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Direito Constitucional Brasileiro: Constituições Econômica e Social

Direito Constitucional Brasileiro: Constituições Econômica e Social

14. Seguridade social: um bem jurídico (ainda) em construção

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14 Seguridade social: um bem jurídico (ainda) em construção

José Antonio Savaris

Carlos Luiz Strapazzon

Sumário: 1. Introdução – 2. Por que direitos constitucionais de seguridade social? – 3. O modelo constitucional de seguridade social – 4. Reformas e choque de propósitos – 5. Choque de propósitos – 6. Criticas e novos rumos – 7. Direitos humanos de seguridade social: 7.1 A Convenção 102 da OIT – 8. O pacto internacional de direitos econômicos, sociais e culturais (PIDESC) e suas observações gerais – 9. Direitos humanos na carta de 1988 – 10. Espécies de direitos fundamentais de seguridade social – 11. Direitos fundamentais previdenciários e de assistência social – 12. Jurisdição constitucional em matéria previdenciária e assistencial – 13. Direitos fundamentais à saúde – 14. Considerações finais – 15. Referências bibliográficas.

1.INTRODUÇÃO

A Seguridade Social, no Brasil, deve ser compreendida em três fases. Duas delas já realizadas. Uma ainda em construção. A primeira fase é a que antecede a Carta de 1988. A segunda, a que se estabelece como consenso da Assembleia Nacional Constituinte. A terceira, a que vem sendo construída a partir da releitura e revisão do status normativo dos tratados de direitos humanos no ordenamento jurídico brasileiro. A primeira fase é marcada pela exclusão e indiferença. Era um modelo de seguro, na previdência; de interesse particular, na saúde; de omissão em relação aos excluídos. Os poucos beneficiados com o que havia eram os residentes urbanos e os trabalhadores formais. Não era um sistema de seguridade e de coesão social. Com a Assembleia Nacional constituinte esse quadro normativo mudou. A organização das instituições e a gestão das políticas públicas também. O objetivo prioritário passou a ser a proteção universal. Sem discriminações por causa da origem (urbana ou rural), ou por causa do status de contribuinte. O Estado deveria proteger cidadãos. A igualdade democrática, tão desejada no contexto da Assembleia Nacional Constituinte, repercutiu no desenho do novo sistema, agora de Seguridade Social. Saúde e Assistência Social foram os segmentos que melhor incorporaram esse ideário. A previdência, apesar do avanço em relação à igualdade entre urbanos e rurais, permaneceu atrelada à concepção econômica de segurados contribuintes. Manteve um viés normativo conservador de seguro, mas avançou no ideal de proteção social. Depois da aprovação da Emenda Constitucional 45/2004 e, especialmente, depois de 2008, quando foi decidido o caso do depositário infiel pelo STF ( HC 87.855 ; RE 466.343 ), mudou a natureza jurídica dos direitos legais e constitucionais protegidos por tratados de direitos humanos. Tornaram‑se mais importantes. E é esse, precisamente, o caso dos direitos de seguridade social. O desafio desta terceira fase é de releitura. Compreender, respeitar e promover os direitos constitucionais de seguridade social como direitos humanos e fundamentais.

Formalmente estabelecidos na ordem jurídica de praticamente todas as nações democráticas, os direitos de seguridade social já podem ser apresentados como um dos mais significativos resultados de um novo entendimento, avançado, típico do pensamento do século XX e XXI, sobre dignidade pessoal, cidadania e solidariedade. Muitas democracias já reconhecem até a natureza fundamental dos direitos de seguridade social. São as mesmas que, em regra, também aceitam a fundamentalidade dos direitos humanos 1 da igual liberdade de todos e do dever coletivo de proteger e promover a igual consideração dos interesses de todos. 2 Mais do que simples catalogação de direitos sociais “de papel”, muitas democracias consolidadas que hoje reconhecem, respeitam e promovem direitos de seguridade social o fazem porque decidiram formalizar seu comprometimento com um novo ideário sobre o que deve ser uma boa sociedade, a civilidade e a justiça.

