX – refere-se aos fatos, entendidos como a interpretação da realidade que considera apenas aquilo que é mensurável, isto é, definível via experimento. Por conseguinte, a mensurabilidade exigida pela postura positivista é reconhecida, no âmbito jurídico, primeiramente, na lei, daí se falar no positivismo legalista como forma mais primitiva de positivismo.

Conforme se verá, o objeto mensurável varia conforme a teoria positivista professada: os estudos centrados, a priori, em torno dos códigos produzidos no final do séc. XIX (positivismo legalista/exegético) passarão à norma jurídica (Hans Kelsen), 11 ao conceito de regra (Herbert Hart); 12 ao institucionalismo; 13 ou, ainda, ao conjunto de decisões emitidas pelos tribunais (realismo jurídico). 14

Nessas várias vertentes, o juspositivismo conserva um elemento comum: o material jurídico trabalhado, seja a lei, seja a decisão jurídica, é posto por uma autoridade humana legitimada: o legislador (exegetismo francês), os homens doutos (jurisprudência dos conceitos alemães), precedentes judiciais (realismo) etc. 15 Em suma, o Direito é visto como um fato social, eis que é produto da razão humana.

Mario Losano afirma que os positivismos do séc. XIX são guiados por dois princípios: a) apenas é direito o direito positivo; e b) uma vez posto, o direito deve ser obedecido independentemente do que opine o seu destinatário, até que sobrevenha alteração legislativa. 16 Ao tratar das formas mais rigorosas de positivismo, o autor acresce um terceiro princípio; consistente na c) imposição de uma interpretação literal ou lógica da norma, excluídos os processos interpretativos que acudam aos valores, posto que desprovidos do caráter de cientificidade. 17

Lenio Streck, a seu turno, agrega um outro traço, consistente na possibilidade de discricionariedade judicial aos casos que requerem maior esforço interpretativo ou que não possuam regulação expressa. 18 Na visão de Streck, o positivismo é insuficiente na análise do plano da decisão porque o modelo positivista admite a discricionariedade e o uso de argumentos morais, transformando a decisão em ato extremamente subjetivista. 19

Para apreendermos de forma mais eficiente o fenômeno do positivismo, explanaremos brevemente o clássico conceito de positivismo de Comte. Em seguida, agruparemos diversos positivismos jurídicos em três grandes grupos: positivismo legalista, normativista e o contemporâneo.

1.4. O positivismo clássico de Augusto Comte

Augusto Comte é considerado o fundador do positivismo clássico. Na obra intitulada Curso de filosofia positiva, 20 Comte relata ter encontrado a grande lei fundamental, que pode, inclusive, ser solidamente estabelecida, quer na base de provas racionais fornecidas pelo conhecimento de nossa organização, quer na base de verificações históricas, resultante de um atento exame do passado. Ou seja, seu pensamento pode ser sintetizado na tentativa de explicar a verdadeira natureza e o caráter próprio da sua filosofia positiva.

A lei fundamental retro mencionada consiste no fato de que cada uma de nossas concepções principais, cada ramo de nosso conhecimento, passa sucessivamente por três estados históricos diferentes: o estado teológico ou fictício; o estado metafísico ou abstrato; e o estado científico ou positivo. Esse raciocínio fundamental é designado Lei dos três estados. 21

Esses três grandes métodos (filosofias) do pensamento correspondem a estágios do desenvolvimento humano. Infância, juventude e maturidade corresponderiam, respectivamente, aos estados teológico, metafísico e científico.

Na realidade, os estados representam sistemas globais de interpretação do universo, que determinam a perfeita isonomia entre o desenvolvimento intelectual do indivíduo (ontogênese) e o desenvolvimento intelectual do gênero humano (filogênese).

No estado teológico, o espírito humano efetua a investigação da natureza íntima dos seres, das causas primeiras e finais de todos os efeitos que o tocam. Esse estado apresenta a ocorrência de fenômenos produzidos pela ação direta e contínua de agentes sobrenaturais.

No estado metafísico, que representa nada mais do que a simples modificação geral do teológico, os agentes supernaturais acabam sendo substituídos por forças abstratas, verdadeiras entidades inerentes aos diversos seres do mundo. Referidas entidades são concebidas como capazes de engendrar por si todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste na determinação, para cada um, de uma entidade correspondente.

Por fim, no estado positivo ou científico, o espírito humano, reconhecendo a impossibilidade de obter noções absolutas, renuncia à tarefa de procurar a origem e o destino do universo. Diferentemente, o espírito humano passa a fazer uso bem combinado do raciocínio e da observação, suas leis efetivas. Nessa dimensão, a explicação dos fatos, reduzida, então, a seus termos reais, se resume, de agora em diante, à ligação estabelecida entre os diversos fenômenos particulares e alguns fatos gerais.

Em sua obra A Era das Revoluções, 22 Eric Hobsbawn, no Capítulo 15, A ciência, 23 centra seu pensamento na evolução das ciências entre 1789 e 1848, sob a advertência de que essa evolução não pode ser analisada exclusivamente em termos dos movimentos da sociedade que a rodeavam. O progresso científico até então obtido não consistia em mero avanço linear. Tratou-se da utilização do progresso para solução de tradicionais problemas e dos novos problemas que surgiam em razão do próprio progresso. Esse período revolucionário foi o momento de novos pontos de partida radicais em alguns campos do pensamento – como na matemática – e do despertar de ciências até então adormecidas, como a química. Do mesmo modo, novas ciências foram criadas, por exemplo, a geologia, juntamente com novas ideias revolucionárias em outras ciências, e.g., as ciências sociais e as biológicas. A revolução francesa mobilizou o governo, colocando os cientistas, pela primeira vez na história, como parte do governo.

A ciência, em contrapartida, se beneficiou bastante com o surpreendente estímulo dado à educação científica e técnica. É pontual, nesse contexto, como a revolução francesa transformou a educação técnica e científica de seu país – principalmente devido à criação da Escola Politécnica (1795), onde estudou Comte, e do primeiro esboço da Escola Normal Superior (1794) –, além de fazer renascer a Academia Real (1795) e ter criado o Museu Nacional de História Natural (1794), certamente o primeiro centro genuíno de pesquisa fora das ciências físicas. 24

De acordo com Hobsbawn, o modelo da Escola Politécnica francesa foi o paradigma influenciador de outros grandes centros como Praga, Viena, Estocolmo, São Petersburgo, Copenhagen, em toda a Alemanha, Bélgica, em Zurique e Massachusetts. Na Inglaterra, entretanto, nenhuma reforma nesse sentido foi estabelecida. Por outro lado, a imensa riqueza da Grã-Bretanha tornou possível a criação de laboratórios particulares, e a pressão geral das pessoas inteligentes de classe média por uma educação técnica e científica obteve bons resultados. Como se nota, a era chamada revolucionária fez crescer o número de cientistas e eruditos, além de estender a ciência em todos os seus aspectos. Ademais, viu-se, neste período, o universo geográfico das ciências alargar em duas direções. Em primeiro lugar, o progresso do comércio e o processo de exploração abriram novos horizontes do mundo ao estudo científico, e, em segundo lugar, o universo das ciências se ampliou para abranger países e povos que, até então, só tinham dado contribuições insignificantes. A ciência parece, também, nessa medida, refletir a ascensão das culturas nacionais fora da Europa Ocidental, algo surpreendentemente representativo desse período revolucionário. 25

Enquanto a revolução matemática, dada sua distância da vida cotidiana, passou despercebida – exceção feita a alguns especialistas em assuntos notórios –, a revolução nas ciências sociais, por outro lado, não podia deixar de abalar o leigo.

Ainda conforme Hobsbawn, houve duas revoluções cujos cursos convergiram para produzir o denominado marxismo como a mais abrangente síntese das ciências sociais. A primeira das revoluções dava continuidade ao brilhante pioneirismo dos racionalistas dos séculos XVII e XVIII, ao tempo que estabelecia o equivalente das leis físicas para as populações humanas. Seu primeiro triunfo foi a construção de uma sistemática teoria dedutiva de economia política, que já estava bastante avançada por volta de 1789. A segunda das revoluções, que em substância pertence a nosso período e está intimamente ligada ao romantismo, foi a descoberta da evolução histórica. 26

Certamente, neste contexto de inserção da história nas ciências sociais, os reflexos no pensamento jurídico foram imediatos. Nesse contexto histórico, Friedrich Karl von Savigny fundou a escola histórica do Direito em 1815, cujo elementos teóricos fundamentais analisamos no item subsequente, ao tratarmos da forma mais rudimentar de positivismo jurídico: o positivismo legalista.

1.5. O positivismo legalista

O positivismo jurídico, na sua faceta mais primitiva, é conhecido como positivismo legalista ou exegetismo. Trata-se de modelo diretamente associado à Escola da Exegese francesa. Consideramos adequada a compreensão básica da escola da exegese francesa em contraposição à escola histórica inaugurada por Savigny.

O pensamento de Savigny consiste em marco significativo para o estudo do direito, na medida em que o direito (Lei) passa a ser entendido como algo “vivo”, emanado da experiência vivencial de um povo, que o legislador exprime e, em algumas circunstâncias, até integra, mas não pode, arbitrariamente, criar. Em sentido oposto, na França é vivenciada a figura do legislador dotado de soberania na criação das disposições normativas, o que faz ex nihilo. É a materialização da proeminência e do arbítrio do legislador.

Para a Escola histórica, “o Direito não era manifestação ou produto de um legislador racional (...). A crença na imanência de um sentido criador nas manifestações históricas é comum ao que se denomina ‘historicismo’”. 27 Nessa perspectiva, os institutos jurídicos deveriam ser identificados a partir da análise das concretas e típicas formas de conduta. Referidos institutos deveriam ser recompostos na perspectiva da evolução do direito, compreendido, nesse contexto, como um organismo vivo. Esses institutos apresentam os nexos orgânicos dos quais se extraem as regras. As regras, por sua vez, configuram o resultado da intuição global dos institutos que, por sua vez, são o resultado das vivências de um determinado povo.

Aqui vale a referência ao pensamento de Rudolf von Jhering, em sua primeira fase, porque consentâneo com a ideia do Direito como organismo natural. O paradigma de Jhering era fornecido pela história natural: a taxionomia da botânica, bem como a “fisiologia do organismo jurídico” e a análise dos elementos que compõem os “corpos jurídicos”, à maneira da química. Daí ser o seu método denominado “histórico-natural”, já que ele preconiza que seja superada o que chama de “jurisprudência inferior” – “jurisprudência” aqui sempre entendida no sentido de “ciência do direito” ou “dogmática jurídica” –, tal como designa a palavra alemã Jurisprudenz. 28

Ao lado de conceber o direito como uma ciência que opera segundo um método histórico, Savigny também visualizava um caráter filosófico para essa mesma ciência. Mas, ao contrário das filosofias do direito natural (que Savigny chamava de “filosofia do direito propriamente dita”), que procuravam compor o direito a partir de fórmulas lógicas atemporais que podem ser apreendidas pela razão, Savigny identificava um elemento filosófico no direito: a sistematicidade. Assim, a sistematicidade aplicada ao direito pressupõe a filosofia, mas descarta a necessidade do conhecimento do direito natural: o direito, numa perspectiva sistemática, pode ser estudado com ou sem o direito natural. 29

Na sua primeira “encarnação”, o positivismo iniciado pela Escola da Exegese Francesa, no século XIX, declarava a lei – direito posto pelo Estado – como único direito. 30 Por conseguinte, o objeto de estudo dos exegetas se restringia brutalmente à legislatura, especialmente ao seu compilado: os Códigos.

As disposições contidas nos estatutos, conforme se professava à época, eram dotadas de um sentido único, pronto e acabado. A única interpretação possível era a literal. Qualquer outra conduziria a uma inconcebível distorção dos artigos de lei. Cabia ao intérprete, portanto, extrair dos dispositivos legais o significado unívoco que abrigavam por meio de um processo declaratório. Esse ponto merece devida contextualização. Grande parte da aversão da exegese em relação à interpretação judicial estava no fato de, naquela quadra histórica, o Judiciário francês ser considerado a própria nobreza togada.

É possível afirmar que a interpretação, sob o viés exegético, estava restrita ao plano sintático: “Neste caso, a simples determinação rigorosa da conexão lógica dos signos que compõem a ‘obra sagrada’ (Código) seria o suficiente para resolver o problema da interpretação do direito”. 31 À mesma conclusão já chegamos em obra escrita em coautoria com Henrique Garbellini Carnio e Rafael Tomaz de Oliveira. 32

O direito era aplicado a partir de um método silogístico. A lei – premissa maior – deveria ser subsumida ao caso – premissa menor – pelo juiz, a partir do que se chegava à decisão judicial – conclusão. O juiz não estava autorizado a qualquer tipo de criação. Era a boca fria da lei, a quem cabia pô-la em prática por meio de um exercício semiautômato de detecção do preceito legal aplicável aos casos postos sub judice. 33

Assim, a aplicação das normas ocorre mediante método imperativo e lógico que, de acordo com o modelo silogístico-dedutivo (syllogizesthai), se estrutura do conceito mais amplo para o mais estrito. 34 Na valiosa lição de Vesting, a aplicação por subsunção tem como ponto de partida a concepção de que a norma traz à tona um conhecimento que já estava contido na própria norma. O direito não se enriquece, não é produzido no ato interpretativo. A interpretação judicial é uma tarefa associada ao seguir instruções, configurando, assim, uma aplicação quase automática do direito. 35 Esse é um dos pontos de profunda divergência com o pós-positivismo, paradigma no qual todo ato interpretativo é produtivo, desde já ressalvando que diversas facetas do positivismo normativo e contemporâneo superaram visão estritamente dedutiva da interpretação do direito. 36

A expressão do positivismo legalista na Alemanha será o movimento conhecido como jurisprudência dos conceitos ou pandectismo. 37 Na jurisprudência dos conceitos, o erudito substitui o legislador na produção do direito. O Código Civil alemão (BGB) resulta de um processo acadêmico de apuração de conceitos, levado a cabo pelos homens doutos daquela época. Assim, o direito parlamentar se opunha àquele produzido nas universidades alemãs. 38

É própria do pandectismo a ideia da pirâmide dos conceitos, na qual conceitos mais gerais conduzem aos mais específicos, os quais, a seu turno, regulariam o caso concreto. O procedimento contrário também era possível: a partir da identificação dos conceitos específicos aplicáveis ao caso, chegava-se aos conceitos mais gerais. O direito, então, se aplicava a partir desse método lógico dedutivo ou indutivo.

