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16 de Junho de 2024
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    A Croácia e a paixão nacional

    Publicado por Justificando
    há 6 anos

    Copeira que sou, venho acompanhando a disputa pela Taça do Mundial na Rússia de 2018, e escrevo este texto na quinta-feira que antecede a grande final no domingo: ontem, 10 de julho de 2018, num desses lances que só o Sobrenatural de Almeida[1] explica, a seleção da Croácia venceu de virada a seleção da Inglaterra – nesse caso, talvez o Sobrenatural de Almeida tenha se manifestado na presença de Mick Jagger no estádio, com seu já tradicional pé-frio.

    Todas essas lembranças vieram com um espontâneo “caramba, que legal se a Croácia ganhar. Ainda mais com uma campanha dessa, invictos, poxa.”

    Pois bem: lá pelas alturas das oitavas de final, já rolavam notícias sobre o que seria um apoio de jogadores croatas ao neo-facismo em seu país. Instantes depois do jogo contra a Inglaterra, reportagens sobre (o que foi entendido como) inclinações fascistas do zagueiro Vida e do auxiliar técnico Ognjen Vukojevic[4] inundaram a internet: foram escavados todos os mais complexos meandros geopolíticos da Península dos Balcãs desde o final da 1ª Guerra Mundial ou até antes; esmiuçaram detalhes históricos anteriores à ditadura de Tito na antiga Iugoslávia; levantaram-se todas as tretas da Ucrânia e do Kosovo com a Rússia[5]. Tudo para demonstrar, por A + B, que não, nada de torcer pela Croácia no domingo: torcer pela Croácia é dar apoio ao neofascismo no leste europeu.

    Nesse caso, vamos de França? A França que invadiu a Indochina, a França da guerra contra a independência da Argélia, a França dos imigrantes representada no microcosmo escolar de “Entre os Muros da Escola”[6], a França de Jean-Marie e Marine Le Pen?

    Bom, complicou: se adotarmos esse critério, será que algum país – e os jogadores que os representam – tem o grau de correição moral política necessário para merecer torcida? Começando pela Alemanha, detentora não só do título da Copa de 2014, mas também de terra natal do Nazismo, o Vilão Político Universal (além do 7 x 1, claro – ufa, ainda bem que caíram na 1ª rodada, que essa torcida ia ser difícil de defender). Ou o Japão, tão inspirador com seus torcedores limpando os estádios, mas – rá! – e a Ocupação Japonesa na Coreia, ou o horror da prática das “mulheres de conforto”[7]? E como simpatizar com a seleção da Austrália, sabendo o que eles fizeram com os aborígenes?

    (Aliás, seguindo nesse caminho, fica difícil até torcer pra país onde tem gente que apóia ditadura militar e usa camiseta enaltecendo torturador, não é mesmo?).

    Mas, ainda sobre a França: como não se inspirar pelos ideais da Revolução Francesa, que mesmo aplicados de forma tão distorcida e seletiva pelos séculos seguintes, mudaram para sempre o jeito do Ocidente pensar a si mesmo?Ainda que o maniqueísmo nos ajude a organizar moralmente os sentimentos, não existe mocinho e bandido na política (ok, talvez o Trump seja lá uma exceção honrosa – e, ainda assim, vou fazer a advogada do Diabo e dizer que, naquelas bandas do hemisfério norte, pelo menos o presidente deles foi eleito…).

    As coisas não são simples: não deveria ser necessário dizer que torcer pela Croácia não é o mesmo que apoiar politicamente o neofascismo no leste europeu ou onde quer que seja. Ou que torcer pela França é concordar com o que foi feito na Argélia ou na Indochina.

    Aliás, o que é “torcer”? É lugar-comum dizer que “saudade”é uma palavra intraduzível da língua portuguesa. Pois bem: já tentou traduzir “torcer”? Não é exatamente o “hope” nem o“expect” do inglês, nem o “espérer” do francês. Mete “torcida de futebol” lá no Google Translate pra ver: vem “soccer fan”, “les fans de football”; “tifoso de calcio”. Mas, até onde minha ignorância alcança, “torcer”é só no português (e, arrisco dizer, do Brasil). “Torcer” tá mais pro lado do feiticeiro e sua magia, do pensar forte, do querer muito e, se possível, fazer mandinga pra rolar.

    Não dá pra ser mais irracional que isso, né?

    Pois pensemos agora sobre a torcida de futebol. A gente escolhe por quem torce? Fazemos cálculos sobre desempenho do time, custo e benefício de gritar na arquibancada ou na frente da TV, para livremente escolher aquele que mais ganha? Ou escolhemos “porque meu pai torcia”, “porque minha tia me levava no estádio”, “porque quando eu era criança e assistia ao jogo tinha o fulano que era um craque e eu adorava”?