Sempre em estreita conexão com os direitos fundamentais à proteção e promoção da dignidade de todos, à proteção e promoção dos interesses econômicos e da saúde física, emocional e psicológica dos trabalhadores, os direitos de seguridade social simbolizam uma nova, e relativamente recente, geração de direitos: os necessários para proteger (i) o bem‑estar individual, em face de riscos pessoais causados pela falta, perda ou redução (da capacidade ou oportunidade) de trabalho e de geração de renda; (ii) os necessários para proteger a própria ordem econômica, em face de impactos negativos de crises que afetam a cadeia produtiva, a renda salarial e o consumo; (iii) e para proteger a legitimidade dos governos democráticos, em face da omissão, ou proteção deficiente, tanto da ordem econômica quanto do bem‑estar individual.

Direitos de seguridade social são, portanto, direitos de defesa e também direitos a prestações positivas de importância individual, econômica e política. São direitos indispensáveis para regimes democráticos, porque reduzem desigualdades de renda, ajudam no desenvolvimento de habilidades e competências individuais e estimulam a coesão social; 3 são também indispensáveis para economias de mercado, pois dinamizam o mercado de consumo. Na zona do Euro, por exemplo, em 2002, as despesas com saúde e proteção social correspondiam a 25,2% do PIB (Produto Interno Bruto); em 2011, último ano em que há dados disponíveis, o patamar subiu para 27,6% do PIB da região. 4 No Brasil, se considerarmos o ano de 1988, quando entra em vigor a nova Constituição, teremos que o orçamento da seguridade social representava 4,4% do PIB. 5 Atualmente estima‑se que representa algo em torno de 16% do PIB. 6 Mas é evidente que é a dimensão positiva e prestacional desses direitos, isto é, a que impõe dever de ação ao Estado – e que transfere riqueza de um grupo social para outro – a que tem recebido mais atenção da sociedade civil organizada, da imprensa e da literatura especializada. E não é à toa. A faceta positiva desses direitos é a que mais reclama justificativas morais e também a que impõe os maiores desafios de planejamento e de gestão. Mas é por isso, também, que se pode dizer que os direitos de seguridade social vêm promovendo um refinamento conceitual e uma visão aprimorada das clássicas concepções sobre o balanceamento 7 que se deve fazer entre bens jurídicos fundamentais, sejam direitos individuais, sejam interesses coletivos.

2. POR QUE DIREITOS CONSITUCIONAIS DE SEGURIDADE SOCIAL?

Se ao longo de sua breve história, os direitos fundamentais têm sido formulados, preferencialmente, como direitos negativos necessários para defender liberdades, hoje se sabe, graças aos estudos sobre direitos sociais, que todos os direitos fundamentais têm uma dimensão negativa e outra positiva. Isto é, se todos os direitos fundamentais são, em alguma medida, proibitivos, também o são, em certo grau, impositivos de atuação. 8 Ou ainda mais simplesmente: o grau de eficácia das liberdades sempre depende do grau de atuação das variadas formas de segurança.

Graças ao aprofundamento das pesquisas teóricas e empíricas sobre direitos sociais, pode‑se dizer que até mesmo a clássica concepção da segurança jurídica foi modificada. Se antes era um conceito que vinha sendo explicado majoritariamente em termos de proteção de direitos já adquiridos, ou de atos jurídicos já realizados, em face de novas ameaças fáticas ou normativas, atualmente compreende também o mínimo de segurança necessária para proteger expectativas legítimas e razoáveis de não retrocesso nos cuidados essenciais com a saúde, renda básica e serviços especiais.