O traço comum entre o exegetismo e o pandectismo (bem como entre os demais positivismos que se projetam como dominantes entre os séculos XVIII e XIX) é o objeto a ser descrito e posteriormente aplicado pelo juiz: a lei. O juiz é a boca fria da lei, que é um dado pronto e acabado, com o qual o magistrado e também o doutrinador devem lidar 39 .

À semelhança do exegetismo, a jurisprudência dos conceitos apostava na interpretação como o ato de revelação. “Era tempo da Auslegung (retirar do texto, que abarca todas as hipóteses de aplicação, o sentido verdadeiro).” 40 O sistema jurídico era completo. Não cabia ao juiz qualquer papel de criação jurídica, mas apenas a revelação daquilo que os Códigos já dispunham. Ambas as doutrinas, a francesa e a alemã, foram notadamente influenciadas pelo Direito Romano, cujo modo de estudar e ensinar o direito era bastante peculiar. Os romanos possuíam um texto sagrado, que era epicentro de todas as preocupações jurídicas. Esse texto era o Corpus Juris Civilis. Com o advento dos Códigos, a sacralidade passa a lhes pertencer. 41

O processo de aplicação do direito era tipicamente racionalista. Por meio da razão, o sujeito acessava as leis da lógica que conduziriam a interpretação e aplicação do direito. 42

Antes de finalizarmos o item referente ao positivismo legalista, faz-se imprescindível registrarmos o alerta do próprio Vesting. Não obstante as características acima descritas configurarem o formato que visualizamos o positivismo legalista, seria equivocada a visão que considera uma dogmática cega aquela produzida pelo positivismo legalista. Isso porque ele teria levado em consideração dimensões históricas e sociais na elaboração de seus conceitos. Esse ponto é evidente na visão estruturada nas premissas de Savigny. A concepção da dogmática cega consistiria em mito do Pós-Guerra. 43

Do mesmo modo, Karl Heinz Ladeur e Ricardo Campos demonstram que a visão que tradicionalmente temos do pandectismo alemão ou do positivismo em sua origem é uma visão simplificadora que não reconhece a complexidade e profundidade das suas teorias. 44 A própria ideia de silogismo seria uma simplificação errônea que atribuímos, de modo geral, aos autores da época.

Ladeur e Campos mencionam o método de Windscheid para demonstrar a incompreensão costumeiramente feita desses autores. Em suas exatas palavras:

Konstruktion para Windscheid figurava como método jurídico por meio do qual uma relação de direito era reconstruída pelos conceitos jurídicos abstratos que a norteavam, contornando assim a decisão (...). Esse método era tido por Windscheid como gerador ou criador de direito, e não apenas como aplicação de algo já estabelecido. O momento da prática jurídica não era assim entendido como controlado pela lógica da linguagem ou por um método subsuntivo, a prática era sempre performativa em sua rotina, seja pela necessidade de adaptação do sistema de direito às circunstâncias adversas, seja pela insuficiência semântico-linguística e dispersão das fontes do direito. 45

Na mesma linha, também seria mito a imagem de que o positivismo legalista enxergaria na subsunção o mecanismo exclusivo de interpretação do direito. Savigny possibilitou a construção de importantes regras de interpretação que, por si só, superariam a imagem do julgador como autômato subsuntivo. Essa mesma superação existiria na visão de Windscheid que já distinguiria a interpretação gramatical, lógica e objetiva da interpretação, cuja função seria a colmatação de lacunas. 46

O alerta de Vesting nos indica que o positivismo legalista alemão, inspirado em Savigny, continha sofisticação interpretativa que não se apresentava na exegese francesa. Nesse ponto, refazemos nosso alerta para o fato de o positivismo ser complexo e heterogêneo. Logo, essas aproximações, por exemplo, ao englobarem no positivismo legalista a exegese e a jurisprudência dos conceitos, podem gerar determinados equívocos ou visões distorcidas do fenômeno. Sendo assim, nossa classificação se mantém por razões didáticas, mas nossa preferência é sempre pela apresentação do positivismo de cada um dos autores a fim de preservar suas particularidades e riquezas conceituais.

1.5.1. Mitos sobre o positivismo

A 2ª Guerra Mundial deu azo a uma série de crises nas diversas áreas do conhecimento. A comunidade jurídica se viu compelida a prestar contas à humanidade, haja vista a noção popularmente difundida de que o partido nazista, desde a sua gênese, operou sob o manto da lei. Na esteira desse raciocínio, não tardou para que o positivismo jurídico se tornasse vilão, pois sua essência formalista permitia que a legalidade abraçasse qualquer conteúdo. O juspositivismo, dadas as suas premissas, não era capaz de fazer oposição teórica contundente ao nazifascismo. Entretanto, isso não nos autoriza a lhe atribuir a responsabilidade pela ascensão e desenvolvimento do regime totalitário que se instaurou na Alemanha. A análise adequada do tema exige conhecimento da história.

Atribuir ao positivismo a legitimação dos horrores da 2ª Guerra Mundial consiste em análise superficial e até injusta perante a complexidade dos acontecimentos históricos.

Apenas mediante investigação histórica é que se torna possível livrar o positivismo da culpa pelo nazismo que lhe foi injustamente relegada pela doutrina nacional e internacional. Conforme Ricardo Campos, “A mais valia do conhecimento profundo da história, por um lado, evita construções de teorias falaciosas e, por outro, aumenta a complexidade da pretensão teórica em questão”. 47

No Brasil, parcela doutrinária se manifesta contra o positivismo, sob o argumento de que este, ao lado do estrito legalismo e da subsunção, teriam criado as condições necessárias para legitimar o nazismo e o fascismo: “esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente, e promoveram a barbárie em nome da lei”. 48

Contudo, essa visão ignora o fato de que o nacional-socialismo, como qualquer movimento revolucionário, se opunha à ordem vigente. 49 A lei positivada não era aliada, mas uma verdadeira inimiga do partido. Portanto, para pôr em prática os planos que tinham para a Alemanha, os nazistas precisavam burlar, instrumentalizar ou esvaziar o direito positivo. Por conseguinte, “a barbárie não veio em nome da lei, pelo contrário, ela se estabilizou e se concretizou fora da lei”, 50 Ricardo Campos ensina que, a título de exemplo, entre janeiro e maio de 1933, os direitos fundamentais mais importantes perderam a validade e a estrutura partidária e sindical fora aniquilada pela intitulada “Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich”, a “Ermächtigungsgesetz”.

Segundo o historiador do direito [Stolleis], o que aconteceu de forma acelerada nessas poucas semanas foi a supressão do fundamento positivista ou positivo do direito estatal alemão pela segunda vez no século XX, e não o contrário, como diz a fórmula Barroso. 51

Em suma, o direito totalitário do regime nazista somente se estruturou a partir da aniquilação do direito positivo da República de Weimar.

Mario Losano, ao examinar a influência do nacional-socialismo no direito alemão, reporta que o direito preexistente era um incômodo aos nazistas. Para derrotá-lo, porém, os nazistas não destruíram completamente a ordem jurídica posta: instrumentalizaram-na para o seu benefício, por meio da introdução de “textos-veículos” de sua ideologia, aos quais submeteram todas as leis postas. Conforme expõe o autor, “o positivismo jurídico foi substituído por um Führerpositivismus”. 52 A interpretação obedecia a princípios nazistas, propositalmente vagos, na medida em que, a partir desses conceitos jurídicos indeterminados, os juízes poderiam, no caso concreto, distorcer qualquer texto para o atendimento de fins políticos. A tática, portanto, foi a de esvaziar completamente o direito positivo posto por meio de conceitos altamente performáticos que permitiam ao Führer praticamente tudo em nome do “povo alemão”.

Michael Stolleis, em obra dedicada ao estudo do Direito Público na Alemanha, realiza um recorte histórico fundamental para compreender de que modo o direito e as instituições foram afetados em razão da ascensão do regime nazista. Verbis:

A transferência de poder feita pelo presidente do Reich, Paul von Hindeburg, ao agitador radical Adolf Hitler foi realizada nas formas a que se estava habituado durante os mandatos dos chanceleres Heinrich Brüning, Franz von Papen e Kurtz von Schleicher. Mas o que ela pôs em marcha foi uma convulsão do Estado em uma atmosfera em que se misturavam júbilo e mutismo amedrontado. Ao desmantelamento dos partidos seguiram-se a abolição do parlamentarismo, do federalismo, do dualismo entre presidência e chancelaria, a dissolução de todas as associações sociais importantes em prol de organizações controladas por partidos, ou seja, de modo geral, a metamorfose da democracia parlamentar em um Fürerstaat [Estado do líder] destituído de constituição o. Tudo isso aconteceu em aproximadamente 24 meses, sem que se tenha formado uma verdadeira resistência. 53

Contribuiu para a corrosão da ordem vigente a cooperação das elites burguesas, que aparelhavam a administração, o Judiciário e as Forças armadas. A essas elites, nunca receptivas à ordem posta, agradava o fim da democracia de Weimar, do parlamentarismo, dos sindicados, a perseguição dos comunistas e dos sociais-democratas, a expulsão dos judeus, as medidas destinadas à criação de emprego e a política externa, cujo objetivo era recuperar o país do trauma “Versalhes”. 54

Àqueles que levantassem voz contra o regime, eram reservados o exílio ou os primeiros campos de concentração. 55

O nacional-socialismo não apenas corrompeu o ordenamento constitucional, como prejudicou sensivelmente a ciência 56 , altamente contaminada pela política. De fato, a teoria fora despudoradamente instrumentalizada para objetivos políticos, ao ponto de colocar-se em risco a própria ideia de Estado de Direito. 57 Finda a guerra, pouquíssimo era o material científico aproveitável. 58 Não faltam exemplos de perseguição de acadêmicos judeus ou politicamente indesejáveis. Definitivamente, foi um período decididamente obscuro para o conhecimento na Alemanha.

Como se não bastasse, os direitos fundamentais mais importantes foram expurgados por meio do Decreto de Incêndio do Reichtagem de fevereiro de 1933, seguidos pelo parlamentarismo, pelos partidos, pelo federalismo. Nem mesmo a diferenciação entre presidente do Reich e chanceler sobreviveu. O Führer passou a ser o centro de tudo. A Constituição de Weimar fora completamente esvaziada. 59 Para Hitler, direitos fundamentais, Estado de Direito, as questões constitucionais, os procedimentos etc., eram supérfluos diante dos planos de construção de um grande império germânico.

Portanto, por meio dessa pequena incursão histórica, objetivamos demonstrar que é perigosamente simplista atribuir diretamente ao positivismo a responsabilidade pela ascensão do regime nazista, sobretudo quando se nota que o partido do Führer agiu mediante o esvaziamento do direito positivo dantes vigente. Não houve “barbárie sob o manto da lei”. Quando muito, pode se falar sobre “barbárie com aparência de lei”.

1.6. O positivismo normativista

As formas mais primitivas de positivismo foram suplantadas pelo normativismo, cujo expoente inaugural foi Hans Kelsen. O positivismo normativista se caracteriza pela substituição do objeto de estudo: em lugar de reduzir o direito à lei, reduzia-o à norma jurídica. 60 Nos itens subsequentes, examinaremos o pensamento kelseniano, no intuito de expor as linhas gerais de sua teoria.

1.6.1. O pensamento de Kelsen na perspectiva do positivismo normativista: causalidade e imputação

A investigação kelseniana sobre a ciência jurídica considera o direito como norma, ou seja, como sistema de normas, e limita a ciência jurídica ao conhecimento e descrição dessas normas jurídicas e às relações por estas constituídas, “(...) delimita-se o direito em face da natureza e a ciência jurídica, como ciência normativa, em face de todas as outras ciências que visam o conhecimento, informado pela lei da causalidade, de processos reais”. 61

Para Kelsen, somente por essa via se alcança um critério seguro de distinção unívoca de sociedade e natureza e de ciência social e natural.

Em primeiro lugar, a natureza como determinada ordem das coisas ou sistema de elementos que estão ligados uns aos outros como causa e efeito é demonstrável com o clássico exemplo do aquecimento do ferro e sua consequente dilatação. Se há uma ciência social que é diferente da ciência natural, ela deve descrever seu objeto por uma via diversa do princípio de causalidade, ou melhor, não apenas a partir dele. 62

A sociedade, enquanto ordem normativa da conduta humana, não pode ser totalmente negada também como elemento da natureza. Nessa afirmação da sociedade enquanto ordem normativa se tem claro que, na abordagem em que Kelsen se refere à conduta humana, verifica-se uma conexão dos atos de conduta humana entre si e com outros fatos. Desse modo, nota-se que Kelsen anuncia uma relação não apenas formada de acordo com o princípio da causalidade, mas também com um outro princípio que é totalmente diferente.

