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Manual dos Recursos Penais

Manual dos Recursos Penais

3 - Fundamento dos Recursos: O Duplo Grau de Jurisdição

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A razão de ser dos recursos pode ser analisada sob diversos enfoques. Do ponto de vista pessoal, há uma justificativa psicológica para a existência dos recursos. Já numa perspectiva mais ampla, que extrapola o indivíduo, a parte e o próprio processo em si, pode se ver uma razão de ser de natureza política, relacionada ao exercício imperativo do poder, para que haja recurso das decisões estatais. Por fim, mas não menos importante, há a tradicional abordagem que procura explorar o fundamento jurídico dos recursos.

3.1. Fundamento psicológico dos recursos

Antes de analisar o fundamento jurídico do recurso, é necessário observar, em uma dimensão mais ampla, que o recurso visa a satisfação de uma necessidade psicológica, inata no ser humano, de que ninguém se contenta com um julgamento desfavorável. 1 O ser humano não quer e não gosta de perder. E se perde, é comum afirmar que “perdeu a batalha, mas não a guerra”.

Essa insatisfação com a perda e, por isso, a desconfiança diante de um juízo adverso não se verifica só no campo jurídico. Se um médico dá ao seu paciente um diagnóstico desfavorável, de uma doença de certa gravidade, a primeira reação é “vou buscar uma segunda opinião”.

Ninguém se conforma com um juízo único desfavorável, o que é fruto da consciência da imperfeição humana. 2

3.2. Fundamento político dos recursos

Os atos jurídicos, enquanto atos de autoridade judiciária que exerce parcela do poder estatal, são imperativos.

A decisão judicial traz em si o sinal de todo ato de poder. Isto é, uma decisão incontrastável, decorrente de quem tem a capacidade de decidir imperativamente e impor a sua decisão.

Isso não significa, contudo, que essa incontrastabilidade tenha que ser uma característica de todos os atos jurídicos. Sendo o processo uma sucessão de atos intercalados, evidente que o ato final deverá ser um ato imperativo. Não teria sentido o desenrolar de todo um processo para buscar uma solução justa, se ficasse ao alvedrio das partes cumpri-la ou não.

Esse ato de poder deve ser sujeito a controles, sob pena de o poder se transmudar em arbítrio ou autoritarismo. Por isso, até o momento final de sua elaboração, tais atos podem e devem estar sujeitos a mecanismos de revisão.

O recurso exerce, exatamente, esse papel de controle dos atos estatais, no caso, dos atos do Poder Judiciário, em especial das sentenças, que é o momento culminante do processo, por meio do qual se realiza a prestação jurisdicional ou, mais especificamente no processo penal, decide-se sobre a imputação formulada, com a consequente manutenção do estado de inocência do acusado ou, ao contrário, a sua superação após o devido processo legal, liberando-se legitimamente, o poder punitivo estatal.

Há, pois, um fundamento político para o princípio do duplo grau de jurisdição: toda decisão estatal deve estar sujeita a reexame. A ausência de controle daria ao titular de tal decisão um poder ilimitado e absoluto, o que não pode ser aceito em um Estado de Direito. 3 Evidente que haverá um ato final, em relação ao qual não caiba mais recursos e, portanto, controle, mas isso decorre, inclusive, da possibilidade anterior de ter funcionado um ou mais mecanismos de controle.

Com o duplo grau de jurisdição, diz Bermudes, a liberdade do juiz se torna uma liberdade vigiada. 4

3.3. O fundamento jurídico dos recursos

Finalmente, chega-se ao fundamento jurídico do direito ao recurso: o princípio do duplo grau de jurisdição, que assegura o direito ao reexame das decisões por um órgão jurisdicional diverso daquele que proferiu a decisão, em grau de hierarquia superior. 5

Isso não significa, porém, que todo e qualquer recurso tenha que ser julgado por um órgão distinto. Há recursos, como os embargos de declaração, em que não há devolução para um órgão superior. Um sistema processual poderia sobreviver sem os embargos de declaração, ou mesmo como ocorre, desde 2008, sem protesto por novo júri. Todavia, não seria viável conceber uma sentença que não fosse recorrível. E, mais do que isso, o recurso contra uma sentença de mérito deve ser julgado por um órgão jurisdicional hierarquicamente superior ao que a proferiu.