Os direitos de seguridade social são, hoje, direitos com status constitucional em muitas democracias maduras. São assim reconhecidos por Constituições de Estados com culturas e histórias tão diferentes quanto as do Brasil (1988, art. 194), do Chile (art. 18), da Alemanha (1947, art. 20, 1; art. 74, 12; art. 87, 2; art. 120), da França (1958, art. 34), da Grécia (1975, art. 22, item 5), da África do Sul (1996, ss 27), da Índia (1949, art. 246, Schedule VII, List III, item 23) e do Japão (1946. art. 25). Formam o núcleo básico dos direitos constitucionais de seguridade social dessas democracias: (i) os direitos a renda auxiliar (como são, tipicamente, os direitos de natureza previdenciária), (ii) os direitos a cuidados de saúde e (iii) direitos a serviços especiais de assistência familiar, em especial a crianças e outros dependentes.

Em paralelo a esse importante, e variado, número de nações comprometidas com o respeito, proteção constitucional e promoção dos direitos de seguridade social, também as Nações Unidas têm consensos formalmente estabelecidos em Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Pactos Internacionais, como o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 9 além de vários instrumentos normativos editados em forma de Observações Gerais de Comitês Especializados na observação da eficácia dos compromissos internacionais dos Estados‑membros da ONU para com os Tratados de Direitos Humanos. E todo esse esforço não é sem razão. Tem um só, e mesmo, fim: formalizar a natureza fundamental desses direitos para aprimorar a proteção da dignidade das pessoas humanas. Muito embora os esforços internacionais não sejam nada desprezíveis, estima‑se que 75% da população global ainda vive em estado de insegurança social. Logo se vê que, também na arena internacional, está em construção a afirmação dos direitos de seguridade social como direitos humanos fundamentais. Não é obra pronta.

Todo o direito de seguridade social conhecido (nacional ou de organismos internacionais) também se inspira nos princípios políticos clássicos do sistema de Seguridade Social do Beveridge Report (1942, p. 9, § 17), ou seja, inspira‑se nos ideais de (i) proteção continuada dos que perderam sua renda própria, de (ii) contribuição permanente para garantir o financiamento estável do sistema de proteção coletiva, de (iii) unificação administrativa da gestão dos benefícios e serviços de seguridade social, de cobrar (iv) valores adequados para os benefícios pagos pelo Estado, de (v) abrangência universal do sistema e (vi) de adequada classificação de contribuintes e beneficiários.

Muito embora essas experiências internacionais sejam importantes para entender o modelo brasileiro de seguridade social, o sistema formalmente estabelecido na Constituição da Republica Federativa do Brasil tem suas peculiaridades. E aqui, como em outras nações, o regime constitucional resulta de um complexo e próprio processo de disputas políticas e de esforços coletivos.

3. O MODELO CONSTITUCIONAL DE SEGURIDADE SOCIAL

No caso do Brasil, e especialmente para responder e superar a herança imoral de uma cena social com discriminatórias estruturas de oportunidades, resultado de muitos anos de adoção de modelos de desenvolvimento não inclusivos, o regime constitucional da Seguridade Social (art. 194 e ss.) que foi aprovado pela Assembleia Nacional Constituinte caracteriza‑se por ser um sistema de (i) direitos materialmente conexos com os direitos humanos (DUDH/1948, Convenção 102/OIT; PIDESC/1966) e com os direitos previstos no Título II (art. 6.º CRFB), relativo aos direitos fundamentais; são (ii) direitos rigidamente protegidos, posto que dotados de uma detalhada redação constitucional de direitos, garantias jurisdicionais, institucionais, organização e orçamento; são (iii) direitos integrados, posto que a redação original determina o respeito, proteção e promoção compartilhada e convergente dos direitos da saúde, da assistência social e da previdência (art. 194, caput); e (iv) são direitos exigíveis em juízo.

Como se vê, o modelo de seguridade constitucional do Brasil seguiu uma concepção assentada em dois pilares essenciais: o direito à segurança de renda e o direito de acesso a bens e serviços de …

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31 de Maio de 2024
Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/secao/14-seguridade-social-um-bem-juridico-ainda-em-construcao-capitulo-i-seguridade-social-direito-constitucional-brasileiro-constituicoes-economica-e-social/1450039355