Apenas com a compreensão e aplicação de tal princípio, a partir da prova de que está presente no pensamento humano e é aplicado por ciências que têm por objeto a conduta dos homens entre si enquanto determinada por normas, é que se poderá fundamentar a sociedade como uma ordem diferente da natureza.

Também é devida a Kelsen a possibilidade de se distinguir as ciências naturais das ciências que as aplicam na descrição de seu objeto, o que inclusive as determinam como essencialmente diferentes.

A proposta de Kelsen, com efeito, é que somente quando a sociedade passa a ser entendida como uma ordem normativa da conduta dos homens entre si é que ela pode ser concebida como um objeto diferente da ordem causal da natureza. Do mesmo modo, também, só então é que a ciência social pode ser contraposta à ciência natural.

Portanto, apenas quando o direito for uma ordem normativa da conduta dos homens entre si, ele passa a ser diferenciado como fenômeno social em relação à natureza. Por consequência, a ciência jurídica, enquanto ciência social, pode ser separada da ciência da natureza. 63

O princípio ordenador da ordem normativa da conduta dos homens entre si, que é diferente do princípio da causalidade, é designado por Kelsen como imputação (Zurechnung).

Na análise do seu pensamento jurídico, com relação às proposições jurídicas, no direito é aplicado efetivamente o princípio da imputação, que, embora análogo ao da causalidade, se distingue dele de maneira essencial. A analogia entre o princípio da imputação e o princípio da causalidade reside na circunstância de que o primeiro tem nas proposições jurídicas função semelhante à do princípio da causalidade nas leis naturais. Da mesma maneira que uma lei natural, uma proposição jurídica liga entre si dois elementos.

Assim pode-se dizer que a diferença existente reside na ligação que se expressa na proposição jurídica, totalmente diferente da lei natural indicada pelo princípio da causalidade. Se, por um lado, a lei natural se expressa na fórmula “se A é B é”, por outro, a proposição jurídica se expressa na fórmula “se A é deve ser B”, mesmo quando B não seja. A circunstância que delimita essa separação faz surgir a ideia da ficção jurídica. Para Kelsen, a ligação da proposição jurídica vem de sua produção por uma norma estabelecida pela autoridade jurídica, por uma vontade, enquanto a ligação de causa e efeito apresentada pela lei natural é totalmente independente de qualquer intervenção nesse sentido. 64

O fato de uma proposição jurídica descrever algo não quer dizer que esse algo seja da ordem do ser. Particularmente a proposição não é um imperativo. Ela é um juízo, que na exploração kelseniana de matriz kantiana recebe o sentido de uma afirmação sobre um objeto dado ao conhecimento, ela é uma descrição objetiva, ou seja, uma descrição alheia a valores (wert-frei) metajurídicos e sem qualquer sentido emocional, que não se torna prescrição. Ela apresenta, tal qual a lei natural, a ligação de dois fatos, uma ligação funcional, que, nesse sentido, segundo a analogia com a lei natural, também pode ser designada por lei jurídica, e, tal como a lei natural, apresenta um caráter geral, pois descreve as normas gerais da ordem jurídica e as relações por ela constituídas.

A noção de imputação a que Kelsen se refere é a mesma que se opera com o sentido jurídico de imputabilidade, a de que imputável é aquele que pode ser punido por sua conduta, aquele que pode ser responsabilizado por ela. Inimputável, de modo contrário, é aquele que por ser menor ou enfermo mental não pode ser punido pela mesma conduta, não pode ser por ela responsabilizado. 65

A imputação que se apresenta no conceito de imputabilidade não é a ligação de uma determinada conduta com a pessoa que assim se conduz, mas a ligação de uma determinada conduta, de um ilícito, com a consequência do ilícito. Por isso Kelsen afirma que a consequência do ilícito é imputada ao ilícito, mas não é produzida pelo ilícito, como sua causa. Portanto, a ciência jurídica não busca uma explicação causal dos fenômenos jurídicos, e, em suas proposições jurídicas que descrevem estes fenômenos, ela não aplica o princípio da causalidade, mas sim o princípio da imputação.

Para Kelsen, as normas mais antigas da humanidade provavelmente são aquelas que visam à limitação dos impulsos sexuais e agressivos. O incesto e o homicídio são, absolutamente, os crimes mais antigos, como são a perda da paz (Fried-loslegung) e a vingança de sangue as mais antigas sanções socialmente organizadas, as quais possuem em sua base originária a regra da retribuição. 66

O princípio da imputação no seu significado original conexiona dois atos de conduta humana. As normas de uma ordem social não têm apenas de se referir à conduta humana, pois podem referir-se também a outros fatos. A imputação que se realiza com fundamento no princípio da retribuição e representa a responsabilidade moral e jurídica é um caso particular. O mais importante, no que concerne à imputação, é a ligação da conduta humana com o pressuposto sob o qual essa conduta é prescrita numa norma. Desse modo, toda retribuição é imputação, mas nem toda imputação é retribuição. 67

Compreendida a lógica em que se estrutura o pensamento científico kelseniano, outro elemento é fundamental para entender sua proposta positivista, a saber: o conceito de vontade.

1.6.2. A vontade no pensamento de Kelsen

De forma acurada, Kelsen define que, para se considerar o conceito de vontade, deve-se, antes de tudo, procurar definir “vontade” em terminologia jurídica, assim como o que deve ser considerado como “querido” do ponto de vista da jurisprudência – palavra aqui utilizada com fidedignidade como Kelsen a apresenta –, ou seja, como ciência do direito em sentido estrito, isto é, dogmática jurídica.

Para tal definição, o contraste proposto por Kelsen é o do conceito psicológico de vontade. De início, Kelsen destaca a circunstância de que, do ponto de vista jurídico, não se destaca nunca como objeto da “vontade” uma representação, mas sempre fenômenos de ordem exterior, substratos de fato.

O que realmente interessa à jurisprudência (ciência do direito) é, com efeito, encontrar a conexão entre os substratos exteriores do fato e os sujeitos. O que importa para o jurídico e deve ser problematizado é saber se um fato exterior foi “querido” ou não pelo sujeito.

Se não se dá este substrato exterior do fato, o jurista não tem ocasião e nem possibilidade de pôr em ação seu conceito de vontade, já que este conceito não tem mais do que o fim de estabelecer um nexo específico entre o sujeito (no sentido de pessoa e não de ser humano) e os acontecimentos do mundo exterior.

Assim, tudo aquilo que se refere a processos puramente interiores que ocorrem na alma do homem, sem a menor relação com o mundo externo, cai exclusivamente na órbita de competência da psicologia, cujo objeto é o homem, o ser humano, ao passo que, segundo Kelsen, a ciência do direito somente se ocupa com a pessoa.

Para Kelsen os acontecimentos externos não podem ser considerados nunca como conteúdo do fato psíquico, a que chamamos “vontade”, é dizer, como queridos, no sentido psicológico da palavra. Por esse motivo que se faz necessário estabelecer uma relação entre os acontecimentos puramente interiores da vontade e os acontecimentos exteriores. Esses acontecimentos do mundo físico exterior ou substratos do fato somente podem ser considerados produzidos pela vontade e o desenvolvimento corporal desencadeado por esta, sem que se deva olvidar que essa ação causal e efetiva sobre o exterior é indiferente quanto ao ajuizamento do fenômeno psíquico interior da vontade.

Assim, num primeiro plano, seria como se o juridicamente “querido” fosse idêntico ao que reconhecemos como produzido pela vontade, mas esta maneira de pensar também é inadmissível. 68

Conclusivamente, se tem que o conteúdo do conceito de vontade revela uma diferença substancial entre o que a psicologia chama de “vontade” e o que chama de “vontade” a jurisprudência (ciência do direito). E tal discrepância é ainda destacada com maior claridade quando se investiga o conceito de vontade naquelas acepções específicas em que se emprega nos distintos campos especiais da jurisprudência.

É por essa via estreita que Kelsen elabora os limites estreitos da concepção organizacional da sociedade pelo direito, uma vez que somos livres a partir da lei.

1.6.3. A função da ciência do direito e a responsabilidade jurídica em Kelsen

Como apontam Willis Santiago Guerra Filho e Henrique Garbellini Carnio na obra Teoria política do direito, 69 Kelsen mantinha um resquício anti-imperativista em seu pensamento, quando defendia que a “norma (hipotética) fundamental” (Grundnorm), que em sua teoria fornece a consistência lógica do sistema jurídico, bem como a base última em que se assenta a estrutura hierárquica (Stufenbau) do ordenamento jurídico, não era o resultado de um ato impositivo de vontade, mas sim uma condição a priori do conhecimento jurídico, no sentido transcendental kantiano. 70

A questão é, como um ato “meramente pensado”, mera hipótese com função heurística, pode se constituir no fundamento de validade de uma ordem criativa (Zwangsordnung) como seria para Kelsen a ordem jurídica, formada por normas imperativas, que fornecem o sentido objetivo de atos de vontade para o Direito, sendo eles próprios, portanto, resultantes de ato de vontade. 71

O reconhecimento da pluralidade dos conceitos com os quais trabalha a ciência jurídica, principalmente desde o século passado, levou Kelsen a propor a sua Reine Rechtslehre (doutrina pura do direito), na qual ele funda a pretensão de reduzir todos os fenômenos jurídicos a uma dimensão exclusiva e própria, capaz de ordená-los corretamente. Dimensão esta, como se sabe, considerada por ele como normativa.

Kelsen propõe, nesses termos, uma ciência jurídica preocupada em ver, nos diferentes conceitos, o aspecto normativo, reduzindo-os a normas ou a relações entre normas.

Importante destacar que o princípio de sua resposta está numa radical distinção entre duas categorias básicas de todo o conhecimento humano: ser e dever ser, a partir da qual se distinguem o mundo da natureza e o mundo das normas. Kelsen reconhece que o direito é um fenômeno de amplas dimensões, sendo objeto de uma Sociologia, História, Antropologia, Psicologia, Ética etc. Para a Ciência do Direito strictu sensu, porém, ele deve ser visto como um objeto que é o que é pela sua especial forma normativa.

Um dos conceitos-chave ao qual Kelsen dá um especial tratamento é o da vontade, como iniciado no tópico anterior. Para ele, a vontade é apenas o resultado de uma operação lógica fundamental para a compreensão da normatividade do direito: a chamada imputação. Imputação é o modo como os fatos se enlaçam dentro de uma conexão normativa: a pena é imputada a um comportamento, donde temos a noção de delito; o comportamento que evita a pena e não é imputado nos dá a noção de dever jurídico; assim, sujeitos de direito nada são mais do que centros de imputação normativa, e vontade, juridicamente falando, é uma construção normativa que representa o ponto final num processo de imputação. 72

O pensamento de Kelsen segue uma inclinação significativa para o ambiente em que estava inserido. O contorno do positivismo no século XIX, que imprime um forte modelo metodológico no estudo científico, e o fenômeno da positivação revelam a importante superação da causalidade.

Ao passo que no séc. XIX se entendeu de maneira um tanto precária a positivação como uma relação causal entre a vontade do legislador e o direito como norma legislada ou posta, no séc. XX nota-se que o direito positivo não é criação da decisão legislativa (relação de causalidade), mas surge da imputação da validade do direito a certas decisões, sejam elas legislativas, judiciais ou administrativas. 73

Desse modo, há uma modificação no status científico da ciência do direito, que se preocupa agora com a determinação daquilo que deve ser direito (relação de imputação), deixando para trás a necessidade de determinar materialmente aquilo que sempre foi direito, com o intuito de descrever aquilo que, então, pode ser direito (relação causal). O que passa a estar em jogo não é mais a questão da verdade do direito, mas sim de sua decidibilidade. 74

A influência kantiana no pensamento dessa época vem impregnada da relevância a ela dada pelo desenvolvimento da Escola Histórica do Direito, que, como mostra Franz Wieacker, 75 terminou por contribuir menos para o estudo histórico do direito do que para a construção de uma sistematização conceitual, que fora iniciada pelo jusracionalismo tendo como base a civilística do direito comum europeu. 76

Essa sistemática se desenvolve a tal ponto que autores como Windscheid, o expoente máximo da pandectística, defendem a aplicação do direito utilizando elementos jurídicos separados de quaisquer outros de ordem política, econômica, ética etc. Nota-se aí a ideia central do positivismo científico, que reporta à rigorosa diferenciação operada por Kant entre as ordens moral e jurídica e resulta no formalismo como princípio vetor da prática jurídica. 77

Na esteira desse desenvolvimento é que, mais adiante, Kelsen vai propor sua Teoria Pura do Direito, na qual reafirma o postulado fundamental do positivismo científico.

Kelsen propõe a sua ideia de dimensão normativa do direito, identificando o direito com a norma. Esta tem como elemento essencial a sanção, que se estabelece na relação do princípio de imputação.

Assim, nessa relação entre norma e sanção, surge a ideia de uma norma hipotética no pensamento de Kelsen, que indica em si sua primeira dúvida.

Dessa forma, por exemplo, Kelsen, depois de reconhecer a sanção como elemento essencial da norma e de distinguir entre normas independentes e dependentes, acaba por recorrer a uma norma última, hipotética, não sancionadora, que deve fundar toda a ordem jurídica: a Grundnorm, confundindo as duas formas de relação, a sistemática e a de conexão, sem esclarecer, de modo satisfatório, a questão de legitimidade do direito. 78

A norma hipotética fundamental sustenta a estrutura kantiana da proposta de Kelsen. Para ele, a norma hipotética fundamental (Grundnorm) fornece a consistência lógica do sistema jurídico, bem como a base última em que se assenta a estrutura hierárquica (Stufenbau) do ordenamento jurídico, que em sua teoria não era o resultado de um ato impositivo à vontade, mas, sim, uma condição a priori do conhecimento jurídico, no sentido transcendental kantiano. 79

A relação existente entre dimensão normativa do direito, imputação, sanção e norma fundamental em Kelsen traz à tona a proposta de Kelsen sobre a diferenciação de que há um ponto terminal da imputação, mas que não há um ponto terminal da causalidade. Ela vem à tona, pois é este pensamento que conduz Kelsen à sua reflexão sobre o dualismo ser e dever-ser.