O direito ao duplo grau de jurisdição assegura o direito a um único reexame. Diante da organização judiciária brasileira, em que o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal podem funcionar, respectivamente, como terceiro e quarto graus de jurisdição, a possibilidade de interposição de recurso especial e extraordinário não pode ser vista como manifestação do duplo grau de jurisdição. 6

De outro lado, o duplo grau de jurisdição significa que, salvo nos casos de competência originária dos Tribunais, o processo deve ser examinado uma vez em primeiro grau de jurisdição e uma segunda vez em sede recursal pelo Tribunal. O exame direto da matéria pelo Tribunal constitui supressão do primeiro grau de jurisdição, o que também viola o princípio do duplo grau de jurisdição.

A Constituição de 1988 assegurou explicitamente várias garantias processuais, como contraditório e ampla defesa (art. 5.º, LV), devido processo legal (art. 5.º, LIV), juiz natural (art. 5.º, LIII), publicidade e motivação das decisões judiciais (art. 93, IX), entre outros. Não há, porém, uma previsão explícita do duplo grau de jurisdição. 7

Há recursos expressamente previstos na Constituição, como recurso extraordinário (art. 102, III) e recurso especial (art. 105, III), que não têm por função assegurar o duplo grau de jurisdição. 8 São recursos com função nomofilácica, isto é, de controle da correta aplicação da Constituição e da lei federal. 9 O escopo é a preservação do direito objetivo, isto é, a autoridade e uniformidade da aplicação das normas, e não o direito subjetivo da parte processual que se sinta prejudicada e interponha tais meios de impugnação. 10

Por outro lado, como a Constituição, ao estruturar os órgãos do Poder Judiciário, prevê órgãos de primeiro e órgãos de segundo grau de jurisdição, sendo função precípua de esses últimos reverem as decisões proferidas em primeiro grau, tem-se entendido que o princípio do duplo grau de jurisdição é um princípio constitucional implícito. 11

Em verdade, a discussão se o duplo grau de jurisdição é um princípio explícito ou implícito pouco representa. 12 O fundamental é definir se é possível que uma decisão penal e, em especial a sentença, seja ela absolutória ou condenatória, poderá ser irrecorrível. 13 Em caso de resposta negativa, isto é, admitindo-se que toda e qualquer sentença penal de mérito deve estar sujeita a recurso, é necessário, ainda, definir qual a abrangência de tal meio impugnativo e qual a sua finalidade.

O que o recurso pode garantir é apenas a possibilidade de reduzir as chances de erro. 14 Isso porque o segundo julgamento não será uma análise inicial que partirá do nada. Ao contrário, terá por base uma decisão anterior, que já será fruto de uma análise das questões de fato e de direito, cujo acerto ou equívoco será verificado pelo Tribunal. Trata-se, nas palavras de Carnelutti, de um “julgamento sobre o julgamento e, dessa maneira, um julgamento elevado à segunda potência”. 15 O recurso ocorre quando o debate da causa já esmiuçou as pretensões conflitantes e a sentença de primeiro grau já situou a intervenção judicial em um certo sentido, “apresentando-se o debate escoimado de superfluidades”. 16

Além disso, a decisão inicial será, por sua vez, submetida a um novo confronto dialético propiciado pelas razões e contrarrazões recursais, tudo isso a permitir uma depuração de seu conteúdo, facilitando que seus erros, se existirem, possam estar mais visíveis para o Tribunal. 17

Some-se a isso, que no sistema brasileiro, em que o primeiro grau de jurisdição, em regra, é monocrático, e o segundo grau, colegiado, a revisão por um órgão plúrimo, minimiza a probabilidade de erro. Num ato de juiz singular, se o magistrado se equivoca, haverá uma injustiça consumada. Já no caso de uma decisão colegiada, o erro individual será, apenas, um voto errado, que poderá ser superado por uma posição correta dos demais julgadores. 18 A colegialidade das decisões, afirma Pontes de Miranda, assegura diversos exames ao mesmo tempo, “que se transforma em superioridade sempre que desejamos maior certeza”. 19

