A câmara fria
O juiz do Trabalho é pessoa espirituosa que nutre amistosa convivência com os advogados. Os momentos de tensão são superados, ora por sutis ironias, ora por brincadeiras que imprimem um clima de despojamento às audiências.
A advogada do reclamante requerera a produção de prova testemunhal com o objetivo de tentar desconstituir a conclusão do laudo pericial que apontara (equivocadamente) que o trabalho do reclamante não exigia ingresso e permanência freqüentes na câmara fria.
O magistrado compromissa a testemunha e a questiona:
- A senhora ingressava com o reclamante na câmara fria?
- Sim! - responde secamente a testemunha.
- Em média, quantos minutos lá permaneciam? - quer saber o magistrado.
- Pouco tempo, coisa de um minuto. Era pegar os alimentos e sair responde a testemunha.
- Vocês não ficavam lá dentro por um tempo maior, arrumando os alimentos? insiste o magistrado.
- Não ficávamos! Era bem como eu disse confirma a testemunha.
Exibindo expressão de incredulidade, o juiz fala para a advogada do reclamante:
- Acho que a senhora não vai querer perguntar mais nada, não é? Mas fique à vontade, a palavra é sua.
Inconformada, a advogada, que havia pedido a oitiva da testemunha pretendendo beneficiar seu cliente, insiste:
- Excelência, quero que a testemunha diga quantas vezes, em média, o reclamante ingressava na câmara fria, por dia.
- Poucas, umas cinco vezes por dia responde a antiga colega de trabalho.
- Mas sempre foi assim? insiste a procuradora.
Antes, porém, que a testemunha respondesse ao questionamento, o juiz se manifesta, tolhendo:
- Indefiro a pergunta. A doutora está insistindo em algo que não procede, de jeito nenhum. Se a testemunha disse que o tempo que ficavam lá dentro era pequeno, é porque era mesmo.
- Mas doutor... a advogada ainda tenta salvar a prova, ao que é interrompida pelo julgador, que determina o encerramento da tomada do depoimento.
- Doutora, por favor... ninguém gosta de ficar dentro de uma câmara fria. A menos que se agarre em um traseiro e fique o dia inteiro lá dentro - decide, com informalidade, o julgador, referindo-se, ambiguamente, ao nome que se dá a uma das partes do corpo do gado.
Então, ocorre a surpresa. A até então comedida testemunha revela o imprevisível:
- Houve uma vez, uma vez só, doutor, nas primeiras semanas em que a gente trabalhava junto, que ele - e apontou ao reclamante - tentou se chegar em mim, me agarrando pelo traseiro, mas eu afastei ele com um pedaço de paleta congelada... Então, ele nunca mais se meteu comigo, tanto que chegamos a ficar amigos, mas não íntimos.
- Tentou lhe agarrar dentro da câmara fria? - questiona incrédulo o julgador.
Risos, depois silêncio, o juiz pergunta reticente:
- Penso que as partes e seus advogados não vão querer que eu faça constar essa parte na assentada, porque afinal não tem nada a ver com os fatos da causa trabalhista e da insalubridade, não é?...
Ninguém quer. Duas semanas depois, na sentença, o juiz defere algumas das parcelas pleiteadas pelo reclamante.
O adicional de insalubridade é concedido, com a seguinte observação: "para fins dos cálculos de liquidação, deverá ser considerada a permanência média diária de apenas dez minutos no interior da câmara".
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