Em seu esforço de distinguir o plano dos princípios da causalidade e da imputação, Kelsen chega a apontar algumas diferenças entre ambos 80 . No fato de ambos se apresentarem como juízos hipotéticos nos quais um determinado pressuposto é ligado com uma determinada consequência revela-se sua primeira diferença, justamente no sentido da ligação de cada um. O princípio da causalidade afirma que, quando A é, B é ou será, já o princípio da imputação afirma que quando A é, B deve ser. Outra diferença profundamente importante consiste em que toda a causa concreta pressupõe como efeito uma outra causa, e todo efeito concreto deve ser considerado como causa de um outro efeito, de tal forma que a cadeia de causa e efeito é interminável nos dois sentidos. Já no princípio da imputação a situação se dá de maneira diferente: o pressuposto a que é imputada a consequência, seja numa lei moral, seja numa lei jurídica, não é necessariamente uma consequência que tenha de ser atribuída a outro pressuposto, e a consequência também não tem necessariamente de ser outro pressuposto a que se deva atribuir nova consequência. Por fim, a terceira diferença, é a de que há um ponto terminal na imputação, diferentemente do que ocorre na série causal. Esse ponto terminal da imputação é inconciliável com a ideia de causalidade.

Sobre a base do princípio da imputação, quando um homem é responsabilizado por sua conduta moral ou imoral, jurídica ou antijurídica, são respectivamente imputados um prêmio, um castigo ou uma consequência do ilícito, e essa imputação encontra o seu ponto terminal na conduta do homem interpretada como ato meritório, como pecado ou como ilícito.

Essa é a razão pela qual, para Kelsen, o problema da responsabilidade moral ou jurídica está essencialmente ligado à retribuição. A retribuição é a imputação da recompensa ao mérito, da penitência ao pecado, da pena ao ilícito, que representa a sua responsabilidade moral ou jurídica e encontra seu ponto final.

Daí que o significado de “homem livre”, seja numa ordem moral ou jurídica, dá-se porque ele é o ponto terminal de uma imputação apenas possível com base na ordem normativa em que está inserido.

Isso revela o sentido da afirmação kelseniana de que não se imputa algo ao homem porque ele é livre, mas sim, o contrário; o homem é livre porque se lhe imputa algo. Esta relação comprova que imputação e liberdade possuem de fato uma conexão.

Por essa via surge a concepção de livre-arbítrio em Kelsen, que é relacionada ao posicionamento de Max Planck, cuja crítica leva para a sustentação do princípio da causalidade estrita interpretado como um postulado epistemológico. Kelsen apresenta que a questão da liberdade de arbítrio parece ser sustentada pela moderna física, especialmente pelos resultados da mecânica quântica, na qual é seriamente criticada a suposição de uma lei universal da causalidade. Mesmo antes da descoberta desse novo campo da física já se podia argumentar sobre a inexistência de uma causalidade estrita da realidade, pois, pela insuficiência de nossos sentidos e pela inevitável inexatidão de nossas observações deles resultantes, não existe nenhum evento na realidade que possa ser previsto com certeza absoluta.

A física, diz Planck,

(...) coloca um novo mundo no lugar do que nos é dado pelos sentidos ou pelos instrumentos de medição usados para auxiliar os sentidos. Esse outro mundo é a chamada representação do mundo físico. Ele é uma mera estrutura intelectual. Até certo ponto, é arbitrário. É uma espécie de modelo ou idealização criada para evitar a inexatidão inerente a todas as medições e para facilitar a definição exata. “Enquanto a previsão de qualquer evento no mundo dos sentidos está sempre sujeita a certa inexatidão, todos os eventos da representação do mundo físico acontecem em conformidade com certas leis definidas que podem ser formuladas e, portanto, são causalmente determinadas”.

Contudo, existe na mecânica quântica um fenômeno que parece escapar a essa interpretação. É a chamada relação de incerteza, originalmente formulada por Heisenberg. Essa relação afirma, entre outras coisas, que “a medição da velocidade de um elétron é tanto mais inexata quanto mais exata a medição de sua suposição no espaço, e vice-versa”.

A razão disso é que:

(...) só podemos determinar a posição de um elétron em movimento se pudermos vê-lo e, para vê-lo, devemos iluminá-lo, isto é, devemos permitir que a luz incida sobre ele. Os raios que incidem sobre ele chocam-se com o elétron, e assim, alteram sua velocidade de uma maneira que é impossível calcular. (...) Isso significa que o objeto da observação é modificado pelo próprio ato da observação, por mais exata que possa ser essa observação. Ela constitui uma interferência causal no processo observado e, assim, torna impossível o discernimento do nexo causal do fenômeno observado.

Muitos físicos, entre eles Heisenberg e Bohr, concluem a partir dessa impossibilidade que o comportamento do elétron individual pode ser previsto apenas com certo grau de probabilidade estatística, que, consequentemente, não pode ser interpretado como sujeito à lei da causalidade, que essa lei não se aplica nesse caso, que não há causalidade estrita na realidade da natureza, que as chamadas leis da natureza são meramente leis de probabilidades sujeitas a exceções. 81

Essa constatação criou duas interpretações entre os físicos e filósofos. A primeira de que com o princípio da incerteza a natureza não é, como supunha a física clássica, governada por leis, sendo assim organizada e compreendida. A segunda, refutando a primeira, é bem representada na afirmação de Planck, que entende que o abandono da lei da causalidade se estrutura numa confusão entre o mundo dos sentidos e o da representação física.

Portanto, no pensamento de Kelsen a noção de livre arbítrio não se refere a algo “natural” do homem, mas como algo construído a partir de normas jurídica, ou seja, a liberdade ocorre a partir da lei. É a validade das normas jurídicas – pela via da responsabilidade jurídica – que determina a liberdade de arbítrio. Em Kelsen, se é livre a partir da lei.

1.6.4. Norma e decisão judicial no positivismo normativista: Kelsen e Hart

No positivismo kelseniano, a categoria de norma não inclui apenas a lei ou as normas gerais, mas também as normas individuais. Em suas exatas palavras: “as normas jurídicas individuais pertencem tanto ao Direito, são tão parte integrante da ordem jurídica, como as normas jurídicas gerais com base nas quais são produzidas”. 82 Ou seja, aquela que era a protagonista do exegetismo (a lei), no normativismo é apenas uma entre tantas outras espécies normativas, nascida da dinâmica de aplicação do próprio direito, processo que é também o de sua produção. 83 A decisão judicial, neste sentido, é um ato de produção jurídica (o último).

Kelsen esgotou seus esforços no desenvolvimento de uma Ciência do Direito autônoma. Muito pouco de seu trabalho cuidou da aplicação do direito. Apenas um capítulo da Teoria Pura do Direito se dedica ao estudo da interpretação, à qual o autor define como “uma operação mental que acompanha o processo da aplicação do Direito no seu progredir de um escalão superior para um escalão inferior”. 84

A Teoria kelseniana biparte a interpretação em dois tipos: a autêntica e a inautêntica. A primeira é a operada pelo órgão oficialmente incumbido da aplicação do Direito, a segunda é a realizada pelos juristas.

O normativismo reconhece a pluralidade de sentidos possíveis para um determinado texto jurídico. 85 O problema da interpretação deixa de ser sintático e passa a ser semântico. 86

Apenas a interpretação inautêntica é um ato de conhecimento, porquanto se reduz a elencar os significados possíveis de uma lei de modo a conformar uma moldura. 87 A intepretação autêntica, a seu turno, é também um ato de vontade, eis que o intérprete autêntico elege uma entre as diversas possibilidades contidas na moldura. 88 Ao fazê-lo, cria uma norma, à qual não se opõe qualquer juízo de valor: “Do ponto de vista do Direito positivo, nada se pode dizer sobre sua validade e verificabilidade”. 89

Essa diferenciação decorre da separação que Kelsen opera entre Ciência do Direito e direito, entre ser e dever ser, entre juízos descritivos e juízos de valor, entre descrição e prescrição. A Ciência do Direito descreve as coisas como são, por isso mesmo apenas lista as interpretações possíveis; pertence ao mundo do ser e para lhes garantir objetividade não se autoriza o intérprete a optar por qualquer das possibilidades de sentido. O direito pertence ao mundo do dever-ser, ele se origina de um processo político contaminado pelos valores políticos e morais. A decisão jurídica, como direito novo e prescritivo que é, também nasce de uma escolha política a ser realizada pelo juiz no processo de interpretação autêntica. 90

Posteriormente a Kelsen, o próximo grande positivista jurídico foi Herbert Hart. A exemplo de seu antecessor, Hart também propunha uma teoria do direito descritiva, ou seja, cuja pretensão era descrição objetiva do direito, a ser realizada por um observador neutro. 91

Longe de promover uma análise aprofundada sobre todos os aspectos da obra de Hart, que é complexa e fundamental para o debate contemporâneo, passaremos à exposição de discussão das teses que consideramos mais relevantes diante da temática debatida neste capítulo, mais especificamente, o delineamento de um paradigma pós-positivista que possa culminar no oferecimento de uma teoria da decisão.

Para Hart, o direito constitui um sistema conformado por uma junção de regras primária e secundárias. As primeiras são aquelas que impõem deveres, isto é, as que constituem os indivíduos numa obrigação positiva (fazer) ou negativa (deixar de fazer); as segundas outorgam poderes para identificar, alterar ou aplicar as primeiras. Grosso modo, as regras secundárias serviriam para suportar o sistema de regras primárias, corrigindo quaisquer defeitos. 92

Segundo o autor, a identificação de quais regras primárias estão válidas no ordenamento é feita a partir de uma regra secundária intitulada regra de conhecimento. É por meio da regra de conhecimento que os órgãos encarregados de aplicação das regras primárias podem detectar quais compõem o ordenamento:

A forma mais simples de solução para a incerteza própria do regime de normas primárias é a introdução de algo que chamaremos “norma de reconhecimento”. Essa norma especifica as características que, se estiverem presentes numa determinada norma, serão consideradas como indicação conclusiva de que se trata de uma norma do grupo, a ser apoiada pela pressão social que este exerce. A existência dessa norma de reconhecimento pode assumir qualquer uma dentre uma imensa variedade de formas, simples ou complexas. 93

Encontrar as normas que integram o ordenamento importa afirmar quais normas são válidas. Ou seja, a regra de reconhecimento desempenha, na teoria de Hart, o papel que Kelsen atribuiu à norma hipotética fundamental: ser o fundamento último de validade do sistema jurídico. 94

A regra de reconhecimento, num geral, não é expressamente formulada como tal. Entretanto, à diferença de uma norma hipotética pressuposta, a regra de reconhecimento pode ser demonstrada. A demonstração ocorre pela forma como, na prática, são identificadas as normas específicas por quem manuseia o direito. Ou seja, a regra de reconhecimento não é declarada, mas é aceita pela comunidade jurídica.

Do mesmo modo, a regra de reconhecimento não está sujeita a teste de validade por eventual norma superior, justamente porque constitui o cume do sistema jurídico. É possível, portanto, de um ponto de vista externo, demonstrar a existência da regra de conhecimento, mas não a sua validade. Essa existência depende da aceitação da comunidade jurídica, a norma de reconhecimento, em síntese, é prática social complexa: 95 aí reside o elemento sociológico do positivismo hartiano, que não se encontra em Kelsen.

As regras que conformam o sistema jurídico são enunciadas de maneira geral, seja pelo precedente, seja pela legislação. Consequentemente, não preveem pormenorizadamente todas as situações; são comandos genéricos, que abarcam um grupo de situações. A linguagem que exprime as regras gerais carrega consigo uma incerteza conata que, inevitavelmente, pode gerar dúvidas quanto aos casos de aplicação.

Por óbvio que alguns casos são de fácil solução (easy cases). Sua complexidade é baixa e apresentam dificuldades alinháveis à regra de direito e, por isso mesmo, são, na teoria hartiana, resolvidos por meio do silogismo. Para esses casos, a linguagem da regra é clara o suficiente, de modo que não queda dúvida quanto à sua aplicação ao caso.