    A torcida de futebol tem muito do sentimento de nação – opa, alguém aí lembrou da Nação Corinthiana? Pois é. O termo “nação” pode ser descrito, muito resumidamente, como um grupo de pessoas que se sente unido por compartilhar determinadas tradições e valores culturais (tais como idioma, religião, história oficial etc), independentemente de reconhecimento jurídico de sua existência: a nação se vale é de seus “símbolos nacionais”, como bandeiras, hinos, brasões, selos e todo tipo de imagem que remeta simbolicamente aos valores acalentados por aquelas pessoas que se identificam como nacionais.

    A nação se vale do amor àquilo que reconhecer como seu, e do ódio àquilo que apontar como “O Outro”. Em Comunidades Imaginadas – Reflexões sobre a origem a difusão do nacionalismo, no capítulo sobre Patriotismo e racismo, Benedict Anderson propõe a seguinte reflexão: “Numa época em que é tão comum que intelectuais cosmopolitas e progressistas (sobretudo na Europa?) insistam no caráter quase patológico do nacionalismo, nas suas raízes encravadas no medo e no ódio ao Outro e nas suas afinidades com o racismo, cabe lembrar que as nações inspiraram amor, e amiúde um amor de profundo auto-sacrifício. Os frutos culturais do nacionalismo – a poesia, a prosa, a música, as artes plásticas – mostram esse amor com muita clareza, e em milhares de formas e estilos diversos. Por outro lado, como é difícil encontrar frutos nacionalistas semelhantes expressando medo e aversão!” (ANDERSON, p. 200, 1983). No dizer de Lilia Schwarcz, que assina o prefácio da edição brasileira deste livro, “Há todo um imaginário afetuoso (…), a língua, que conhecemos ao nascer e só perdemos quando morremos, restauram-se passados, produzem-se companheirismos, assim como se sonham com futuros e destinos bem selecionados.” (p. 14).

    Faz muito sentido chamar o futebol de “paixão nacional”, e não só no Brasil: as seleções são chamadas de “nacionais”, e não “Estatais”. Não por acaso, quem joga na Copa não é “A Seleção do Reino Unido”, ou a “Seleção Britânica”: Escócia, País de Gales e Inglaterra defendem, cada um, sua nação[9].

    O nacionalismo é, por definição, irracional. Tem a ver com compartilhamentos de passados simbólicos, afetividades, sentimento. Por isso mesmo, o problema resida talvez em levar os nacionalismos às políticas de Estado, que deveriam obedecer a outros critérios, relacionados à justiça e ao bem comum, por exemplo. Ou decidir o voto a partir de memórias afetivas ou tradições familiares – ou pior, a partir de pseudo-argumentos demagogos e inflados não de amor, mas de ódio nacionalista.

    Nessa Copa de 2018, a seleção brasileira não despertou em mim esse sentimento – nem de nação, nem de torcida. E até não jogamos mal (olha aí eu me traindo ao me incluir nesse plural, não é mesmo?), mas, a meu ver, foi justa sua eliminação na fase das quartas. Não dava pra muito mais que isso, não. E não consegui vibrar na torcida no estilo “my country, right or wrong”: não com um futebol que foi, no máximo, ok, e uma seleção bem pouco carismática, que correu para o vestiário com uma cara mal humorada logo após o apito final, diferente de tantas outras (o Irã, gente, lembram? Ou mesmo o Japão) que emocionaram com seus gestos de agradecer à torcida após serem eliminados.

    No fim, quando chegamos à esfera do indivíduo, talvez tudo se resuma as afetividades e idiossincrasias pessoais. Aquilo que afeta cada um. Em 1994 eu tinha dezesseis anos e vibrei demais na Copa dos EUA (e quem me perguntar vai me ouvir dizer que essa foi a melhor de todas as Copas até hoje, e ai de quem vier me falar de 1970, ou 1986). As pessoas da Croácia (da Bósnia, e mesmo da Sérvia) da mesma idade que eu, nesse ano, estavam lidando com bombardeios, cercos às suas cidades e ações de “limpeza étnica” que incluíram campos de estupro de mulheres bósnias e croatas com o intuito de engravidá-las de filhos sérvios[10].

    Quem sabe na copa de 2026 não tem festa em Aleppo. E vou ficar emocionada à beça se aquele povo todo estiver no meio da praça que não vai mais estar destruída comemorando uma vitória da seleção síria. E não vou conseguir deixar de me emocionar com isso ainda que nesse dia utópico me digam, sei lá, que agora há extremistas sírios muçulmanos apoiados pelos antigos eleitores de Trump que os financiam para enriquecer a indústria bélica praticando atos terroristas contra grupos feministas no país. Na real: não vou nem tentar não me emocionar.

    Maíra Zapater é doutora em Direitos Humanos pela FADUSP, especialista em Direito Penal e Processual Penal (Escola Superior do Ministério Público de SP), graduada em Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH – USP). Professora de Direito e Processo Penal na FGV – Direito SP.

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    Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/a-croacia-e-a-paixao-nacional/600603481

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