Também por esse aspecto, outro fator de redução de erros que o duplo grau possibilita é que, sendo os tribunais compostos por magistrados mais experientes, o maior tempo de judicatura tende a ser acompanhado de um maior cabedal de conhecimentos jurídicos. 20 Não se trata, porém, de uma regra indefectível. Um jovem magistrado estudioso e dedicado poderá decidir melhor do que um experiente magistrado enfastiado com a atividade jurisdicional. 21

Por fim, mas não menos relevante, a simples possibilidade de recurso e correção do erro gera um maior cuidado no juiz de primeiro grau, ao proferir a sua decisão, 22 pois sabe que o ato poderá ser revisto. 23 Se sua decisão não fosse passível de qualquer censura ou correção, poderia não se esmerar tanto em sua qualidade.

É inegável, porém, que a despeito de todos os fundamentos – psicológico, jurídico e político – que justificam sua existência, o recurso não assegura, necessariamente, uma melhor decisão, de qualidade superior, legalmente mais acertada e, substancialmente mais justa. Nada impede que, hipoteticamente, a decisão correta fosse a primeira, e o provimento do recurso, substitua-a por outra, errada e ilegal. 24

3.4. Conteúdo do duplo grau de jurisdição

Definir o duplo grau de jurisdição significa, nas palavras de Spangher, “definir uma criatura do pensamento jurídico, um paradigma pertencente ao conjunto dos conceitos jurídicos dos quais a ciência se serve como instrumento de análise”. 25

Do conteúdo semântico da expressão “duplo grau de jurisdição” e com alguma complementação lógica, o mínimo a se extrair de tal direito é que seria um modelo de sistema judiciário segundo o qual o conteúdo das decisões de mérito poderia ser objeto de duas estatuições sucessivas, por órgãos diversos, sendo que a decisão posterior prevalece sobre a anterior. 26

Não violará o duplo grau de jurisdição, portanto, um sistema que trabalhe com a irrecorribilidade das decisões interlocutórias. Neste caso, obviamente, se não há recurso contra uma decisão proferida no curso do processo que causou gravame à parte, se ao final o julgamento de mérito lhe for desfavorável, deverá apelar e, no recurso contra a sentença, também trazer como matéria recursal a impugnação da decisão anterior.

Normalmente não é suficiente assegurar que o recurso seja endereçado a um órgão hierarquicamente superior. 27 Esse órgão hierarquicamente superior, em geral, deve ter uma composição colegiada, em razão da própria finalidade do recurso, que é o controle da decisão do juiz a quo, reduzindo a possibilidade de erro do Poder Judiciário. 28

O direito ao duplo grau de jurisdição, exercitável por meio do recurso, não é absoluto ou totalmente incondicionado 29 podendo a lei subordinar seu exercício ao cumprimento de determinadas condições, entre nós denominadas “requisitos de admissibilidade recursal”, desde que estes não sejam de tal natureza que cheguem a impedir ou dificultar excessivamente o acesso ao recurso, 30 como era o caso de exigir que o acusado se recolhesse à prisão para poder apelar da sentença condenatória, no revogado art. 594 do CPP. O TEDH também considerou que viola o direito ao duplo grau em matéria penal a possibilidade de o Tribunal agravar a pena pelo órgão inferior, em recurso exclusivo do acusado. Isso porque o apelante não poderá analisar as possibilidades de êxito de seu recurso perante o Tribunal superior, porque a apresentação do recurso lhe infundirá o temor lógico de um possível agravamento da condenação. 31

3.5. O direito de recorrer nas declarações internacionais de direitos humanos

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, aprovada e proclamada pela 183.ª Assembleia da Organização das Nações Unidas, em 10.12.1948, não assegurou, de forma explícita, o direito ao duplo grau de jurisdição, embora tenha previsto, no art. XI.1, que “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido …

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20 de Maio de 2024
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