Os casos simples, nos quais os termos gerais não parecem carecer de interpretação e o reconhecimento de exemplos parece pouco problemático ou “automático”, são apenas os familiares, que reaparecem continuamente em contextos semelhantes, a respeito dos quais existe um juízo consensual quanto à aplicabilidade dos termos classificatórios. 96

Entretanto, existem outros tipos de casos, para os quais não se identifica regra própria a regulamentar o conflito. A linguagem é limitada e não consegue abarcar todas as situações fáticas possíveis. Cuida-se de uma consequência da própria condição do homem, incapaz de prever todas as possibilidades de aplicação para a regra criada. Para Hart, como consequência dessas limitações, em todo ordenamento jurídico haverá sempre uma gama de casos não regulados pelas regras postas (os casos difíceis/hard cases). Ausentes os critérios jurídicos a ser aplicados prima facie, o juiz estaria autorizado a agir discricionariamente. 97

À dicotomia casos fáceis-difíceis se opõe um modelo decisório também dicotômico, o silogístico-discricionário. A discricionariedade surge quando o julgador se depara com casos (difíceis) que se encontram na intitulada “zona de penumbra”, posto que não estão expressamente regulados por nenhuma regra do sistema. A essa zona de incerteza é que Hart se refere ao afirmar que o direito possui uma textura aberta. 98

Sobre o tema, Lenio Luiz Streck aponta que

(...) diante da inexistência de fatos morais, como Hart afirmava, o Direito não poderia depender da moralidade para a sua identificação, critério de validade ou determinação de seu conteúdo. Deste modo, as fontes sociais deveriam excluir, em tese, a dimensão moral. Consequentemente, para além dos limites do Direito, não haveria critérios públicos para verificar a correção de uma decisão judicial ou para delimitá-la. Assim, nos casos em que isto se evidenciasse (hard cases), o julgador teria discricionariedade em sua decisão. 99

As teorias professadas por Hart serão fortemente criticadas por Ronald Dworkin. O embate levará Hart a escrever o pós-escrito O conceito de direito, onde admitirá a possibilidade de a regra do conhecimento poder incorporar valores morais, o que o leva a se auto denominar positivista moderado, termo que, atualmente, se tem designado de positivista inclusivista.

Depois de Hart, os positivistas, em virtude do debate que travaram com Dworkin, passam a se dividir entre inclusivistas ou exclusivistas de acordo com sua posição diante da relação entre direito e moral. Essas novas reformulações do pensamento positivista serão mais bem estudadas no item destinado ao exame do positivismo contemporâneo.

1.6.5. O realismo jurídico

Costuma-se apontar como outra modalidade do positivismo, o realismo jurídico. Consideramos que o realismo jurídico tem suas raízes no pensamento político de Maquiavel e Hobbes. Ambos apresentam teoria do Estado e de direito eliminando fundamentos metafísicos do direito. Além da não adoção da dicotomia ser e dever-ser, o direito e o Estado, para esses autores, sempre são instrumentais. Eles são constituídos para perseguir determinados fins. A funcionalização deles é para obtenção e posterior conservação do poder. 100

Em Maquiavel não é possível vislumbrar a diferença entre o elemento empírico e o metafísico. Toda teoria do direito e do Estado é unicamente experiência, empirismo e realismo. A própria filosofia do direito é realismo jurídico. Na visão do autor, o Estado é instrumento de coerção para assegurar paz e obediência. Para tanto o Estado deve estar assentado às boas leis. Tanto o direito quanto o Estado são manifestações do fático, do empírico, do real. Maquiavel, antes de buscar o direito justo, pretensamente, descreve o quadro político como ele é. A sua obra – O Príncipe – é um ensaio sobre como manter o poder que se tem ou que se acaba de obter. Tanto assim é que a crueldade necessária para assegurar o poder é apresentada como algo bom. 101

Hobbes apresenta o estado natural de guerra de todos contra todos como algo instável e perigoso. Logo, é necessário o contrato social para criação do Estado (Leviatã) a fim de preservar o próprio homem. O ser humano seria suficientemente racional para estabelecer poder central – que, por meio do direito, poria fim à guerra de todos contra todos. Ou seja, em Hobbes direito e Estado seriam os meios adequados e exclusivos para instituir a ordem em face dos indivíduos. Hobbes é pioneiro em sistematizar direito estatal de cariz finalístico, em forma de direito positivo. 102

Ocorre que o realismo, em maior ou menor medida, está embasado no relativismo e na discricionariedade. O realismo jurídico precisa reconhecer o direito e a política como realmente-cientificamente-empiricamente-faticamente são. Todavia, a descrição do jurídico e do político é relativista e discricionária, uma vez que a eleição do que seria o fim do direito não seria mera descrição, mas uma eleição valorativa do teórico realista pautada sobre qual poder ele gostaria de preservar. Assim, o realista introduz elementos não empíricos na sua descrição do direito e do Estado, travestindo-os de elementos empíricos. 103

A apresentação do que seria um bom Príncipe para Maquiavel ou do que seria o estado de natureza para Hobbes são conceituações não empíricas que, tanto Maquiavel quanto Hobbes, apresentam como categorias da realidade e não asserções puramente teóricas e eletivas. Na visão desse realismo primitivo, o direito e o Estado são necessários como resultado de um processo de reconhecimento, como se a sua apresentação, descrição e fins pudessem partir de critérios puramente empíricos e fáticos. Por essa razão, no realismo, a metafísica do direito não se apresenta mais como tema. 104

Dessa forma, definir o fim e as metas do direito e do Estado não é possível por meio de atividade descritiva da realidade. Logo, elas são escolhas discricionárias dos controladores do poder. Por essa razão, Hobbes afirmava que o conteúdo juridicamente obrigatório do direito é algo a ser definido pelo próprio Estado, sendo proibido, por consequência, todo direito de resistência. Não é o conteúdo do justo que definiria o direito, mas sim o poder que cria a lei e assegura sua autoridade. Por meio do direito, a discricionariedade do soberano seria imposta. 105

No realismo, o poder impõe e assegura o direito, porque nesse paradigma inexiste fator de correção do jurídico. A invalidação normativa não se apresenta. O que é o direito e como o direito tem sido aplicado não são categorias institucionais distintas. No realismo, elas seriam efetivamente o mesmo fenômeno.

Em termos contemporâneos, o realismo jurídico é principalmente dividido entre o americano e o escandinavo. 106

Gregory Alexander elabora específico texto para comparar as diferentes correntes do realismo, sua versão americana e sua versão escandinava – diferença por vezes ignorada entre seus teóricos –, o que propõe fazer por meio da comparação de tratamentos dados por cada um ao instituto da propriedade.

Segundo o autor, a diferença básica entre as correntes é que o realismo jurídico escandinavo é uma versão do positivismo que objetiva uma demarcada separação entre lei e política e lei e moral. Por outro lado, o realismo jurídico americano é a extensão do progressivismo político, reconhecendo que a lei está intimamente relacionada com questões de poder. 107

Todavia, se tais características fazem parecer que se tratam de movimentos absolutamente opostos, certo é que, vistos como culturas políticas, ambos foram movimentos críticos que buscavam que seus sistemas legais fossem absolutamente diferentes do que aqueles do passado. O realismo americano buscou reagir contra a “ciência legal” politicamente conservadora de Langdellian, contra a ideia do absoluto liberalismo político (“laissez faire”) e a divisão ontológica entre as esferas pública e privada; o realismo escandinavo reagiu contra uma tradição jurisprudencial que mantinha profundos efeitos antidemocráticos, mas parecia desinteressada na relação entre lei e política, mantendo objetivos mais filosóficos, como expor o caráter metafísico e não conceitualista das fundações epistemológicas dos conceitos legais tradicionais.

Nessa perspectiva, ambas correntes do realismo podem ser vistas como partes de um movimento crítico transatlântico que buscou ampliar a democracia em sociedades que sofreram com a industrialização em larga escala, promovendo sociedades politicamente progressivas em contexto econômico industrial. 108 Porém, segundo o autor, elas tiveram abordagens diferentes em razão da história e da especificidade de cada local em que se desenvolveram – os Estados Unidos e a Escandinávia – assim como dos personagens envolvidos em seus desenvolvimentos.

O realismo sofreu diversas críticas, seja no âmbito teórico, seja no que diz respeito à sua funcionalidade.

Lon Fuller elabora crítica geral do realismo jurídico, principalmente baseado no trabalho de Llewellyn e Underhill Moore, pois ambos possuem um trabalho mais filosófico, que permite analisarmos suas premissas. Realismo jurídico não é uma escola, mas um movimento, em sua visão.

Para Lon Fuller, o realismo termina em uma ambiguidade. Para ele, é claro que o principal alvo do realismo é diminuir ou, se possível, eliminar a discrepância entre a vida real e as normas. Contudo, o que o realismo não define é se devemos: (a) forçar a realidade a se adequar a um conjunto de regras que tenham sido definidas cautelosamente ou, alternativamente; (b) permitir que as normas deem lugar à realidade, reconhecendo sua superioridade. O realismo, segundo o autor, parece não ter definido se é contrário ao conceitualismo, porque ele não consegue atingir definições precisas de seus princípios ou se não deve seguir qualquer princípio. 109

O realismo escandinavo também foi objeto de forte crítica de H. Hart.

O texto de Hart fala sobre a obra de A. Ross, cujo ponto central é que a lei e a crítica da lei devem ser interpretadas em termos de “fatos sociais”, com uso da moderna ciência empírica (mesma lógica das outras ciências), afastando concepções equivocadas usualmente aceitas no vocabulário de direito e moral para substituí-las por concepções racionais-empíricas ou pelo reconhecimento de pontos em que elementos “irracionais” devem entrar no gerenciamento da vida social. 110

Nesse aspecto, para Ross, a norma seria algo que: (a) nos permite entender e interpretar as ações dos agentes como condutas motivadas coerentes; e (b) prever seus comportamentos futuros. Serve, portanto, como esquema de interpretação e base de previsão. E norma válida é aquela que: (1) os tribunais aplicam ou ao menos levam em consideração na tomada de suas decisões; e que (2) o fazem porque possuem uma experiência emocional de estarem ligados por tais normas. 111

Hart, contudo, apesar de elogiar a obra de Ross como um todo, critica a visão do autor (e do realismo escandinavo em sua totalidade) de que tudo aquilo que não poderia ser analisado como uma expressão de fato ou de sentimento seria metafísico, e critica sua concepção de validade da norma, que consiste na hipótese verificável sobre um futuro comportamento judicial e os específicos sentimentos que o motivaram. Para Hart, o erro de Ross está na escolha do critério separador entre os aspectos internos e externos do fenômeno da existência de normas sociais, que não pode ser baseado na dicotomia comportamento físico versus sentimento, mas jaz no efetivo desdobramento que as normas sociais terão no comportamento das pessoas: se externos, as pessoas apenas podem prever as consequências de ações sobre um certo grupo e a eficácia dessas normas; mas, se internos, as pessoas irão basear seu comportamento nelas, buscando sempre conformidade com suas determinações, de forma a manifestar a sua aceitação. 112

Em texto mais recente, Schauer examinou aspectos do realismo jurídico no sentido de compreender e definir seus limites a fim de que permitam que os cidadãos prevejam os resultados de eventuais processos judiciais, explorando a diferença que já existia na doutrina convencional entre easy cases versus hard cases, pois, segundo ele, é nessa diferenciação que reside a marginalização do realismo jurídico. 113

Na análise de Schauer, a versão limitada do realismo sugere que seus preceitos seriam aplicáveis tão somente em casos difíceis, que foram efetivamente levados ao Judiciário e atingiram inclusive os Tribunais. Isso porque essa visão assume que, quando a lei escrita for clara, os juízes a seguirão, de forma que os operadores do direito e os cidadãos poderão orientar suas atitudes conforme ela. O realismo jurídico, portanto, apareceria apenas quando houvesse lacunas na lei. 114

Ocorre que, na visão do autor, o realismo jurídico não pode ser limitado a essas lacunas, pois prever resultados de demandas judiciais não demanda tão somente o conhecimento da lei escrita, mas o reconhecimento de que os juízes, às vezes ou frequentemente, decidem além da lei escrita, mesmo quando suas determinações são claras. Daí porque as previsões judiciais devem ser baseadas em normas reais, as quais deverão nortear o comportamento de juristas e cidadãos, determinando quais casos devem ser levados ao Judiciário e quais não. E essa é, na visão do autor, a visão do realismo jurídico indomado (“untamed”). 115

Destarte, não coadunamos com a visão realista. Além das críticas de Hart, Fuller e Schauer que corroboramos, o realismo jurídico, inclusive o escandinavo, em maior ou menor medida, tem caráter meramente instrumental. Trata-se de mecanismo de conservação do poder. Assim, na visão do realismo, a positividade não pode ser compreendida tal qual contemporaneamente a vemos, enquanto direito fundamental do cidadão à legalidade e à constitucionalidade. No realismo, a positividade não tem normatividade apta a emprestar validade ao direito. O direito é orientado somente por fins. Inexiste dimensão normativa, somente a instrumental. O fator de correção jurídico é praticamente inexistente no realismo, daí ele ser modelo relativista e discricionário. Na democracia constitucional, a positividade é, antes de tudo, garantia do cidadão perante atuação invasiva do Estado e fator de correção e invalidação da produção do jurídico.

1.7. Positivismo contemporâneo: exclusivista e inclusivista

Nos itens anteriores, expusemos as linhas gerais do positivismo legalista e normativista, cuja importância sentimos de maneira mais evidente na teoria e prática brasileira. Reservamos item próprio ao realismo jurídico, que, comparativamente ao exegetismo e ao normativismo, influenciou menos nossa doutrina. Passaremos, agora, à investigação das linhas mais recentes do positivismo, que, a despeito da baixa capilaridade em terrae brasilis, precisam ser enfrentadas por quem deseje defender a necessidade do pós-positivismo.

Segundo Leslie Green, os críticos mais influentes do positivismo asseveram que a doutrina em questão negligencia a importância da moral ao direito. Para o autor, uma teoria que insiste na facticidade do direito contribui pouco para compreendermos que este tem como importante função fazer a vida humana correr bem; que o primado da lei é um ideal valorizado; e que a linguagem e a prática do direito são altamente moralizadas. 116

O traço mais importante do direito seria a sua capacidade de promover o bem à sociedade, não a sua fonte social.

Ronald Dworkin é dos autores que oferece forte crítica ao positivismo por força da posição assumida frente à relação direito/moral. Conforme o resumo de Green, a crítica mais significante ao positivismo rejeita a teoria em todos os níveis concebíveis. Ela rechaça a possibilidade de haver qualquer teoria da existência e conteúdo do direito, de haver teorias acerca de sistemas legais específicos que identifiquem o direito sem recorrer a seus méritos, além de rejeitar o foco institucional no positivismo. 117

Na visão dworkiana, a teoria do direito é apresentada como uma teoria acerca da forma segundo a qual os casos jurídicos devem ser decididos (teoria da decisão). Para Dworkin, a coerção só pode ser utilizada se em conformidade com princípios preestabelecidos. 118

O direito, na visão dworkiana, não pode se assentar num consenso oficial, posto que, na prática, observa-se grande controvérsia sobre como casos devem ser decididos e diversidade sobre quais os elementos relevantes para fazê-lo. 119

É marco importante da dura crítica dworkiana ao positivismo a publicação, pela University of Chicago Law Review, de artigo originalmente intitulado “O modelo de regras”. 120 O objeto do escrito era, especificamente, o juspositivismo normativista de Herbert Hart, considerado por Dworkin a formulação sofisticada da teoria que pretendia examinar.

Ronaldo Porto Macedo Junior 121 sintetiza de forma clara as teses do positivismo que foram alvos da teoria de Dworkin.

A primeira tese referida é a das fontes sociais, segundo a qual o direito é produto de um fato social. Noutras palavras, em última instância, o fundamento de validade do sistema jurídico é uma questão de fato, isto é, a regra de reconhecimento, indicada por Hart, a critério supremo de aferição da validade das normas jurídicas, como um fato social. O direito será composto de todas aquelas normas que atendam aos critérios dispostos na regra de reconhecimento. Para aferir se uma norma pertence a determinado sistema jurídico, basta realizar um “teste de pedigree” para verificar sua procedência e avaliar se, em última instância, atende aos requisitos exigidos pela regra de reconhecimento para que seja incorporada ao ordenamento.

A segunda tese característica do positivismo é a da convencionalidade, segundo a qual a regra de reconhecimento, da qual as demais retiram fundamento de validade, é aceita convencionalmente. O aspecto convencional é extremamente relevante. Streck, com apoio em Bayon, sustenta que o convencionalismo seria uma espécie de código genético que perpassa todas as modalidades de positivismo. 122

De acordo com a terceira tese, cumpre ao positivismo a função de descrever o direito, afastada qualquer consideração valorativa sobre o seu objeto.

Dworkin acresce, ainda, às teses retro, outras duas características da teoria hartiana: a tese da obrigação e a tese da discricionariedade. Pela primeira, compreende-se que das determinações das regras jurídicas surgem obrigações que vinculam os indivíduos. “Em razão disso, juízes têm a obrigação de aplicar uma regra sempre que dela se possa extrair de forma clara uma obrigação”. 123 Pela segunda, entende-se que, em determinados casos (os hard cases), quando não existir regra jurídica regulamentadora, o juiz agirá discricionariamente, na medida em que inexistiria subsunção a ser realizada. Ao fazê-lo, criará nova regra jurídica. Como não existia norma preestabelecida, a decisão do magistrado, sob o ponto de vista jurídico, não se sujeita a uma avaliação crítica.

A consideração das teses acima elencadas conduz à conclusão de que o positivismo considera o direito um sistema de regras, o que proporciona uma visão insuficiente da prática jurídica. No cotidiano, os juízes decidem com escoro em normas intituladas princípios, cujo conteúdo e critério de aplicação é diferente das regras e que não podem ser identificados por meio do teste de pedigree. Os princípios asseguram um critério de correção das decisões judiciais, mesmo ante os hard cases, 124 e demonstram que o direito possui natureza argumentativa e interpretativa, ao tempo que a argumentação jurídica é de natureza moral.

O ataque de Dworkin ao positivismo foi notadamente contundente e ao longo do debate se aperfeiçoou. 125 Após as críticas dworkianas, tornou-se logicamente impossível acolher todas elas e continuar se proclamando positivista. 126 A constatação de que a argumentação jurídica se pauta em princípios, isto é, em standards de forte conteúdo moral, 127 ignorados pela norma de reconhecimento, colocou em cheque tanto a tese da separação radical entre moral e direito quanto a tese das fontes sociais.

Para elaborar respostas às críticas de Dworkin, o positivismo foi forçado a se reinventar. Daí o surgimento das vertentes contemporâneas do positivismo, denominadas positivismo inclusivista/inclusivo (soft positivism) e positivismo exclusivista/exclusivo (hard positivism). Essa bipartição efetivamente se dá em decorrência das críticas lançadas por Dworkin. Daí a importância do estudo desse debate para a compreensão dos dilemas teóricos contemporâneos e eleição consciente do pós-positivismo como referencial teórico: para abonar o positivismo em prol do pós-positivismo, é necessário demonstrar que o positivismo contemporâneo não consegue responder de forma satisfatória todas as críticas opostas à teoria positivista.

Os positivistas inclusivistas, em resposta às críticas de Dworkin, argumentam que considerações de mérito podem integrar o direito se assim determinado pelas “source-based considerations”. 128 Na visão dos inclusivistas, referidas considerações morais são parte do direito porque as fontes fizeram com que elas se tornassem direito. Nesse aspecto, Dworkin estaria correto. Ocorre que a validade da ordem jurídica depende da moral, não pelo argumento dworkiano de que a interpretação deveria convergir para algum ideal de como o governo deve usar sua força, mas porque a moral é a validade legal da própria ordem jurídica. 129 Nessa perspectiva, referências a princípios morais são possíveis no contexto da “judge made law”.

Para Green, não parece plausível que considerações de mérito sejam relevantes apenas quando a regra social assim o diga. Questões morais e políticas sempre estão presentes no momento decisório, independentemente de serem referendadas por regras sociais.

O autor assevera, porém, que a mera referência à “moral language” nas decisões judiciais não significa que esteja presente um teste de moral para o direito, “what sounds like moral reasoning in the courts is sometimes really source-based reasoning”. 130 O direito é, inclusive, dinâmico, e aquilo que outrora era um exemplo de aplicação da moral pode se tornar uma fonte de direito. 131

De toda forma, o Judiciário é frequentemente invocado para decidir questões morais, como o que seria razoável, justo etc. Cuida-se daquilo que Hart denomina casos difíceis, decididos por discricionariedade. 132

Segundo Green, qualquer caso sempre será parcialmente indeterminado pelo direito, ou seja, será decidido, em parte, via discricionariedade. O grau de importância da discricionariedade é que varia. 133

A doutrina enquadra como positivistas exclusivistas aqueles autores que negam a possibilidade de a regra de conhecimento incorporar critérios morais, ou seja, rechaçam a possibilidade de critérios morais constituírem fundamento de validade do direito. 134 Positivistas inclusivistas, por outro lado, admitem que seja possível (mas não necessário ou devido) que a regra de reconhecimento de um ou outro sistema jurídico se valha de critérios morais para identificar as normas que integram o ordenamento. 135

Leslie Green destaca que os positivistas exclusivistas, basicamente, desenvolvem três argumentos em defesa das fontes sociais.

O primeiro e o mais importante é que elas capturam e sistematizam distinções que fazemos regularmente e temos boas razões para continuar a fazer. A atribuição de responsabilidades é diferente quando uma decisão ruim se respalda em fontes e quando é fruto de um julgamento moral ou político por parte do juiz. 136

O segundo argumento favorável às fontes sociais afirma que defendê-las seria comprovadamente compatível com as principais características do papel do direito no raciocínio prático. 137

O terceiro argumento desafia um preceito subentendido do positivismo inclusivo intitulado “Midas Principle”, segundo o qual tudo o que o direito tocar se tornaria também direito. Fica, porém, o questionamento: se a letra da lei se referir a um algarismo numérico, a matemática será considerada direito? A resposta intuitiva é que não. Ao que parece, determinados elementos resistem aos avanços do direito ou de um sistema jurídico. É o caso do direito alienígena. Apesar do direito interno possuir regra que se refira ou mande aplicar lei de outro país, esta não se incorporaria ao sistema interno. 138

Analisando o positivismo exlusivista, Lenio Streck o considera autodestrutível porque “se diante de um juízo discricionário, razões morais podem ser usadas, e estas depois farão parte do sistema jurídico, parece que haveria assim uma incorporação da moral, ainda que excepcional”. 139

Em linhas gerais, essa diferenciação é fundamental para a colocação dos princípios jurídicos em relação ao direito. Para os exclusivistas, é um equívoco de Dworkin considerar os princípios como direito, logo, vinculantes. Por exemplo, para Raz princípios não são standards jurídicos a não ser que dotados de autoridade. Os positivistas inclusivistas, por sua vez, aceitam que os princípios morais podem desempenhar papel importante no raciocínio jurídico, logo, eles também seriam princípios jurídicos e vinculantes para o julgador. 140

Nos itens seguintes, procuraremos trabalhar alguns autores que desenvolveram teses contemporâneas do positivismo. Para fins didáticos, iremos classificá-los em inclusivistas ou exclusivistas. Entretanto, é necessário consignar que a classificação em comento é polêmica, e não é todo autor que aceita nela se enquadrar. Sendo assim, nos preocupamos mais em introduzir os pensamentos dos autores que em relacioná-los a uma classificação ainda polêmica na doutrina.

1.8. Positivistas inclusivistas

1.8.1. Aleksander Peczenik

1.8.1.1. Conceito de positivismo

De forma sintética, para Aleksander Peczenik, positivismo e jusnaturalismo divergem no que se refere às condições de validade do direito. Para o jusnaturalismo, o direito, quando imoral, não será obrigatório (binding) porque a validade das normas deriva ou de um direito natural ou da moralidade. Juspositivistas, por outro lado, não associam legalidade à moralidade: uma norma pode ser imoral e, ainda assim, válida. 141

1.8.1.2. Princípios e regras

Para Peckzenick, regras são aplicadas mediante critério de “tudo ou nada”, no sentido de que, se aplicadas, determinam as consequências jurídicas para o caso sub iudice. Princípios, ao contrário, apenas geram razões que requerem ações, o máximo possível, contributivas para os objetivos almejados. 142 Princípios têm uma dimensão de peso, e as razões que geram devem ser sopesadas com aquelas resultantes de eventuais princípios colidentes.

Princípios são o que o autor intitula “contributing reasons”, opostas às “decisive reasons”. As razões que decidem (decisive reasons) são aquelas que determinam suas conclusões. Se uma razão que decide aponta para a, a conclusão deverá ser a. 143 Razões que contribuem (contributing reasons) não determinam, sozinhas, as consequências. A conclusão é ditada pelo conjunto de todas as “contributing reasons”, sejam contrárias ou favoráveis à conclusão em questão. É necessário, portanto, balancear as razões para decidir se a conclusão avaliada se mantém. O balanço pode ser realizado por meio de um processo racional, mas geralmente não o é. 144 Há aqui uma faceta discricionária da decisão.

Princípios apenas se referem a um aspecto do caso ao qual se aplicam. Outros princípios podem apontar outros aspectos do caso e gerar razões colidentes, que precisam ser sopesadas. 145

Geralmente, é incerto de que modo as razões colidentes devem ser balanceadas. Por outro lado, é também incerto quais razões contribuem para manter ou derrubar a conclusão em determinado caso. 146

Tendo em vista que os princípios geram muitas incertezas e um dos objetivos do direito é trazer segurança, um sistema jurídico deve conter, também, regras. Sendo assim, a função primordial das regras é esclarecer quais fatos de um caso são relevantes para a sua consequência jurídica e qual o peso relativo desses fatores. 147

Regras, quando aplicáveis, excluem a incidência dos princípios. Se os fatos de um caso satisfizerem as hipóteses de uma regra, de forma que esta lhe é aplicável, uma exceção emerge à aplicação de todos os princípios que poderiam identificar fatos do caso como razões. Casos com leis aplicáveis não são, em princípio, julgados por princípios. 148 Noutras palavras, regras geram razões que decidem (decisive reasons). Razões que decidem não precisam ser balanceadas contra quaisquer outras. Se existem duas regras conflitantes, ambas não podem ser aplicadas ao mesmo caso. Esse ponto é crucial para demonstrar a preocupação acerca do uso de princípios para se decidir. Ou seja, havendo regras aptas a solucionarem determinado caso, não se deve lançar mão de princípios como subterfúgio argumentativo para deixar de aplicar as regras.

Uma regra é aplicável a um caso quando suas “conditions” (hipóteses) forem satisfeitas. A observação de que uma regra é aplicável ao caso é uma “contributive reason” para aplicá-la. Pode, porém, existir “contributive reasons” (ex.: a aplicação geraria resultados avessos ao objetivo da própria regra) ou “decisive reasons” para não a aplicar (ex. existência de uma norma colidente aplicável ao mesmo caso). 149

A aplicação da regra é uma “decisive reason” para o resultado pela regra apontado. Quando a hipótese (conditions) de um princípio é satisfeita, surge uma “contributive reason” para a conclusão pelo princípio apontada. A existência de uma regra aplicável é a única exceção à aplicação de um princípio. Entretanto, em circunstâncias excepcionais, a aplicabilidade do princípio pode constituir “contributive reason” para a inaplicabilidade de uma regra. Se a regra é afastada, o princípio incide. 150

Os casos decididos mediante aplicação de regras são denominados “casos fáceis”. Os casos em que são soerguidas exceções à aplicação das regras são intitulados “casos difíceis”. Conforme assevera Pczenik, em casos difíceis, quase todas as provisões legais podem ser derrotadas com base no sopesamento das razões que contribuem (constributive reasons) contra e a favor de sua aplicação. Desse modo, o comportamento lógico das provisões legais assemelha-se mais àquele dos princípios que àquele das regras. 151

É possível que, com o passar do tempo, disposições consideradas regras passem a ser vistas como princípios. Os fatores mudam com o tempo, e casos não previstos pelo legislador acabam surgindo. Por outro lado, a autoridade do legislador não é absoluta. Logo, muito embora tenha considerado determinado caso ao elaborar uma regra, é possível que o advogado o trate como um “hard case”. 152

1.8.1.3. A aplicação do direito

Ao tempo que os juristas pensam que a aplicação do direito deve ser estrita, também lhes parece que, por vezes, deve-se corrigir o direito válido para assegurar a sua adequação à vida. 153 Segundo Peczenik, cuida-se de uma antinomia entre dois princípios (o da estrita interpretação do direito e o da adequação do direito à vida), que pode ser resolvida por meio de uma solução de compromisso. 154

O princípio da correção do direito, de modo vago, dá azo às regras menos abstratas, muitas das quais não podem ser formuladas claramente. A mais importante e uma das mais claras é o princípio da justiça. 155 Entende-se que uma lei injusta confronta as exigências da vida (requirements of life). Assim, esse simples princípio parece ser a mais ampla generalização do conceito atual de justiça: objetos similares devem ser tratados de forma similar. 156

1.8.1.4. Critérios de validade

Conforme a leitura de Peczenik acerca da teoria pura do direito, a validade de uma norma se verifica quando sua criação for adequada ao quanto prescrito pelas normas de hierarquia superior, exceção feita à norma maior (highest norm), cuja validade deriva da eficácia do sistema normativo como um todo. 157 Cuida-se de uma visão holística acerca da validade jurídica.

Avaliar a validade de uma norma exigiria, portanto, pensar a eficácia da ordem legal como um todo. Muito embora os juristas reconheçam cotidianamente a validade de normas legais, não é verdade que considerem, também rotineiramente, a eficácia do sistema. Por essa razão, Peczenik sugere a rejeição da visão holística da validade jurídica em prol de um critério de validade mais prático que, aplicável às normas individuais, dispense a verificação da eficácia da ordem legal. 158

Além da razão prática, Peczenik aponta outros dois critérios para rejeitar o conceito de validade constante da Teoria Pura: (i) nos termos dessa teoria, qualquer sistema eficaz e hierarquicamente organizado seria jurídico se a norma superior determinasse o modo de criação das inferiores. Entretanto, algumas organizações privadas possuem sistemas normativos com essas características e não são jurídicos; (ii) a teoria ignora o conteúdo das normas realmente formuladas e aplicadas, é puramente formal e, desse modo, relativamente restrita. 159

Para o autor, as normas válidas e legais são aquelas às quais o método jurídico é continuamente aplicado. Se no método jurídico existe um compromisso entre o princípio da interpretação estrita e o da justiça, é verdadeiro afirmar que são válidas e legais as normas que são “continuamente elaboradas de acordo com o princípio da estrita interpretação e, simultaneamente, de acordo com o princípio da justiça”. 160

A partir dessa premissa geral, Peczenik extrai algumas conclusões: 1) uma norma N é primariamente válida e legal quando muitos textos, sem colidir com a linguagem jurídica ordinária, puderem ser descritos da seguinte maneira: são textos que dizem o significado de tal norma e, para estabelecer esse significado, fazem referência a normas interpretativas que expressam o compromisso entre o princípio da estrita interpretação e o princípio da justiça; 2) todo texto desse tipo constitui a relação básica entre a norma N e os princípios referidos; 3) a norma N será secundariamente válida se tiver sido criada conforme as instruções das normas primariamente válidas. Ao mesmo tempo, não pode ser repelida por uma norma de hierarquia superior. A hierarquia deve ser estabelecida unanimemente por várias normas primárias válidas e legais; 4) o direito é um fenômeno complexo, composto de três espécies: normas válidas e legais, comportamento relevante para o direito e consciência jurídica; 5) consciência jurídica é construída pelos atos de compreensão das normas legais e válidas e pelos sentimentos causados por tais atos; 6) são primariamente relevantes ao direito atos de formulação dos textos em que a relação básica entre os princípios supra ocorre; 7) são secundariamente relevantes ao direito os atos de criação, de observância e de violação das normas válidas e legais.

1.8.2. David Lyons

Conforme David Lyons, os positivistas afirmam que o direito é distinguível de outros padrões sociais, incluindo a etiqueta e a moral convencional. As leis e os costumes de uma comunidade se sobrepõem e se influenciam, mas não são a mesma coisa. O próprio fato de eles se influenciarem reciprocamente evidencia que não são o mesmo. Os positivistas também aceitam a verdade de que a lei pode ser boa ou ruim, sábia ou tola, justa ou injusta. Não é necessário, em particular, que qualquer condição moral seja satisfeita para que algo a qualifique como lei válida. 161

Para Lyons, o critério de validade de um sistema jurídico pode incorporar um teste moral. A moralidade aqui envolvida não é positiva ou convencional, mas crítica, isto é, julgamentos morais que são vinculantes em virtude de serem supostamente corretos. 162

O autor nega a possibilidade aventada por Dworkin de que princípios eliminam a indeterminabilidade do direito e, por consequência, a discricionariedade. Para fazê-lo, os princípios deveriam prever ou se aplicar a todos os casos existentes e ainda por existir; seu peso deveria ser determinável; e o processo de balanceamento jamais deveria resultar numa distribuição igualitária de peso. 163

Por outro lado, Lyons afirma que, ao contrário do quanto assentado por Dworkin, o positivismo não necessariamente exclui princípios. 164 Conforme Lyons, a crítica de Dworkin se depara com um obstáculo mais sério: ela se volta contra uma concepção errônea fundamental do positivismo legal, qual seja, que o uso positivista do “pedigree” como um teste para os padrões legais exclui o teste de “conteúdo”. Tal concepção emerge na discussão de Dworkin acerca de Hart. 165

O autor acredita que Dworkin se equivocou ao interpretar a teoria hartiana e supor que a regra de reconhecimento não poderia incorporar critérios morais. Essa suposição se confirma apenas em alguns autores positivistas, mas não no movimento como um todo. 166

1.8.3. Jeremy Waldron

Jeremy Waldron 167 se propõe a analisar a relação entre direito e justiça a partir da exploração da tese de Philip Selznick, segundo a qual o direito promete justiça, a despeito de não ser necessariamente justo.

Conforme Waldron, conhecer a função de algo contribui para entendê-lo. Como exemplo, afirma que ninguém compreende o termo “hospital” salvo entenda para que servem os hospitais. Descrever um estabelecimento como tal é recorrer à promessa de cura e cuidado – embora possa parecer que os procedimentos utilizados em certa instituição com essa mesma promessa sejam, de fato, prejudiciais ou dolorosos para os pacientes. 168

A assertiva do autor não o torna um jusnaturalista. Muito pelo contrário. Waldron concorda que um sistema legal não necessariamente é justo. Entretanto, o direito promete interesse ou preocupação com a justiça. 169

A funcionalidade do direito tem um mote limitado: (1) eleger determinado conjunto de características que um sistema de governança pode ter (por exemplo, tomada de decisões de acordo com leis gerais públicas e relativamente estáveis); (2) ser responsável por sua importância (por exemplo, em termos de conexão entre publicidade, previsibilidade e autonomia); e (3) associá-los, entendidos nesta luz, com a caracterização do sistema de governança em questão como um sistema de direito. 170

O fato de o direito supostamente prometer justiça possui implicações práticas. Waldron cita Thompson, segundo o qual o direito não pode aspirar à justiça sem defender sua própria lógica e seus próprios critérios de equidade; ou seja, sem de fato ser justo. 171

Contraposta à teoria de Selznick é a tese de que o direito prometeria justiça no sentido formal, coincidente com a ideia aristotélica de justiça legal. 172

Segundo Waldron o direito se compromete com justiça substantiva, e essa promessa incorpora simbologia e procedimentos em que assegura justiça formal. O direito faz sua promessa em virtude de sua forma – as formas individualizadas de decisão e as formas de razão individualizadas –, doação, relevância e arbitrariedade associadas à elaboração de regras. É possível que o direito como tal possa ir além disso e fazer uma promessa em relação à justiça substancial de seus resultados? Waldron continua inclinado a responder não para esse questionamento. Obviamente que seus argumentos contrários à judicial review diminuíram, contudo, continua cético em relação a um julgar bem/correto pelos juízos. 173

Waldron explica que geralmente os sistemas jurídicos existem nas comunidades nas quais alguns membros anseiam por justiça. Entretanto, é possível que surja conflito com relação ao que se baseia a justiça e como seria melhor promovida. O dissenso, porém, não significa que o direito não esteja comprometido de alguma forma com a justiça; significa, porém, que a promessa de justiça é algo complicado.

A plausibilidade de tal promessa teria que depender de alguma característica dos procedimentos pelos quais as leis são feitas: aproximadamente, a reivindicação se refere aos procedimentos que provavelmente gerariam um número maior de resultados justos do que injustos (ajustando-se para a seriedade das questões em jogo) ou provavelmente gerará uma maior preponderância de resultados justos do que qualquer outro procedimento que se possa usar para decidir quais os regramentos a serem cumpridos. As reivindicações desse tipo às vezes são feitas para instituições democráticas. Mas elas raramente são feitas para o direito como tal, porque envolvem um investimento no processo de formação do direito que a doutrina geralmente designa, pejorativamente, como “político”. Deixamos-nos, então, com o ponto de que o direito, em virtude do tipo de instituição que é (e da forma que possui), tem um interesse na justiça, uma preocupação com a justiça – mesmo que não possa fazer nenhuma promessa quanto ao modo como essa preocupação irá impactar nas circunstâncias políticas particulares de uma determinada sociedade (justiça substancial). Importante não perdermos de vista que, para Waldron, a promessa do direito relativa à justiça substantiva é transmitida no compromisso do direito mediante suas instituições e procedimentos concernentes ao que ele compreende por justiça formal. 174

Para Waldron, se o direito promete qualquer coisa em relação à justiça, porque ele efetivamente promete, ainda que o modelo positivista não seja o idealmente mais justo, é a legalidade que assegurará a coordenação exigida por qualquer ação de justiça. O fracasso do direito em cumprir esta última promessa equivaleria a uma falha como direito. 175

Waldron conclui destacando que, tendo em vista que muitos de nós desejamos justiça, mas temos dissenso sobre ela, a promessa do direito não deveria ser pela justiça em si, mas pela coordenação/procedimentalização necessária. Em qualquer contexto em que a busca da justiça seja realizada de acordo com os pontos de vista de cada pessoa, surge o risco de o sistema se tornar casual e autodestrutivo. Sendo assim, Philip Selznick tem razão ao vislumbrar que a promessa do direito em relação à justiça substantiva tem algo a ver com suas propriedades formais: consistência, congruência e estado de direito. E ele também tem razão em ver que estes têm um significado moral que vai além de qualquer preocupação técnica com a lógica e os procedimentos de legalidade. 176

Na visão de Waldron, o direito é sistema estruturado para agir tendo em vista o passado (cadeias decisórias). O direito não deve ser instrumento de construção do futuro. Essa função é mais afeta à política. Do mesmo modo, o direito não deveria fazer promessa de justiça substancial, porque esse ponto dependeria da visão de cada indivíduo, o que seria pernicioso ao sistema. Por conseguinte, o direito, não obstante ser um ramo da moral, cumpriria sua funcionalidade assegurando ao cidadão procedimentos de legalidade juntamente com as propriedades formais do Estado de direito.

1.8.4. Waluchow

Wilfrid Waluchow propôs abertamente uma defesa do positivismo inclusivo em obra intitulada Positivismo Jurídico Inclusivo. 177

Conforme o autor, o positivismo inclusivo é uma linha positivista que sustenta a possibilidade de uma conexão particular entre o direito e a moral, segundo a qual seria possível determinar a validade das regras num determinado sistema e discernir seu conteúdo ou seu modo de aplicação ao caso a partir de critérios morais. 178 Nessa concepção, que denominamos positivismo jurídico inclusivista, os valores e princípios morais estão entre os possíveis fundamentos de um sistema jurídico para determinar a existência e o conteúdo das leis válidas. 179

Waluchow desenvolve seu argumento a partir da análise de diversos posicionamentos jusfilosóficos, a exemplo de Hart e Raz, que exploraremos nos itens seguintes.

Conforme relata Waluchow, Hart preconizava a existência de uma área de intersecção ou sobreposição entre direito e moral, mas se opunha a qualquer teoria jusnaturalista, inclusive as que surgiram após a Segunda Guerra Mundial.

Hart e Bentham compartilhavam uma preocupação comum face ao jusnaturalismo: a de que a proposição de Agustín, segundo a qual o direito injusto não é direito absoluto, provavelmente não resultaria num “equilíbrio saudável entre o respeito pelo direito e uma atitude moralmente crítica com relação à sua grande quantidade de demandas”. 180

Bentham considerava que a confusão entre moral e direito poderia conduzir a dois tipos de pensamento que se encontram em extremos opostos, ambos perigosos: o anarquista e o conservador. Pelo primeiro, o sujeito se considera em posição de agir ao arrepio do direito se o considerar injusto; pelo segundo, o indivíduo entende que o direito é exatamente o que deveria ser e sufoca qualquer crítica que lhe seja oponível. Bentham, então, estabeleceu um argumento moral em favor do positivismo, doutrina que, ao estabelecer limites bem definidos entre direito e moral, evita os extremos que foram apresentados. 181

Waluchow anteviu que o argumento moral de Bentham favorável ao positivismo poderia facilmente se tornar um argumento moral em favor do positivismo exclusivo. Por essa razão, Waluchow se preocupa em desconstruí-lo.

O argumento moral retro exposto é um argumento causal, que não assegura uma relação racional ou teórica entre o jusnaturalismo (e o positivismo inclusivo) e a doutrina anarquista ou reacionária, mas que pressupõe que aceitar as primeiras conduz, causalmente, à aceitação das segundas. Existiria, ao menos, uma tendência a uma postura anárquica ou reacionária como consequência da adoção da linha jusnaturalista ou positivista inclusiva. 182

Para Waluchow, parece inadequado criticar teorias descritivas do direito por meio de argumentos consequencialistas. Segundo o autor, é desnecessário considerar, caso o objetivo seja a compreensão filosófica, se a adoção de uma teoria do direito confundirá as pessoas moralmente. Se uma teoria descritivo-explicativa do direito, ou de qualquer outro fenômeno, é verdadeira ou filosoficamente iluminadora parece independente das consequências práticas morais de sua adoção e possível aplicação equivocada por parte das pessoas. 183

O positivismo inclusivo pretende descrever o que o direito é. Se aquilo que o direito é gera consequências morais indesejadas, é outra questão. Não nos cabe distorcer a natureza do direito, mas nos adaptarmos para melhor conviver com as suas consequências. 184

Waluchow aponta como possível adaptação a insistência de que as fontes não morais de validade jurídica sempre se empreguem nos sistemas jurídicos, ainda que não sejam indispensáveis ao conceito de direito. Em outras palavras, poderíamos insistir que a possibilidade contemplada pelo positivismo inclusivista, mas descartada pelo exclusivista por sua inconsistência com a própria natureza do direito, seja deixada de lado na prática. Seria possível aceitar que a validade moral pode condicionar a validade jurídica, mas com a insistência de que isso não deveria ser permitido. 185

Os argumentos morais-causais agem no plano conceitual, ou seja, pretendem excluir a possibilidade da intersecção entre direito e moral como opção viável ao direito. O argumento de adaptação não exclui a possibilidade, mas recomenda que ela não seja adotada.

O positivismo inclusivo é de natureza descritiva-explicativa. Waluchow pretende enfrentar também a força da argumentação moral quando dirigida a teorias de natureza normativa, a exemplo da concepção interpretativa do direito dworkiana. As consequências morais negativas de uma teoria normativa do direito, segundo Waluchow, não fragilizam teorias normativas, exceto se estivermos diante de uma teoria normativa especial, que se singulariza por pretender guiar as atitudes e decisões dos indivíduos para aquilo que considera ser o mais correto. Neste caso, consequências morais negativas constituirão motivos de crítica. Por outro lado, uma teoria normativa da ética desenhada como uma explicação filosófica, em detrimento de como um conjunto de guias de ações, é inatacável mediante objeções que apontem aos resultados moralmente indesejados da adoção da teoria ou de sua aplicação (aplicação equivocada) em contextos práticos. 186

A conclusão de Waluchow é a seguinte: argumentos morais como os apresentados por Bentham, Hart e MarCormick, salvo destinados a questionar uma teoria cujo objetivo seja a aplicação prática na vida cotidiana, são inválidos. Apelam a considerações incapazes de abordar os temas relevantes de adequação filosófica ou, em se tratando de concepções dworkianas, a real justificação moral da coerção estatal e o tema relacionado de como dar força aos direitos morais. Os argumentos causais/morais de Betham, Hart e MacCormick não oferecem razões, portanto, para preferir o positivismo exclusivista em detrimento do inclusivista. Mostra-se conveniente, então, recorrer à nota preventiva de Hume: “não é verdade que uma opinião seja falsa em virtude de suas consequências perigosas”. 187

Ainda que superássemos a objeção inicial, uma outra crítica se coloca ao argumento causal de Bentham e Hart: não é verdade que tornar a moral critério de validade do direito conduza aos extremos anárquico e reacionário de que se falou. Não faltam teóricos que acusam o positivismo de conduzir à postura reacionária que Bentham atribui como consequência negativa ao jusnaturalismo.

Waluchow não vê motivo para considerar corretas as relações apresentadas entre positivismo inclusivo e anarquia/reacionarismo, muito pelo contrário: ao ser moralmente escorado, tem mais chances de ser respeitado, ao tempo que o positivismo exclusivo é que provavelmente conduziria a uma postura reacionária. 188

Vale dizer, na visão de Waluchow, a radical separação entre direito e moral do positivismo exclusivista possibilita a degeneração do sistema para visões mais reacionárias e autoritárias.

O primeiro argumento hartiniano (compartilhado por Bentham) combatido por Waluchow foi o argumento causal. A segunda ordem argumentativa de Hart explorada por Waluchow é o argumento da claridade intelectual, também pensado por aquele para rebater as teorias jusnaturalistas.

Supostamente, o jusnaturalismo, na visão de Hart, pecaria pelo obscurecimento e pela supersimplificação de questões práticas complexas, as quais o positivismo conseguiria melhor responder.

Outrossim, o positivismo, teoricamente, proporcionaria maior clareza no estudo teórico do direito. O jusnaturalismo, ao pretender a exclusão das leis “perversas” – que, nada obstante seu conteúdo moral, apresentam todas as características de uma lei comum –, apenas causaria confusão.

1.8.4.1. Crítica aos argumentos de Hart

Waluchow considera que Hart não apresentou razões plausíveis para preferir o positivismo ao jusnaturalismo e que seus argumentos não podem ser utilizados para sobrepor o positivismo exclusivo ao inclusivo. 189

O positivismo é que causa confusão diante dos dilemas nascidos no pós-guerra. É o positivismo (exclusivista) que empresta autoridade injustificada às leis perversas e afasta os sujeitos de uma reflexão moral sobre seu dever de obedecê-las. 190

Poderia afirmar-se que, a partir do direito natural, se causaria insegurança jurídica e confusão ao pretender, por exemplo, punir retroativamente condutas que não eram, à época em que praticadas, consideradas ilícitas. Entretanto, a validade da crítica depende de aceitarmos que o direito natural realmente exigiria a punição nos termos expostos, à ignorância de um princípio jusnaturalista segundo o qual as autoridades jurídicas seculares devem punir apenas quem, ao praticar o mal, cometeu aquilo que o Estado naquele momento proibia expressamente.

Hart considerava o jusnaturalismo uma teoria que prejudicava a clareza das investigações teóricas sobre o direito, pois excluía, equivocadamente, certas regras, que, a despeito de possuírem complexas características do direito, ostentam conteúdo imoral. Waluchow revida a acusação hartiana por meio da afirmativa de que a teoria do direito natural não obriga que sejam excluídas do estudo do direito as regras imorais: poderão sempre ser estudadas como elementos patológicos do direito. Em suas exatas palavras, “no hay razón, entonces, para pensar que un defensor de la teoría del derecho natural deba negar que el estudio del uso del derecho debe incluir el estudio de su abuso”. 191

Os argumentos em favor da claridade moral e teórica do positivismo são frágeis. Outrossim, não poderiam ser reaproveitados em defesa do positivismo exclusivo. Mesmo porque o positivismo inclusivo reconhece a possibilidade conceitual de existirem regras criticáveis do ponto de vista moral, mas válidas. Mais que isso: admite a possibilidade de um sistema jurídico em que a moral não constitua critério de validade algum. Dizer que a validade moral e a jurídica podem estar relacionadas entre si não significa que estão ou devam estar. 192

O positivismo inclusivo, por outro lado, ao contrário da linha exclusivista, é capaz de explicar sistemas jurídicos (por exemplo, sistemas constitucionais) em que os testes de validade jurídica, aparentemente, incluem critérios morais.

Do ponto de vista da clareza teórica, poder-se-ia asseverar que o positivismo exclusivo leva vantagem no que concerne à separação entre a descrição do direito e sua valoração. Trocando em miúdos, a linha exclusivista evitaria a confusão entre o que é e o que deve ser o direito.

O argumento apenas se sustenta se concluirmos que o direito verdadeiramente apenas se identifica por meio de fontes sociais. Se, porém, a detecção das regras de um sistema às vezes implica em avaliações morais, a tese defendida por Hart falhará. 193

1.8.4.2. Positivismo inclusivo vs. exclusivo: a análise crítica de Waluchow acerca dos argumentos de Raz

O primeiro argumento examinado por Waluchow é o intitulado argumento linguístico, nos termos do qual o positivismo supostamente reflete de maneira correta o significado do direito e de termos análogos da linguagem ordinária. 194

Como parte da compreensão dos termos referidos, é preciso entender que algumas leis são moralmente inaceitáveis, mas juridicamente válidas. Ordinariamente, ao dizer que um direito injusto não é direito absoluto, intuímos, desde logo, que, na sua essência, o conceito de direito não depende de valores morais (é direito injusto, mas continua sendo direito). A linguagem ordinária, portanto, suportaria o positivismo exclusivo. 195

O apelo linguístico, para Raz, possui alguma força, mas não é suficiente porque é insuficiente à resolução de questões substantivas. A vinculação às palavras não pode se sobrepor ao objetivo de estudar a sociedade e suas instituições. Se o uso ordinário da palavra “direito” não contribui para a investigação da sociedade, então não podemos colocar o argumento linguístico em benefício do positivismo exclusivo.

O segundo argumento analisado por Waluchow é o argumento da parcialidade, segundo o qual o positivismo (exclusivo), como guia filosófico, poderia eliminar a parcialidade do investigador no estudo de seu objeto, posto que dissociaria a existência e conteúdo das leis de qualquer argumento moral (dependem apenas de fatos sociais). Ao descrever o direito, o investigador estaria menos suscetível a sucumbir às tendências morais se aderisse à linha de positivismo que aparta o objeto de estudo de qualquer valor moral.

O problema do argumento em questão é que pressupõe o que deseja demonstrar. Ou seja, pressupõe que o direito está dissociado da moral para demonstrar que o está. Se dado sistema implica critérios morais para a descoberta do direito, o argumento da parcialidade estará completamente comprometido, e a teoria “pura” será completamente enganosa. Segundo Waluchow, os comentaristas deveriam se esforçar para obter imparcialidade e objetividade. No entanto, se a própria existência do que investigam depende, de modo crucial, da satisfação de condições morais, a completa imparcialidade moral não pode ser possível. 196

Que vantagem o positivismo exclusivo poderia fornecer ao propiciar uma descrição pura quando o objeto descrito é, em si, impuro? Com acerto, Waluchow enxerga valoração intrínseca em toda atividade supostamente e meramente descritiva.

O terceiro argumento sob exame é o da conexão institucional. John Austin asseverava que o direito não é uma construção ideal, mas social: é o que é e não o que deveria ser. O direito é descoberto nas atividades de uma complexa instituição social, não na moral, na natureza ou na religião. Raz compartilha da ideia austiniana ao insistir que o direito possui fontes e limites sociais. É uma instituição social, com limites institucionais próprios. O conteúdo do direito é definido pelo direito. Os limites do direito são postos pelo próprio direito, que se cria por meio das autoridades (Judiciário ou Legislativo). O direito é uma instituição social dotada de limites institucionais: a limitação é ideia associada ao caráter institucional do direito, e os limites são estabelecidos pela instituição dotada de autoridade para tanto.

Decerto, ao analisar as teorias de direito natural e o juspositivismos, concluímos que os últimos se compatibilizam, me melhor forma, ao caráter institucional do direito que as primeiras.

Nada obstante o argumento da conexão institucional parecer eficaz contra o jusnaturalismo, Waluchow opina que não pode ser utilizado para que se defenda a preferência do positivismo exclusivo em face do inclusivo. Tudo porque o positivismo inclusivo considera que os critérios morais serão relevantes à identificação da existência e conteúdo do direito apenas quando o sistema jurídico lhes atribuir tal função. 197 Não existe, portanto, incompatibilidade entre o positivismo inclusivo e a natureza institucional do direito. A moral, para o positivismo inclusivo, apenas importa na medida em que reconhecida institucionalmente.

O quarto argumento examinado é o do poder explicativo. Segundo Raz, o positivismo exclusivo é recomendável porque explica de melhor maneira o direito. Sob a perspectiva raziana, a linha exclusivista aborda, de forma mais adequada, as diferenças entre as avaliações jurídicas e morais dos juízes, bem como de suas decisões, entre o direito certo e o indeterminado, entre aplicação e a criação, entre a modificação e a revelação do direito. O positivismo exclusivo, teoricamente, reflete o modo como as diferenças retro são geralmente aplicadas e, por isso, possui o intitulado poder explicativo. Existe certeza no direito quando a solução para um caso for provida por fontes juridicamente vinculantes; nas situações em que o direito é certo, é hábito se dizer que o juiz realiza atividade de aplicação (e não de criação); ao juiz cabe apenas racionar a partir das fontes que existem para solucionar a controvérsia, dispensados juízos morais. Por outro lado, inexistente regra identificada por uma fonte social, considera-se que o direito é incerto; caberá ao juiz, neste caso, criar direito novo, acudindo a considerações extrajurídicas. 198

O raciocínio de Raz depende de considerarmos que, de fato, as diferenças retro listadas devem ser explicadas por toda teoria do direito. Entretanto, é possível argumentar que os traços que se exige que uma teoria adequada sistematize e explique não são outra coisa senão consequências do positivismo exclusivo, com as quais outras vertentes teóricas não têm obrigação. Por outro lado, ainda que consideremos os traços como elemento pré-teóricos aos quais, de fato, a teoria precisa explicar, não existe razão para supor que o positivismo inclusivo seja incapaz de fazê-lo.

O quinto argumento que é objeto de exame é o argumento da função, segundo o qual o positivismo exclusivo teoricamente captaria a concepção fundamental da função do …

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19 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/1-pos-positivismo-e-teoria-da-decisao-processo-constitucional-brasileiro/1353724528